Livro

Rap progressista, quebrada conservadora: reconfigurações do negro drama no rap brasileiro contemporâneo

I. “Política” como gestão social da barbárie

No dia vinte e três de outubro de 2018, vésperas do segundo turno das eleições presidenciais, o Partido dos Trabalhadores organizou um comício no tradicional bairro da Lapa, no centro do Rio de Janeiro. Milhares de pessoas se reuniram para ouvir o discurso do então candidato à presidência Fernando Haddad, na ocasião acompanhado por diversos apoiadores de peso do campo político e cultural, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Marieta Severo, Osmar Prado e Leonardo Boff. Junto a eles estava um dos mais importantes rappers do Brasil, mano Brown, integrante dos Racionais MC’s. O momento era de mais profunda tensão, pois o país estava a menos de uma semana de decidir se permaneceria no rumo seguro da normalidade democrática, ou se cairia nos braços do fascismo – ao menos eram esses os termos correntes do debate público.

As falas sucediam-se com as mensagens de praxe: esperança, empenho da militância, combate ao fascismo, etc. Unir-se ao PT era a única esperança do país contra o candidato da extrema direita, e a vitória, ainda que difícil, era certa. O clima era de festa. Pelo menos, até mano Brown pegar no microfone.

“Eu não gosto do clima de festa. A cegueira que atinge lá atinge nois também. Isso é perigoso. Não está tendo motivo pra comemorar, tem quase trinta milhões de votos para alcançar. Não temos nem expectativa nenhuma para alcançar para diminuir essa margem. Não estou pessimista, só realista. Eu não consigo acreditar que pessoas que me tratavam com tanto carinho, pessoas que me respeitavam, me amavam […] se transformaram em monstros. Essas pessoas não são tão más assim. Se em algum momento a comunicação do pessoal daqui falhou, agora vai pagar o preço. Porque a comunicação é alma, e se não está falando a língua do povo vai perder mesmo, certo? Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não está aqui que precisa ser conquistada, ou a gente vai cair no precipício […] Eu estou vendo casais se separando, amigos de mais 35 anos deixando de se falar… [vaias] se eu puder falar também vai ser bom se eu não puder também vou parar já era e foda-se […] Tenho amigos que eu já não consigo olhar no rosto deles por causa de política. Não vim aqui para ganhar voto, porque eu acho que já está decidido. Agora se falhou, vai pagar, quem errou vai ter que pagar mesmo, certo?! [mais vaias] Não gosto do clima de festa. O que mata a gente é a cegueira e o fanatismo. Deixou de entender o povão, já era. Se nós somos o Partidos dos Trabalhadores, partido do povo, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta para base! E vai procurar saber. As minhas ideia é essa. Fechou!”

Caetano Veloso, de forma sagaz, tomou da palavra imediatamente sem dar tempo para que as manifestações do público se consolidassem. Cinco dias depois, Jair Messias Bolsonaro – candidato entusiasta da ditadura militar e cujo foco da campanha foram as redes sociais, sobretudo o WhatsApp – seria eleito o mais novo presidente do Brasil, derrotando aquele que já fora o maior partido de esquerda da América Latina. Um projeto político formatado basicamente em cinco anos – entre 2013 e 2018 – havia rompido com formas “antiga”, aparentemente imutáveis, de organização da política nacional, com seus modelos milionários de financiamento de campanha, apoio midiático e partidos tradicionais.

***

A fala de mano Brown reflete bem o descontentamento de parte significativa do país com os caminhos oferecidos pela política institucional. Depois de um período de aparente lua-de-mel com o sistema de acomodações pós-ditadura – ainda que com algumas crises pontuais – finalmente parece ter chegado o tempo da ruptura não só com as opções oferecidas pelos principais grupos políticos a direita (PSDB) e a esquerda (PT), mas com o próprio princípio de organização do regime democrático liberal e suas promessas, agora abandonadas, de uma vida mais plena. O que não significa que estejamos diante de uma ruptura mais profunda com o modelo hegemônico de organização social: ao contrário, é cada dia maior a crença no poder regulador do mercado, a tal ponto que parece muito mais fácil imaginar o fim do mundo (que parece a cada dia mais crível) do que o fim do atual regime social, que assume assim contornos quase transcendentes. O que desaparece de cena não é a percepção de que todas as formas de vida se subordinam de modo mais ou menos inapelável aos imperativos do mercado, e sim a concepção de que este deva ser subordinado a um horizonte mais amplo de integração social– percepção essa que esteve na base da concepção de Estado de Direito. Ou seja, o que acompanhamos por hora é a vitória esmagadora de uma nova fase, radicalizada, da racionalidade neoliberal, com o mercado desvinculando-se por completo das pautas próprias ao estado de direto, de modo a permitir um avanço sem precedentes do projeto de mercantilização das relações sociais. No limite, esvazia-se a própria concepção de democracia representativa, que assume contornos visivelmente antidemocráticos, ainda que dentro da esfera da legalidade.

Segundo Pierre Dardot e Cristian Laval[1], os impactos desse modelo de terrorismo de estado terminam por converter a própria política em um sistema de gestão do terror, que submete a vida social a um regime marcado por um processo permanente de guerra civil, despolitização dos sujeitos, militarização do cotidiano, catástrofe ambiental e gerenciamento da crise pelo estado de medo permanente. No limite, o neoliberalismo faz da democracia uma espécie de “forma sem substância”, com seu sistema legal atravessado por uma ilegalidade de base que torna o sistema eleitoral meramente decorativo e pulveriza a utopia da sociedade do trabalho em formas mais ou menos policialescas de gerenciamento da barbárie. Em suma, trata-se de uma nova fase do capitalismo, agora desvinculado dos padrões de civilidade da moral burguesa – modelo cujo laboratório privilegiado foram precisamente as colônias escravistas, e que agora se transfere também para o centro. O neoliberalismo é uma forma de governar pela crise permanente, cujo saldo é um batalhão de “empreendedores de si mesmo”, isto é, desempregados estruturais. Sujeitos que jamais serão incorporados a padrões minimamente dignos de subsistência, relegados a um estado de anomia social que produz indiferença, medo e ódio permanentes.

Ao longo do século XX a esquerda procurou por formas de operar no interior do sistema econômico vigente, aperfeiçoando mecanismos que pudessem frear ou arrefecer os impulsos destrutivos do mercado. Cabe lembrar que políticas como as do Estado de Bem-Estar Social foram uma espécie de criação conjunta de direita e esquerda no interior de um sistema de acordos consolidados a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Em certo sentido, tais políticas baseavam-se na percepção geral de que a maneira mais eficiente de evitar conflitos sociais mais profundos – cujos riscos puderam ser observados de perto durante a guerra – era firmar compromissos e pactos conciliatórios entre as classes.

