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O que o rap pode ensinar para o Direito?

Esse texto é a transcrição de uma fala apresentada no curso de extensão ‘Duplo sentido de tudo: direito, música é cultura’ oferecido durante a pandemia de COVID-19 em agosto de 2020 na Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense, ministrada pelos profs. Adriana Vieira e Douglas Leite.

I.

Boa noite. Eu gostaria inicialmente de agradecer ao convite da Adriana para estar com vocês aqui hoje. Eu me sinto muito feliz quando posso compartilhar algumas questões em espaços que não são aqueles por onde eu geralmente circulo, e sem dúvidas poder falar sobre música popular para alunos e professores do curso de direito é um desses momentos que não acontecem com frequência. Para azar do direito, que fique bem claro.

Mas esse convite já diz muito sobre a Dri (professora doutora Adriana Vieira), que é um desses espíritos provocadores, no melhor sentido do termo. Aquela pessoa que tem um pensamento inquieto, que não se conforma com o convencional e o comum, forçando-se a transitar por lugares “fora da caixinha”. E tanto esse curso, quanto as disciplinas que ela propõe, são provas desse espírito inquieto. Afinal ela tem a audáciade propor que a música popular, esse objeto tão simples, singelo e delicado, teria algo para ensinar a nossos ilustres doutores e magistrados. É muita audácia acreditar que nossas “academias de louros e letras”, como diz o Tom Zé, teriam algo a aprender com a música popular.

O que essa proposta de curso mostra pra gente é que a Adriana e o Douglas compreenderam logo de cara que a canção brasileira não é apenas um modelo de entretenimento – embora seja isso também, inclusive porque a festa é uma forma de saber – mas, sobretudo, umsistema de pensamento. Ou melhor, um conjunto de sistemas de pensamento, um repositório de sabedorias diversas, ou de sabenças, como se costuma dizer nas religiões de matriz africana.

O que eu gostaria de propor aqui é tomar uma dessas sabenças, em particular aquela produzida pela cultura hip hop, e a partir dela apresentar uma perspectiva que pode ou não ser útil para tratar algumas questões do campo do direito, que é aquilo que está na provocação inicial da Adriana. Portanto, a minha ideia não é fazer uma fala exclusivamente sobre o rap, mas usar alguns aspectos dessa visão de mundo para pensar um determinado conjunto de problemas que em alguma medida estão inscritos no corpo do sistema jurídico brasileiro.

II.

Estou dando essa volta toda só para dizer que vou começar minha exposição fazendo aquilo que eu acredito ter sido a razão principal pela qual a Adriana me convidou para compartilhar desse momento com vocês, que é tomar o hip hop como um conjunto de provocações ao campo jurídico. E para isso eu gostaria de começar apresentando um conjunto bastante significativo de imagens.

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A primeira imagem é uma foto oficial do Conselho Superior do Ministério Público de Goiás, que mostra os vinte e um promotores recém aprovados no último concurso. Três mulheres e dezoito homens brancos, super simpáticos e belos, como bem podemos observar. Uma imagem que, como foi comentado por um usuário do twitter, representa muito bem a representatividade étnico-racial da Escandinávia. Ou por uma outra usuária que disse que não via um mar de pessoas brancas assim desde a última convenção nacional republicana. A piada é boa, mas a verdade é que quem acompanhou a votação do impeachment da Dilma, em 2016, pôde ver uma configuração étnica muito similar.

A segunda imagem, por sua vez, é a foto oficial do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 1889. Ou melhor, em 2019. A terceira, uma foto dos Racionais MC’s na década de noventa, seguido de uma foto do Vicent Rosemblatt – fotógrafo francês que há mais de quinze anos fotografa bailes funk por todo o Brasil, mas sobretudo no Rio de Janeiro.

Eu trouxe essas imagens para que nós possamos interpretá-las a partir daquilo que o rap nos ensina enquanto sistema de pensamento. E a primeira coisa que precisamos ter em mente é que seu diálogo vai ser, em primeiro lugar, com os sujeitos negros e periféricos, o que significa que os sujeitos das duas primeiras imagens têm que ocupar, necessariamente, um lugar de escuta e aprendizado. O que não é uma tarefa muito fácil, posto que a sociedade brasileira é historicamente construída para que a voz desses cidadãos seja vista como o lugar mesmo da verdade, a única fala possível, que cria a própria realidade quando enunciada.

Podemos, portanto, dizer que a primeira lição do rap seria essa: humildade. O reconhecimento de que a periferia tem formado intelectuais muito mais interessantes, com um pensamento muito mais radical do que os mecanismos tradicionais de saber do país oficial é capaz de produzir. O que não é algo fácil de reconhecer, posto que envolve um aprendizado de outro processo de escuta por parte daqueles que construíram a história do país de modo a não precisar, em hipótese alguma, abrir mão dos próprios privilégios.