Pode-se dizer que o sistema irá funcionar relativamente bem enquanto durar o pacto da democracia liberal, rompido em meados dos anos 1970, quando o fluxo de caixa produzido pela manutenção do colonialismo se esgotar após os movimentos de descolonização dos países periférico, e a crise do petróleo no Oriente Médio provocar um movimento de reorientação global da economia[2]. Nesse momento implanta-se pela primeira vez o choque de “austeridade” do neoliberalismo, proposto por figuras como Margaret Thatcher e Ronald Regan no início dos anos 1980. Esse sistema opera basicamente por meio da conversão do político em mero modelo de gestão empresarial dos chamados “custos sociais”, que progressivamente destrói os valores e pactos firmados pela democracia liberal, restringe o alcance das políticas públicas, subordina o Estado aos parâmetros de mercado e impõe a convicção ideológica profunda de que não há vida para além do horizonte deplorável que aí está.

II. As instituições estão funcionando normalmente

No caso propriamente brasileiro, estamos diante daquilo que diversos analistas têm definido como o esgotamento do sistema de pactos da Nova República, modelo de construção política pós-ditadura que condicionou os avanços democráticos a padrões que beneficiassem as classes dominantes responsáveis pelo Golpe de 1964 e seu modelo econômico. Em seu sentido mais profundo, portanto, a Nova República foi uma espécie de grande acordo nacional para garantir que setores em alguma medida ligados à ditadura continuassem a se beneficiar com a abertura política, aliando-se a massa fisiológica da política brasileira. Seu princípio de atuação consistia em conduzir a política do Estado para o centro, de modo a conciliar seus interesses particulares com a pressão das massas por maior participação política (pós-abertura), ao mesmo tempo em que mantinham o poder econômico e o controle social. Foi assim com o apoio de Antônio Carlos Magalhães e do PFL a Fernando Henrique Cardoso, e com o apoio de Sarney a Lula, em um movimento de coalisão continuamente gerenciado pelo PMDB[3].

A partir dos anos noventa, portanto, o projeto político da esquerda brasileira (representado sobretudo pelo PT, a época o maior partido de esquerda da América Latina), volta suas preocupações para o campo da governabilidade, convertendo-se em um modelo gestionário que progressivamente se desacostuma a fazer política, caso entendamos o termo no sentido de luta, embate e conflito com o campo do poder. Uma esquerda que, segundo o filósofo Paulo Arantes[4], abandona a ideia clássica de política como conflito social canalizado em torno de algumas grandes expectativas para se aferrar à ideia de gestão, governo e administração, nos moldes impostos pela Nova República. Comprometida, portanto, com as estruturas do capitalismo neoliberal dependente.

Com a crise de 2008 o sistema neoliberal revela-se enfim inviável em todo mundo, a despeito de seguir existindo por meio de suas crises permanentes e lógica suicida (no caso brasileiro o sistema de ajustes do lulismo, ancorado em políticas de redistribuição de renda, na capitalização dos mais pobres e no respiro financeiro propiciado pelo boom das comodities, ajudariam a adiar o inevitável, com grande sucesso, diga-se de passagem). O jogo de “ganha-ganha” que forneceu as bases materiais do lulismo é interrompido, sem que houvesse ocorrido uma consolidação das bases populares de uma esquerda associada ao establishment[5], que havia deixado de ser o grande repositório das esperanças de emancipação social para se converter em gerente de um projeto social de desagregação.

A partir de 2013 o conjunto de ajustes da Nova República seria implodido de ponta a ponta, com a política propriamente dita voltando a cobrar seu preço, por um lado totalmente inesperado – como não poderia deixar de ser, uma vez que o renascimento da política passa pela ruptura das coordenadas estabelecidas – via uma extrema direita que (fato novo) aprendeu a ocupar as ruas. O mais trágico para o campo progressista, nesse caso, é que a grande responsável por enterrar de vez o sistema de pactos da socialdemocracia – em grande medida, uma conquista da esquerda – foi a própria esquerda. De fato, é ela quem progressivamente se converte na grande fiadora do neoliberalismo. Em países como França, Espanha, Grécia, Alemanha e Brasil foram esses governos que levaram a cabo as políticas de austeridade neoliberais. A esquerda aceitou rebaixar-se a condição de mera gestora social dos projetos do mercado (inclusive de forma bem-intencionada, com a intenção de torná-los menos destrutivos), o que contribuiria para tornar sua posição política cada vez mais irrelevante, na medida em que o neoliberalismo for se desvinculando do horizonte humanitário do liberalismo clássico. Esquerda e direita abraçam-se fraternalmente rumo ao abismo, comprometidas com a gestão do mesmo modelo de sociedade cada vez mais inviável.

A percepção geral é, pois, de que a esquerda institucional – incluindo aí a classe intelectual progressista – aliou-se ao capital financeiro para realizar o jogo do sistema, enquanto deixava o povo a ver navios. Moto contínuo, a extrema direita capta a insatisfação popular e oferece alternativas antissistêmicas, ainda que reacionárias. Como argumenta o pesquisador Felipe Catalani, a intelectualidade progressista que durante anos definiu seus parâmetros de crítica a sociedade a partir das condições de existência dos mais pobres, passa a assumir uma posição reativa às reivindicações populares. De motor de transformação política, a insatisfação popular se torna elemento a ser controlado, na base da violência, de preferência.

É dessa forma que a intelligentsia progressista se equivoca em praticamente todos os seus diagnósticos sociais nos últimos anos. Ao focar no próprio umbigo e confundir seus anseios com o desejo de uma população que lhe era cada vez mais alheia, a esquerda se envereda em um modelo de adoração da própria imagem e pavor das ruas. O amplo apoio popular ao “populismo de direita” é assim interpretado equivocadamente como uma reação de caráter fascista contra os “avanços morais” da vida que estariam se definindo desde os anos 1990 (combate ao racismo, machismo, homofobia, etc.), rumo a uma sociedade mais justa que, entretanto, apenas ela conseguia ver. Ou seja, invertendo os polos de ponta a ponta, a esquerda interpretou o sucesso do populismo de direita como uma espécie de regressão pré-democrática, e não como aquilo que efetivamente era: um avanço do neoliberalismo em direção a modelos empresariais cada vez mais antidemocráticos. Nesse sentido, ocorre um conjunto curioso de inversões, em que os progressistas assumem uma postura conservadora reativa de modo a evitar a “decadência” de valores democráticos que não mais existem, enquanto a direita assume de vez o deboche, a “zuêira” e a negação performática de “tudo isso que está aí”. É nessa chave que devem ser interpretados os gestos histriônicos e declarações polêmicas de atores políticos fanfarrões como Donald Trump e Jair Bolsonaro: longe de representar um retorno a modelos autoritários e anti-democráticos, trata-se da realização mesma da democracia em sua face mais atual e despudorada.

A partir desse momento consolida-se em âmbito mundial um verdadeiro “abismo moral, para além da tradicional diferença social e econômica, que separa as classes médias escolarizadas (urbanas) e as classes populares”[6]. A retórica antifascista adotada por parte da esquerda assume contornos cada vez mais claros de desprezo de classe. Hillary Clinton, por exemplo, chamou os eleitores de Donald Trump – maioria nas regiões mais pobres do país – de “deploráveis”, enquanto por aqui trabalhadores que apoiaram Bolsonaro eram tratados como fascistas, machistas, racistas, homofóbicos e idiotas consumidores de fake news, por uma esquerda que se afirmava enquanto legítima representante do povo (os progressistas castraram tanto seu potencial linguístico com o politicamente correto que quando encontram formas liberadas de ofender algum grupo que a princípio não poderia ser criticado quase explodem de felicidade). Portanto, além de participar de forma ativa legitimando um projeto de desmonte do estado de direito que levaria milhões de sujeitos a condição da mais absoluta miséria (um movimento definido por Nancy Fraser como neoliberalismo progressista[7]), barateando seus parâmetros éticos e morais em nome do mal menor, o moralismo progressista aliava à humilhação econômica certa perversidade social, ao caracterizar “as elites urbanas como avançadas, esclarecidas, cosmopolitas, e as massas de perdedores como estúpidos, manipulados, ressentidos, intolerantes, etc.”[8].

Por toda parte, portanto, percebe-se aquela que é a grande tragédia da esquerda contemporânea, o divórcio cada vez maior entre os ideais progressivas e as massas populares. Os parâmetros de esquerda revelam-se incapazes de oferecer respostas satisfatórias para a crise que ajudou a constituir, em parte por ter aderido ao sistema, em parte porque muitas das alternativas apresentadas repetem modelos que se mostram insuficientes, ao pressupor categorias que não encontram mais condições sociais para sua realização. Desse modo, o campo progressista mostra-se incapaz de compreender movimentos populares como os coletes amarelos na França, ou a greve dos caminhoneiros de 2018 no Brasil. Ou ainda aquela que se tornaria uma espécie de paradigma para os novos tempos, os levantes insurgentes de Junho de 2013. Em certo sentido, pode-se observar ecos dessa crise também no âmbito cultural – mais precisamente no gênero musical brasileiro de conteúdo temático mais progressista.

 

III. A abertura progressista do rap nacional

O movimento hip hop emerge no contexto internacional claramente vinculado a demandas progressistas, seguindo por um caminho não institucional articulado a formas de resistência. Ao menos desde que Afrika Bambaata criou a Zulu Nation em 1977, fortaleceu-se a ideia de que o hip hop não era apenas um movimento cultural e artístico, mas também um instrumento de resistência política e social da comunidade negra. O “conhecimento”, definido por Bambaata com o “quinto elemento” do hip hop, que difundiu-se ao longo dos anos por meio da atuação de grupos como Public Enemy e NWA, implica tanto em uma visão crítica da sociedade quanto em um fortalecimento da comunidade negra em termos de uma identidade pensada como resistência, ligada a questões colocadas pelos movimentos de resistência civil negra, como os Black Panther.

Ainda que os rappers em sua maioria não participassem diretamente de organizações políticas, o diálogo com amplos setores dos movimentos progressistas, em particular o movimento negro, sempre foi uma constante na cultura hip hop. Com relação ao caso brasileiro, o pesquisador João Baptista Felix[9] é um dos que tem demostrado as proximidades e tensões existentes entre a cultura hip hop e grupos como a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro, que transpassa desde os Bailes Black até a formação das primeiras posses (ou crews). Nesse sentido, mesmo que a relação não seja direta e imediata, é certo que ambos os movimentos pensam a cultura negra enquanto resistência.

Historicamente, portanto, o hip hop se vincula ao campo progressista, tanto em termos propriamente artísticos (linguagem, temática) quanto em relação a seus modelos de organização política e social. E a despeito de todas as mudanças em sua linguagem e em seu modelo de organização estrutural, o modelo hegemônico do rap segue por esse caminho. Por sua própria abertura radical ao contemporâneo o gênero incorpora a seu sistema elementos do debate político atual e, conforme o pensamento progressista incorpora novas questões em suas pautas, o “conhecimento” do hip hop alia a suas demandas específicas aspectos mais amplos do debate contemporâneo de esquerda.

Nesse sentido, uma das mais importantes novidades do rap nacional nos últimos anos tem sido sua maior abertura política, formal e temática, marcada por uma pluralização de sentidos cada vez mais intensa que acompanha debates sociais mais amplos. Novas vozes femininas (Karol Conka, Lurdez da Luz, Negra Li, Flora Mattos, entre outras), LGBQI (Quebrada Queer, Rico Dalassan, etc.), indígenas (Bro MC’s), além da ascensão de rappers oriundos de outros estratos sociais (por exemplo, da classe média com ensino superior), a ruptura com certa hegemonia do Sudeste no campo (Don L., de Fortaleza, Baco Exu do Blues, de Salvador, Djonga, de Belo Horizonte, entre outros, têm recebido diversas premiações), além do trânsito cada vez mais intenso e naturalizado do rap com outras linguagens artística (Criolo, Rincon Sapiência).

Contudo, talvez a mais importante e radical dessas mudanças seja a presença cada vez maior de mulheres ocupando a cena. Ainda que desde sempre essas vozes tenham existido (cabe lembrar as pioneiras Dina Di, Sharylaine, Lady Rap, Rubia, Lunna, Sweet Lee, dentre outras), é fato que a presença feminina tem se imposto de maneira cada vez mais contundente no cenário hip hop nacional. As mulheres estão conquistando cada vez mais espaço dentro do universo do rap e em seus arredores (a exemplo do crescimento vertiginoso dos slams) e, ao cabo de muitos conflitos e disputas, encontrando um público cada vez mais interessando.

Essa mudança de cenário cultural é absolutamente decisiva e altera algumas coordenadas que historicamente tem fundamentado a própria estruturação do gênero enquanto sistema. Isso porque o rap sempre teve na misoginia uma de suas principais limitações estruturais. A complexa visão da realidade e do fluxo das relações sociais em suas diversas camadas de desigualdade, uma das principais marcas do estilo, aparentemente se paralisava quando a questão era pensar relações de gênero. Em relação a representação das mulheres o rap frequentemente recaia nos lugares comuns mais violentos e misóginos, marcado por uma pobreza de olhar que certamente fragiliza o conjunto.