O primeiro recado do rap para o Direito poderia ser, portanto, o seguinte: “Playboy bom é Chinês, Australiano \ Fala feio e mora longe, não me chama de mano”, um dos versos de Da ponte pra cá, dos Racionais.

Na sequência, o rap diria para os jovens representados na última imagem para se orgulharem da sua condição enquanto sujeitos negros periféricos; para transformar a sua dor em combustível de luta; para organizar seu ódio de maneira produtiva. Andar pelo certo, seguir no proceder e cuidar dos seus. Além disso, diria para esses jovens que ficassem muito espertos com a galera das primeiras imagens, operadores do direito. Mais do que desconfiar de algum deles, é preciso desconfiar do próprio espaço que os constitui enquanto tal. Saber que os sujeitos das primeiras imagens estão diretamente implicados nos processos de seletividade penal que fazem encarcerar jovens negros periféricos ao mesmo tempo que mobiliza todo o seu aparato judicial para livrar o seu próprio grupo de toda forma mais séria de responsabilização. Ou seja, são sujeitos diretamente implicados na absolvição de seus próprios crimes e na perpetuação das diversas formas de criminalização da negritude. Todo cuidado com eles é pouco.

Aqui já podemos começar a delinear a maneira como o rap compreende o sistema jurídico e seus agentes. Ele constrói uma compreensão da realidade que é muito bem definida por uma formulação do Facção Central, que vai afirmar que o Brasil não é propriamente um país, e sim um campo de concentração a céu aberto, cujo objetivo final é o desenvolvimento de um conjunto de tecnologias que produzem o negro enquanto sujeito descartável, seja pela morte, seja pelo encarceramento. “O ser humano é descartável no Brasil \ como modess usado ou Bombril”, já diziam os Racionas. E da perspectiva do rap, o sistema jurídico claramente é uma dessas tecnologias de morte. Daí vocês podem tirar que a relação que se estabelece entre os dois campos não é das mais amistosas.

III.

A primeira coisa que precisamos ter em mente ao falarmos de hip hop, é que o movimento não consiste apenas em um conjunto de práticas culturais, e sim em uma tecnologia de guerrilha forjada dentro das periferias que buscam por formas reais e concretas de sobrevivência. Nesse sentido, o hip hop está inserido dentro do horizonte mais amplo do movimento negro, que procura desenvolver formas de compreensão, resistência e enfrentamento do racismo. E nesse processo, uma das primeiras coisas que ele vai precisar definir é quem é quem no interior do racismo brasileiro. Portanto, ele vai precisar fazer uma coisa que deveria ser simples, mas que por conta da especificidade do racismo brasileiro e de seus processos de racialização se torna um desafio imenso: definir quem é negro e quem é branco, e por quê. No Brasil isso está longe de ser auto evidente, e esse é um ponto absolutamente fundamental.

A professora Liv Sovik tem um livro muito interessante que se chama Aqui ninguém é branco, onde ela sustenta que o racismo brasileiro cria uma tecnologia que desenvolve uma forma específica de regulação de relações de visibilidade e invisibilidade. Um sistema em que a mestiçagem adquire uma visibilidade excessiva e constante, enquanto negritude e branquitude sofrem processos contínuos de apagamento, em que cada uma ocupa polos opostos da equação: ou seja, enquanto a branquitude desaparece por se confundir com a própria norma universal, a negritude desaparece para se tornar uma espécie de não lugar, o avesso desse universal branco. O que segundo a autora configura uma particularidade do racismo brasileiro, que é ao mesmo tempo um processo de ultra exposição da violência racial e de sistemático apagamento das categorias raciais a partir das quais o racismo é tradicionalmente compreendido. Um excesso de racismo aliado a uma insuficiência de mecanismos de articulação simbólica de seus processos.

Isso significa que os movimentos de combate ao racismo têm por aqui um duplo trabalho. Além de resistir às diversas formas de violência, eles precisam encontrar mecanismos de nomeação tanto dos acontecimentos quanto dos sujeitos que praticam esses atos, porque as categorias simbólicas que dariam conta da violência racial passam por diversos sistemas de apagamento, que no limite vão criar um curiosíssimo modelo de racismo sem raça. O que a princípio parece um contrassenso, mas que na verdade indica, entre outras coisas, que a categoria ‘raça’ nunca foi o fundamento das práticas racistas. Ao contrário, é o racimo que inventa a raça como fundamento de seu sistema de dominação,o que significa que ele pode existir tanto no interior de um contexto que assume formalmente a separação binária entre negros e brancos, quanto em um sistema que se orienta a partir da lógica da mistura racial. Pois não custa lembrar que raça é uma categoria ficcional em ambos os modelos.