Em parte, isso se deve ao fato de que o rap dos anos noventa tinha por objetivo estabelecer uma ética guerreira predominantemente masculina, em que não havia lugar para ambiguidades da ordem do desejo – o que é uma maneira de compreender o problema, não justificá-lo:

“Pode crê! Pra ela, dinheiro é o mais importante (pode crê) \ Sujeito vulgar, suas ideias são repugnantes \ É uma cretina que se mostra nua como objeto \ É uma inútil que ganha dinheiro fazendo sexo \ No quarto, motel, ou telas de cinema \ Ela é mais uma figura viva, obscena\ Luta por um lugar ao sol \ Fama e dinheiro com rei de futebol \ No qual quer se encostar em um magnata \ Que comande seus passos de terno e gravata (otária) \ Ela quer ser a peça centra em qualquer local \ Que a julgue total, quer ser manchete de jornal \ Somos Racionais, diferentes, e não iguais \ Mulheres vulgares, uma noite e nada mais” (Mulheres Vulgares).

Com relação a comunidade LGBTI a coisa talvez seja ainda pior: sua “presença” é mais uma espécie de anti-presença, sinônimo do mal e do pecado, aquilo que os guerreiros de fé se tornam quando tudo o mais está perdido: “Em troca de dinheiro e um carro bom \ tem mano que rebola e usa até batom”. Sinônimo de derrota absoluta, deixar de “ser homem”, aproximando-se a um só tempo do feminino, lugar da perdição, e da androgenia, espaço de ambuiguidade que (acredita-se) fragiliza a união comunitária. Mulheres e gays são basicamente o Outro dessa fase misógina do rap, figuras de excesso que precisam ser eliminadas por completo ou domesticadas (mulheres mães ou virgens).

Note-se, portanto a radicalidade da ruptura com esse universo marcado não apenas pela marginalização física das mulheres que fazem rap, mas também pela construção de todo um modelo ético que constitui o feminino enquanto avesso do rapper-macho, o Outro ao qual se deve recusar em nome da construção da própria identidade. Não é, pois, apenas a figura real da mulher que é marginalizada no interior da cultura hip hop, mas uma determinada relação da racionalidade guerreira do rapper com seu próprio corpo e desejo que, por razões sociais, subjetivas e estéticas foi colocado em segundo plano ao longo do processo de constituição do hip hop brasileiro. Pois o desejo é precisamente aquilo que precisa ser “racionalizado” e “controlado” em nome do projeto de sobrevivência periférica. Não pode haver distrações se o contexto é de guerra, corpo e espírito precisam estar integralmente preparados. É preciso combater o hedonismo, o vale tudo individualista que está na base da tragédia periférica. Afina, “o demônio fode tudo ao seu redor \ Pelo rádio, jornal, revista e outdoor \ Te oferece dinheiro, conversa com calma \ Contamina seu caráter, rouba sua alma \ Depois te joga na merda sozinho! \ Transforma um preto tipo A num neguinho” (Capítulo IV, versículo III).

A exclusão da mulher e dos impulsos homoafetivos no interior do rap assumem, portanto, a forma de sintomas, reveladores da própria impossibilidade de realização integral do projeto de racionalização do proceder periférico. A violência corrosiva da negatividade misógina é diretamente proporcional a fragilidade da posição desses sujeitos, expressão sintomática da impossibilidade de constituição integral da comunidade periférica. Em outras palavras, a marginalização da mulher é a forma quase patológica desses sujeitos lidarem com elementos ingovernáveis de seu próprio desejo\projeto, uma forma de exteriorização do caráter irredutível da individualidade dos moradores de periferia ao projeto comunitário do hip hop. Obviamente que um projeto de organização coletiva da periferia que não pressupõe a integração real e ativa das mulheres a seu horizonte emancipatório torna-se fracassado de saída (a menos que sejam espaços em que as mulheres não estejam presentes, como nos casos das prisões masculinas) – e o caráter violento com que as letras se dirigem ao feminino mulheres nada mais é que a expressão invertida dessa impossibilidade, a maneira de lidar previamente com a própria limitação atribuindo-a a um defeito do Outro, projeção invertida das próprias fragilidades e aporias internas.

De todo modo, as mulheres têm assumido uma posição cada vez mais combativa em relação ao caráter misógino do rap, o que vem alterando significativamente as coordenadas de organização de seu sistema, como fica claro no depoimento da rapper Luana Hansen:

“A minha ideia é outra, é expandir, é mostrar que tem gente que muitas vezes nunca foi num show de rap porque sempre foi hostilizado. Eu sei, porque quando faço show, vem gay, bi, trans, me abraçar e falar: eu sempre quis ir a um show de rap, mas eu nunca tive coragem. Eu só tenho coragem de ir no seu, porque sei que você não vai me tratar mal. Porque o movimento hip-hop é transfóbico, bifóbico, homofóbico, misógino. Existe um ódio em cima da gente, por ser mulher. E isso é um fato”. (Luana Hansen)[10]

Tal conjunto de transformações tem levado mesmo rappers mais antigos a reverem antigas posturas e posições. Criolo, por exemplo, mudou a letra do seu rap “Vasilhame” devido a seu conteúdo transfóbico, e o próprio mano Brown chegou a afirmar que não concorda “quando o rap critica o funk, quando o outro critica o gay ou o candomblé. Neste momento me sinto minoria”[11]. Mesmo a linguagem do rap feito por homens vem se alterando significativamente a partir desse novo cenário, o que pode se observar claramente com relação aos chamados “raps de amor”. Inicialmente, quando se começou a fazer raps com temática amorosa, houve muita polêmica. Olhava-se para esses raps com desconfiança, argumentando-se que os manos não deviam perder tempo com frescuras e veleidades, pois os tempos de urgência exigiam um olhar atento para a violência, os  assassinatos em massa, a dura vida das ruas, etc. Afinal, como é que falar de amor poderia ajudar a comunidade a sobreviver? Aos poucos, contudo, a temática amorosa e sexual foi abrindo caminho e encontrando espaço no universo “viril” do rap, em grande medida por conta da presença das mulheres – além da revalorização da soul music romântica. Não porque falar de amor seja uma temática feminina, ou qualquer outra bobagem do tipo, mas porque será a partir dessas canções que os rappers-machos poderão refletir mais cuidadosamente a respeito da relação com suas companheiras, de uma maneira menos “armada” e mais fluída, não mais como o outro a se excluir, mas a alteridade da qual é preciso se aproximar.  Ou seja, trata-se de uma forma de diálogo, um modo de pensar a especificidade das relações de gênero. Obviamente ainda não chegamos ao ponto do universo masculino do hip hop considerar as mulheres também enquanto companheiras de batalha, mas sem dúvida já se avançou muito. De todo modo, a maior visibilidade das mulheres no gênero é uma realidade incontornável.

“A gente vive há muito tempo dentro do rap, escutando que mulher é vadia, que mulher é boa de cama, eles só lembravam da gente quando era a questão materna, quando é a mãe, é aquela companheira, que lutou, que batalhou. Só nós, mulheres, sabemos o que passamos. Então é importante deixar registrado”. (Preta Rara)

IV. O declínio do sujeito periférico

O que se pode depreender de toda essa discussão é que a linha hegemônica do rap continua assumindo uma perspectiva progressista e em diálogo com seu tempo, inclusive ampliando sua gama de discussões para aspectos não presentes em seu período de consolidação. É preciso, contudo, analisar ainda outro aspecto relacionado a esse “acréscimo de criticidade”, que levanta uma questão de grande interesse e pode ser formulada da seguinte maneira: será que a perspectiva hegemônica do rap contemporâneo coincide com a perspectiva da periferia que, segundo mano Brown, deu uma guinada a direita e, no limite, elegeu Bolsonaro, candidato claramente relacionado com o inimigo pelo hip hop[12]? Esse não é um ponto qualquer, pois toca no cerne mesmo da perspectiva que entende o rap com porta voz da periferia. Pois era justamente nessa coincidência de interesses, legitimada de parte a parte (rap e comunidade), coletivamente construída, que apresentava-se um dos aspectos mais radicais do rap, que fez dele o projeto de música engajada mais bem-sucedido da história do país – considerando inclusive a MPB universitária da década de 1960. Ou seja, a visão do rap enquanto “porta voz da comunidade periférica” nunca foi mera figura de linguagem, um slogan criado com o objetivo de legitimar o gênero no mercado musical. Essa voz foi efetivamente construída ao longo dos anos, coletivamente, produzindo um dos mais avançados sistemas de compreensão da realidade, que inclusive ajudou a transformar o próprio conceito de periferia ao longo da década de 1990 e 2000, cujo impacto atingiu toda a cultura brasileira.

Atualmente, entretanto, já não se pode dizer de maneira tão enfática que a ética do rap coincide com a da comunidade periférica de forma tão orgânica. As implicações disso são muitas, e merecem ser debatidas com atenção, pois indicam mudanças importantes no campo da cultura e da sociedade. Afinal, o que significa o fato de que a visão de mundo de artistas como Karol Conká ou Rico Dalassan é mais progressista do que o olhar médio da periferia? Da perspectiva do sistema estético, nada indica que seja ruim para o rap manter sua contundência e radicalidade. Ao contrário, a medida em que é isso que o público médio procura encontrar, essa contundência agrega valor ao movimento. Contudo, é importante lembrar que o rap nunca foi um objeto cultural meramente estético. Sua radicalidade deriva em grande medida da regulação de sua dimensão estética pelo compromisso ético com a comunidade. Ou seja, boa parte de sua força consistia não apenas no fato dos rappers serem politizados, engajados, intelectualizados, etc., mas no poder de penetração dessas canções e seu conjunto de valores junto a coletividade periférica, que se politizava junto. O caráter coletivo dessa politização sempre foi o ponto verdadeiramente revolucionário do rap. Os rappers mais importantes do país não se colocavam como porta-vozes, como modelos, mas incorporavam as demandas da comunidade em suas canções de forma radical, para serem pensadas coletivamente. O objetivo nunca foi criar uma casta de rappers privilegiados com uma visão de mundo complexa, radical e progressista. Esse momento é fundamental, mas faz parte de um outro, mais decisivo, que é a participação ativa da periferia na construção desses valores. Caso o sucesso do rapper não seja acompanhado pela comunidade, o sentimento é de derrota e aporia.

O sociólogo Tiaraju D’Andrea defende a ideia de que o rap, em particular a obra dos Racionais, ajudou a fundar uma nova subjetividade, criando condições para a emergência do que ele define como sendo o “sujeito periférico”: aquele morador da periferia que assume sua condição, tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir dele, criando condições materiais e subjetivas para confrontar a lógica genocida do Estado por meio da elaboração coletiva de outros modos de dizer. Ou seja, a vitória do hip hop é mensurada em termos coletivos, a partir de um processo de politização da quebrada a partir de seus próprios termos. Com o afastamento de sua base comunitária, cada vez mais distante das pautas progressistas, a dimensão política do rap volta progressivamente a se aproximar de debates mais amplos da esquerda com ressonância menor em seu contexto de origem. Em outras palavras, o projeto de formação do sujeito periférico é abandonado, ou interrompido, a despeito do sucesso comercial crescente do rap enquanto gênero. Importa observar aqui é que, ao contrário do que sugerem certos analistas, esse movimento não se deve a uma suposta perda de qualidade ou de conteúdo crítico do rap nacional, e sim a uma dinâmica mais ampla de bloqueio geral dos horizontes emancipatórios progressistas, do qual a cultura periférica de resistência não está isenta.

Obviamente não estamos defendendo que o rap assuma posturas mais conservadoras para agradar ao público. Muito pelo contrário: o que se construiu foi tão forte e intenso que um movimento desse tipo só pode acontecer via rebaixamento. Mas esse deslocamento não deixa de ser profundamente sintomático e revelador de alguns impasses que atravessam não só o rap, mas o campo progressista em geral. Se o rap se torna mais progressista que sua comunidade, cabe perguntar com quem exatamente ele está se comunicando, e quais os efeitos reais dessa representação. Podemos dizer que o gênero completa sua trajetória formativa em termos comerciais, rumo a uma crescente profissionalização, e estéticos, com maior riqueza e diversidade musical. Também é bem-sucedido no sentido de oferecer um horizonte real de politização a seus membros – para ser rapper é preciso conhecimento, além de vivência – criando um verdadeiro nicho de formação de intelectuais orgânicos oriundos da periferia, algo radicalmente contestador, por se contrapor frontalmente a necropolítica do Estado brasileiro que almeja a negros mortos. No entanto, aquela que seria sua face mais radical e revolucionária dos anos 1990, a formação dos sujeitos periféricos, que implicaria em uma politização geral da periferia, é interrompida. Quem politizou a periferia, pensando em termos de massa, não foi o hip hop – não por acaso a trilha sonora do gueto é, atualmente, o funk.