É por isso que toda vez que o movimento negro ou o hip hop procuram elaborar formas de organização e resistência da comunidade negra, eles precisam também identificar quem é o branco brasileiro, essa entidade absolutamente escorregadia que tem nessa capacidade de apagamento discursivo de seus processos de racialização uma das suas principais estratégias de dominação.

Portanto, outra coisa que o rap nos ajuda a entender é quem são os brancos brasileiros. Onde vivem? Como se reproduzem? O que os constitui enquanto sujeitos?

A branquitude vem recentemente se tornando um objeto de pesquisa na academia, mas nós temos um longo histórico de representação desse lugar que não ousa dizer seu nome ao mesmo tempo em que defende a todo custo seus privilégios. Lima Barreto, Machado de Assis, Guerreiro Ramos, Cida Bento e diversos outros sujeitos oferecem uma importante chave de compreensão da branquintude brasileira. O rap, por sua vez, vai pensar essa branquitude sobretudo em dois aspectos: como uma patologia sociale como umsistema de poder. E eu queria me deter inicialmente nesses dois aspectos para depois pensar as estratégias de resistência negra presentes no rap.

IV.

Sobre as patologias do branco brasileiro, acho importante dizer que um dos primeiros intelectuais a fazer da branquitude objeto de pesquisa mais sistemático foi o Guerreiro Ramos – um sociólogo negro importantíssimo. Uma dessas figuras que quase desapareceram da nossa história, mas que tem uma obra absolutamente fundamental e que chegou a ser exilado pela ditadura militar. Foi ele que escreveu, ainda nos anos 1950, um ensaio chamado Patologia social do branco brasileiro, muito antes dos estudos globais sobre branquitude se difundirem.

Não pretendo me deter nessas patologias, pois acredito que o que interessa mais para nossa discussão seja pensar a branquitude como sistema de poder, mas não vou resistir à tentação de falar de pelo menos duas delas. A primeira é o famoso medo branco, um traço patológico decisivo da branquitude brasileira, que é tomada por um pavor intenso e inexplicável dos não brancos. Diga-se de passagem, esse tema foi tratado de forma brilhante por Célia de Azevedo em um livro chamado Onda Negra, Medo Branco.

Acredito que possamos afirmar com certa tranquilidade que esse medo está na base mesma do pensamento jurídico brasileiro pós escravidão. Porque a grande questão da democracia brasileira, que é uma invenção das elites, desde o início, foi: como manter os privilégios dos antigos senhores brancos em um contexto em que os negros são formalmente livres, e, portanto, se tornam sujeitos de direito? Ou seja, como manter o sistema de servidão e exploração do corpo negro em um regime formalmente democrático? O grande medo das elites locais, que na verdade era o grande medo de toda elite europeia, era que acontecesse aqui o mesmo que aconteceu no Haiti, que é o mais radical paradigma de liberdade humana de que se tem notícia na história moderna, uma revolução em que os negros tomam as rédeas de sua própria história e com isso redimem toda a humanidade.

O resultado disso é que a própria concepção de país que toma forma por aqui é, em alguma medida, resultado desse medo intenso da branquitude, que vai por isso desenvolver uma poderosa tecnologia de repressão e subordinação dos não brancos. Mas o mais curioso disso tudo é que os brancos realmente se convenceram de que os não-brancos é que eram perigosos, fazendo desse medo um dos principais fundamentos do seu sistema social. O Guerreiro Ramos vai dizer que isso é uma patologia porque é de fato um feito psíquico absolutamente extraordinário que o branco brasileiro tenha se convencido de que o monstruoso e o assustador da história são os não brancos, e não eles próprios. É preciso uma distorção muito grande da realidade para se chegar a essa conclusão. Principalmente se a gente considerar que a história do povo branco é toda ela construída em cima da violência, da barbárie, da escravização de outros povos, de perversidades de toda ordem e de um processo de genocídio constante que nunca foi interrompido. A violência é praticamente a condição existencial do branco. A história da civilização branca é a história das suas tecnologias de matança e extermínio. Não por acaso Davi Kopenawa vai chamar os brancos de povo da destruição. E é esse povo que se convence que os violentos e monstruosos são os outros. De tal maneira que aimpressão que nós temos é que aquilo que os brancos pensam enxergar nos não brancos nada mais é do que a projeção de seus próprios impulsos homicidas.

É importante dizer que o rap assume para si essa imagem que apavora os brancos. Os rappers definem a si próprios como pesadelo do sistema, aquilo que não deixa o cidadão de bem dormir sossegado à noite, que é uma maneira de assumir uma posição de não subalternidade marcada pelo conflito. Ao fazer isso, oferece uma representação invertida e brilhante do próprio racismo, que é devolvida enquanto arte a seus responsáveis.