A abertura temática e política do rap atual deve, pois, ser dialeticamente compreendida em todas as suas múltiplas determinações e sentidos. Se, por um lado, estamos diante de uma maior abertura política, que aponta para tentativas de superação de inconsistências internas que fragilizavam seu projeto, por outro, os avanços não deixam de representar suas próprias perdas, as quais é preciso avaliar.

***

Esse conjunto complexo de contradições pode ser observado nas canções de uma das figuras mais interessantes da nova geração do rap brasileiro. Natural de Minas Gerais, o rapper Djonga (Gustavo Pereira Marques) possui três discos lançados[13], todos com excelente recepção por parte de crítica e público. Seu flow agressivo calcado no trap, clipes provocativos e atitude combativa servem de base para um conjunto de letras bem diretas, na qual se apresentam claramente diversas das contradições que viemos discutindo. É o caso da canção Junho de 1994, presente em seu segundo trabalho (“O menino que queria ser Deus”), onde o rapper faz uma reflexão que recupera, a seu modo, o dilema colocado pelo hip hop pelo menos desde Negro Drama:

“Feridas se curam com o tempo, não com gaze \ E quando ganhei meu dinheiro eu perdi a base \ Logo eu que fiz gritos pros excluídos \ Tiração pros instruídos \ Chegar aqui de onde eu vim \ É desafiar a lei da gravidade \ Pobre morre ou é preso, nessa idade \ Saudade quando era chinelin no pé \ E quase nada pra te provar, camará”

Antigamente enfrentar medo era fugir de bala \ Hoje em dia enfrentar medo é andar de avião \ Antigamente eu só queria derrubar o sistema \ Hoje o sistema me paga pra cantar, irmão”.

Note-se que as letras caminham por uma curiosa trilha de ambiguidade – justamente um dos pontos de força dos raps de Djonga, que expõe todas suas contradições a luz do dia. Se por um lado, trata-se de uma evidente vitória substituir o medo das balas pelo medo de andar de avião, marca inequívoca da distinção social alcançada, não é menos evidente que o caráter de urgência da vitória se perde, uma vez que a origem do medo é muito menos radical. E a medida em que reconhecemos que os índices de violência racial no Brasil estão longe de diminuir, não deixa de ser também uma forma de capitulação. Da mesma maneira, soa como uma derrota o fato do sujeito que queria derrubar o sistema ter sido incorporado ao star system, ainda que em termos de sobrevivência particular possa ser lido como vitória. Ganhar dinheiro é também um problema em relação a suas origens (“perdi a base”) gerando a um só tempo um desejo nostálgico pelos tempos mais humildes (“saudade do chinelin”), e um sentimento de vitória.

A contradição presente no fato de enriquecer cantando contra os ricos –  um projeto que, ao ser bem sucedido, assume uma contradição performativa óbvia – está no cento do rap desde o início. A “solução” encontrada pelo rap dos anos 1990 era a um só tempo política e formal: a qualidade de uma canção, ou de um disco, não pode ser medida apenas esteticamente, mas a partir do estabelecimento de uma relação complexa entre ética e estética. Isso significa que em seus momentos de maior radicalidade os raps não pretendem ser interpretados como mera música, desejando partilhar uma sabedoria construída coletivamente pela periferia, integrando-a à vivência dos sujeitos. Proceder. Como afirmou Mano Brown em 1988, em entrevista à revista ShowBizz: “Não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista”. Em álbuns como Sobrevivendo no Inferno, Rap é Compromisso, A Marcha Fúnebre Prossegue, entre outros, a ética comunitária atravessa a dimensão estética de tal maneira que o valor da obra deve ser calculado por sua capacidade de, literalmente, salvar vidas.

Entretanto a medida que o mercado hip hop vai se fortalecendo sem que se resolva a desigualdade social de base que lhe deu origem, este passa a ser compreendido mais imediatamente enquanto pura estética, dotando a dimensão ética de um inequívoco caráter performático. Ou melhor, fazendo da própria política uma questão estética, mais ligada ao universo hip hop do que à comunidade periférica, da qual se separou. Ao se desvincular a vitória do rap (profissionalização) dos caminhos da comunidade, que segue no mais baixo patamar da escala social, seu potencial emancipatório é abalado, ainda que não necessariamente sua visão crítica, herdada da própria periferia. O rap segue sendo consciente, sem dúvidas, mas já não funciona tão bem como espaço de construção coletiva de um proceder comum. Como nos diz mano Brown:

“Aqueles ideais que o povo defendia, o povo esqueceu. Com aquele discurso que tínhamos em 1990, hoje, os Racionais seriam engolidos pela periferia. Seriam rejeitados. Porque, depois de dois governos Lula e de um governo Dilma, mudou a mentalidade da periferia. Não tem como desvincular os Racionais da política, a banda sempre foi atrelada ao momento político do país. E qual é o momento político do país agora? A periferia passou a ser de direita. O rap virou algo de direita, conservador. Aquele rap da época dos Racionais, hoje, é um rap religioso, moralista, que não conversa com a revolução que precisa ser feita atualmente”. (Mano Brown)

V. O crime como condição negativa de uma civilidade por vir

Talvez o principal sintoma dessa mudança de orientação do rap contemporâneo esteja no fato de que a radicalidade da pauta abolicionista – a percepção de que a política de encarceramento em massa está no centro dos mecanismos de sustentação do Estado, por meio da produção de corpos negros descartáveis – absolutamente central nos anos 1990, praticamente desapareceu. Cabe salientar que essa não é uma pauta entre outras, pois o Estado Brasileiro se funda a partir do controle biopolítico dos corpos negros. Para o rap brasileiro dos anos 1990, a figura do bandido e do ladrão nunca foi considerada como pura metáfora (ainda que não deixe de ser isso também). O bandido é precisamente a figura que incorpora a contradição central do sistema que o rap procura delimitar[14]. A questão política central desse modelo de canção passa precisamente pela ressignificação completa da figura do bandido e do criminoso, por meio da construção real de um espaço onde esses possam contemplar novos modos de existência para além da condição de corpos descartáveis que é reservado a eles pela sociedade. Quando Brown, Sabotage e MV Bill interpretam bandidos em suas composições, a ideia não é representar a figura poderosa e romântica de um gangsta cercado de dinheiro e mulheres, espécie de poder alternativo que é uma representação também do artista negro na Indústria Cultural (Djonga trabalha de maneira interessante com o bandido enquanto conceito em seu último trabalho, Ladrão, como um negro a tomar de assalto aquilo que o capitalismo branco roubou). Quando esses artistas falam do bandido, ou melhor, quando falam junto com o bandido, é o criminoso de fato que está sendo retratado, pois a ideia é elaborar um horizonte discursivo onde essa anti-voz, avesso da nação, possa efetivamente existir.

Uma das descobertas mais radicais do rap consiste na percepção de que o conjunto de problemas da periferia passa, em alguma medida, pela maneira como o Estado trata essa figura, como ela é construída enquanto “verdade” última do sistema. Creio que Sabotage é um exemplo perfeito nesse sentido: ex-gerente do tráfico, o papel que a sociedade brasileira naturalmente reservaria para ele seria o de reproduzir eternamente essa condição – não existe ex-bandido no Brasil quando se é pobre – que é a razão de ser de uma sociedade que resolve questões sociais por meio do encarceramento e do extermínio. A sociedade brasileira se constitui por meio do processo de transformar possíveis cidadãos em bandidos e marginais. Seres criados para a morte e para o esquecimento, homo sacer, razão de ser da necropolítica como sistema. Do escravo colonial ao pequeno traficante moderno, trata-se da continuidade de um mesmo projeto. É precisamente esse o lugar que o rap pretende transformar em outra coisa, possibilitando que um cara como Sabotage consiga se inserir no sistema por uma via não prevista. Ou melhor, em parte prevista, porque é ainda de música que se está falando “Crime, futebol, música, carai \ Eu também não consegui fugir disso aí \ Eu sou mais um” (Negro Drama). Mas é não previsto na medida em que se afirma que aquele lugar, que para o sistema e para a opinião pública é o da indignidade absoluta, também é um lugar dotado de complexidade, de vida, de humanidade. Não um lugar de pureza inocente (como sustenta certo sociologismo mais tosco e paternalista, que afirma que o sujeito se torna bandido exclusivamente porque ser pobre) e longe de ter o apelo sexy do gangsta (o destino do bandido é certo e nada positivo, além de ser uma figura que geralmente leva o mal para dentro da comunidade), mas certamente um lugar dotado de dignidade e ensinamentos profundos. Dentre eles, o sentido mais profundo da identidade nacional forjada sobre cadáveres.

Trata-se, pois, de um projeto que pensa uma mudança radical no estatuto social do bandido e que, portanto, aposta em uma transformação estrutural profunda naquela que é a base mesma de sustentação do próprio projeto de país, fundado na violência e no racismo. Para o rap dos anos 1990 o destino do “bandido” e daqueles que estão a margem aparece como uma espécie de imagem síntese do destino de todo jovem negro periférico, na medida em que se compreende que massacres como o do Carandiru e chacinas como a da Candelária e do Vigário Geral não foram um acidente, mas a consolidação de um projeto de Estado. Portanto oferecer alternativas reais para a vida desses sujeitos é a condição para a emancipação da periferia como um todo, uma vez que a produção do bandido preto pobre como “inumano” e, portanto, como um corpo que pode ser morto e descartado, é condição de manutenção da “normalidade” social. A radicalidade do rap desse período consiste também em reivindicar a inclusão desse sujeito, cuja exclusão é a própria condição de existência do sistema, reconhecendo no seu dilema o destino de toda periferia enquanto avesso daquilo que se chama de “civilização brasileira”. Daí a radicalidade política desse projeto, que se coloca contra o próprio modo de organização do Estado.

A pauta da negação da lógica prisional exige, portanto, a constituição de um  Estado outro, fundado sobre novas bases. Por isso seu horizonte não é nacional, nem assimilável no interior dos projetos políticos da Nova República. Não por acaso, os governos de esquerda no Brasil só viram crescer os números de encarceramento e extermínio da comunidade negra periférica. Daí a maior radicalidade desse projeto em relação as demandas por reconhecimento do rap contemporâneo. Afinal, o negro pode ser assimilado ao sistema neoliberal enquanto consumidor – ainda que não efetivamente, mas enquanto utopia dentro da ordem – mas a demanda pelo fim das prisões é uma pauta absolutamente impossível de se realizar no interior do modelo social brasileiro, de matriz colonial. Em um contexto de sequestro do Estado pela pauta econômica neoliberal, de gestão pelo terror, a incorporação política das demandas de reconhecimento perde em força política, como elemento dinamizador em um sistema de cartas marcadas. Se é correto dizer que rap segue sendo “compromisso”, cabe compreendermos de forma mais ampla quais os sujeitos, cores e valores efetivamente implicados no interior desse contexto de capitulação mundial do horizonte de transformação social à esquerda.

***

O que foi dito até aqui não significa que as questões colocadas atualmente tanto pelo rap quanto pelo campo progressista estão desvinculadas da realidade das periferias. A questão da homofobia e do machismo, bem como os novos aspectos do racismo são de fato pontos fundamentais. O que houve foi uma reconfiguração nas dinâmicas sociais do campo progressista como um todo, que afeta significativamente o campo cultural, sobretudo quando este se vincula em alguma medida a essas pautas.

Não se trata de dizer, portanto, que questões relacionadas a homofobia, misoginia e outras que estão no centro do debate político atual sejam menos urgentes ou importantes que os debates sobre racismo e encarceramento em massa. Ao contrário, como vimos, não se abrir para essas questões era uma forma de encobrimento de um ponto cego fundamental da cultura hip hop, que fragilizava todo o conjunto. Para não dizer que algumas das questões mais decisivas de nossa época tem sido colocadas por movimentos de mulheres, o grupo político que mais avança nos dias atuais em matéria de reflexão e organização social. Entretanto, tais avanços não se dão fora de contextos mais amplos e espaços de poder que reconfiguram seus sentidos mais gerais.

No momento atual de avanço global de um neoliberalismo predatório, essa abertura crítica acontece no momento em que o rap se desvinculou mais diretamente dos valores da quebrada (e vice versa), mantendo um potencial progressista que não é acompanhado pela comunidade, ao mesmo tempo que se aproveita do caráter liberal de certa parcela do mercado para firmar-se enquanto gênero junto aos consumidores progressistas de hip hop. Os resultados são cada vez mais mediados pelo star system, o que resulta em perda de potencial imediatamente político, ou um modelo de “resistência” que se incorpora ao status quo, não pelos temas, que confrontam o senso comum, mas na formalização de um tipo de discurso de resistência que não resiste, porque mobiliza apenas os seus próprios agentes. Ora, a força política do rap deve-se historicamente não apenas a politização de seus integrantes, mas a capacidade (virtual) de politização da periferia, contribuindo para a formação de sujeitos políticos periféricos, verdadeira raiz de sua radicalidade, a um só tempo formal e política. Daí que seu caráter progressista atual não deixe de ser regressivo a seu modo, na medida em que aquilo que constituía o dilema central em “Negro Drama” (a ascenção do rapper em um contexto de precarização de seus irmãos periféricos) se converte em modelo a se atingir e padrão de vitória – a formação de uma classe média negra empoderada e intelectualizada como paradigma que, dadas as condições de desmonte geral da sociedade, retiram do horizonte a possibilidade de se converter em projeto para todos.