V.

Outra das patologias da branquitude que eu gostaria de citar rapidamente é a que eu chamo de síndrome de Brás Cubas. Que é aquela crença que o branco brasileiro tem de possuir alguma espécie de superpoder que faz dele um sujeito muito especial e merecedor de todos os seus privilégios. Na verdade, se trata de um tipo particular de infantilização narcisista, cujo fundamento é a percepção de que o Brasil funciona para ele como uma espécie de parque de diversão gigante, onde todos os seus desejos mais perversos se realizam. Ou seja, é uma sociedade marcada pela impunidade e seletividade penal, que gera essa sensação de superpoder.

Para quem não se recorda, Brás Cubas é o personagem principal do primeiro romance da maturidade do Machado de Assis, um sujeito cuja existência se resume a ser proprietário de escravos. Uma figura absolutamente medíocre, sem nenhuma obra de relevo, sem vocação alguma, que viveu de forma parasitária da herança dos pais, e que depois viveu também da política, onde continuou sendo tão inútil quanto antes. Incapaz de amar, violento ao extremo, hipócrita, cínico e fundamentalmente estúpido, mas que passava por inteligente porque havia decorado meia dúzia de frases em latim e porque estava cercado por uma elite tão estúpida quanto ele. E a pedra de toque da perversidade machadiana foi fazer de Brás Cubas um bacharel em direito, com título de doutor.

E era esse sujeito absolutamente medíocre, sem talento algum, que nunca trabalhou na vida, profundamente racista e sexista, que acreditava piamente que seria capaz de inventar um medicamento para curar com todos os males da humanidade – o emplasto Brás Cubas. Ele realmente acreditava nisso e literalmente morreu dessa ideia fixa. É essa a síndrome que atravessa a branquitude brasileira de cima a baixo. A gente reconhece exemplo disso em todos os lugares. Os homens brancos ricos realmente acreditam que são dotados de um talento especial, um toque divino, apenas por serem ricos. O Luciano Huck acredita que pode ser presidente do Brasil porque ele é rico. O Roberto Justus gravou um disco onde canta Frank Sinatra, porque ser rico imediatamente faz dele um cantor talentoso. Mas eu queria mostrar um exemplo que talvez seja o mais perfeito exemplar do ego do homem branco brasileiro, que são as declarações maravilhosas do Michel Temer, que não por acaso tem formação em direito (notem como vocês estão muito bem acompanhados).

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VI.

E agora eu queria entrar no segundo aspecto de delineamento da branquitude, que é a sua caracterização enquanto sistema de poder. Porque eu uso tom de brincadeira, inclusive como forma de adotar o humor como mecanismo de ridicularização do poder, mas é óbvio que tudo isso é muito sério. Porque a branquitude, no limite, é uma tecnologia de extermínio. E daí a gente entra naqueles dados de sempre: a cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. Enquanto a mortalidade de mulheres brancas caiu 7% entre 2005 e 2015, o homicídio de mulheres negras subiu 22% no mesmo período. Enfim, aquelas estatísticas que todos nós conhecemos.

Mas eu queria falar desse aspecto da branquitude não da perspectiva dos dados objetivos, mas a partir da análise de uma cena de Bacurau. Aquela cena bastante emblemática em que o detestável casal de sudestinos, formado por uma carioca e um paulista, são humilhados e na sequência mortos pelos americanos fascistas. Para quem não se lembra ou não assistiu, trata-se de uma das cenas mais conhecidas do filme, em que essas personagens que haviam trabalhado para os gringos para ajudar a localizar e entregar os habitantes de Bacurau pra chacina, sentam-se na mesa com os americanos depois de concluir o serviço. É uma cena muito tensa porque os fascistas americanos fazem questão de deixar bem claro desde o início que, da perspectiva deles, aqueles dois brasileiros não eram brancos. Pelo menos não tão brancos quanto eles. E que por isso eles seriam mortos.

Pois bem, um dos pressupostos da cena, que faz com que ela cumpra também um papel catártico para quem está torcendo pelo vilarejo de Bacurau, é que ela toca na ferida narcísica do branco brasileiro, que se julga branco aos olhos de seu próprio país, mas é humilhado assim que encontra algum grupo mais poderoso. Nós nos sentimos vingados quando vemos aquele senso de superioridade arrogante sendo jogado por terra. Só que a meu ver essa cena revela ainda outro aspecto fundamental, que tem menos a ver com um erro de percepção do casal do que com um acerto fundamental. Eu acredito que existe uma certa interpretação equivocada por parte do público no que se refere a identidade racial do casal sudestino. Para dizer logo de