É claro que as relações entre a dimensão política e estética que viemos acompanhando até aqui tem de ser observadas com muito cuidado e atenção. Para o campo político de esquerda o afastamento da base popular revela-se fatal em termos de viabilidade política, afetando negativamente a capacidade de compreensão de mundo de seus integrantes e redundando numa crise profunda que exige uma reformulação de seus termos principais. No caso do rap, ao contrário, trata-se de uma trajetória de “sucesso”: seu apelo comercial é cada vez maior (ultrapassando o rock em termos de viabilidade comercial), e continuam sendo produzidos álbuns de qualidade, bastante reveladores de aspectos sócio culturais decisivos de seu tempo. O movimento que é fatal para o capo político de esquerda não necessariamente é fatal para o campo cultural, que segue outros parâmetros. O que revela entre outras coisas que a lógica neoliberal pode caminhar tranquilamente inclusive com o olhar crítico mais progressista e avançado, desde que cortados determinados vínculos. De todo modo, a questão é muito mais complicada do que simplesmente dizer que “o rap se vendeu”, pois diz respeito não apenas a tomadas de posição de grupos específicos, mas sim das próprias condições reais de construções do campo progressista como um todo, que mesmo quando segue caminhos interessantes, possui um peso a lhe tolher voos mais altos. Em todo caso, fica patente uma vez mais que os fenômenos culturais podem completar sua formação sem o correspondente avanço social.

Referências Bibliográficas

AB’SABER, Tales. Brasil, a ausência significante política (uma comunicação). O que resta da ditadura: a exceção brasileira. São Paulo, Boitempo, p. 187, 2010.

ALLUCCI, Renata R. Mulheres de palavra: um retrato das mulheres no rap de São Paulo. São Paulo, Allucci & Associados, 2016.

ARANTES, Paulo. Abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade no Brasil (entrevista). Brasil de Fato. São Paulo, nov. 2018.

ARANTES, Paulo. O novo tempo do mundo: e outros estudos sobre a era da emergência. São Paulo, Boitempo Editorial, 2015.

BROWN, Mano. Hoje a luta das pessoas é individual. Não vejo mais a luta de classes. GauchaZH, fev. de 2018.

CATALANI, Felipe. A decisão fascista e o mito da regressão. Blog da Boitempo. São Paulo, julho de 2019.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo, Boitempo Editorial, 2017.

FELDMANN, Daniel. A crise contemporânea do capitalismo: reflexões a partir de um debate com as abordagens sistêmicas de Arrighi, Fiori e Wallerstein. Economia e Sociedade, v. 28, n. 2, p. 339-364, 2019.

FELIX, João Batista de Jesus. Hip Hop: cultura e política no contexto paulistano. Universidade de São Paulo, 2006 (tese de doutorado).

FRASER, Nancy. Progressive neoliberalism versus reactionary populism: a Hobson’s choice. The Great Regression. Cambridge, Polity, 2017.

GUILLUY, Christophe. No Society. La fin de la classe moyenne occidentale. Flammarion, 2018.

OLIVEIRA, Acauam Silverio de. O fim da canção? Racionais MC’s como efeito colateral do sistema cancional brasileiro. 2015. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo.

NOBRE, Marcos. O fim da polarização. Revista Piauí, v. 51, p. 133-149, 2010.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento. São Paulo, Editora 34, 1996.

SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo, Três Estrelas, 2012.

SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo, Três Estrelas, 2017.

TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. Editora Companhia das Letras, 2015.

 

Fonogramas

RACIONAIS, MCs. Sobrevivendo no inferno. Cosa Nostra, 1997.

DJONGA. Heresia. Ceia Ent., 2017.

________. O menino que queria ser Deus. Ceia Ent., 2018.

________. Ladrão. Ceia Ent., 2019.

 

[1] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. São Paulo, Boitempo Editorial, 2017.

[2] SAFATLE, Vladimir. Só mais um esforço. São Paulo, Três Estrelas, 2017.

[3] NOBRE, Marcos. O fim da polarização. Revista Piauí, v. 51, p. 133-149, 2010.

[4] ARANTES, Paulo. Abriu-se a porteira da absoluta ingovernabilidade no Brasil (entrevista). Brasil de Fato. São Paulo, nov. 2018.

[5] Isso a despeito das chances reais de sucesso eleitoral de Lula, principal nome do partido, que possivelmente venceria as eleições em 2018 caso não houvesse se tornado um preso político. Não se deve confundir o vínculo da popular com Lula com um apoio ao projeto de poder petista. O que aconteceu foi que a esquerda “autorizou” o – ou foi coagida pelo – lulismo a centralizar o processo de mediação com as bases populares, cujo resultado foi a formação de um vínculo popular bastante real com Lula e uma progressiva ruptura dessas mesmas bases com projetos políticos de esquerda. Sintomático nesse sentido é o fato de que, a despeito do sucesso eleitoral de Lula, as manifestações a favor de sua liberdade tiveram baixa adesão popular.

[6] CATALANI, Felipe. A decisão fascista e o mito da regressão. Blog da Boitempo. São Paulo, julho de 2019.

[7] FRASER, Nancy. Progressive neoliberalism versus reactionary populism: a Hobson’s choice. The Great Regression. Cambridge, Polity, 2017.

[8] CATALANI, Felipe. Idem, ibidem.

[9] FELIX, João Batista de Jesus. Hip Hop: cultura e política no contexto paulistano. Universidade de São Paulo, 2006 (tese de doutorado).

[10] ALLUCCI, Renata R. Mulheres de palavra: um retrato das mulheres no rap de São Paulo. São Paulo, Allucci & Associados, 2016.

[11] BROWN, Mano. Hoje a luta das pessoas é individual. Não vejo mais a luta de classes. GauchaZH, fev. de 2018.

[12] Idem, ibidem.

[13] Heresia (2017), O menino que queria ser Deus (2018) e Ladrão (2019).

[14] A categoria “bandido” funciona aqui mais ou menos como o “operário” marxista, tomado não em sentido sociológico, mas em sentido ontológico, como a heterogeneidade social que não pode ser integrada, o homo sacer, condição negativa de fundação do sistema. Justamente o elemento que se excluí para garantir a organicidade do conjunto.

Share this post

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *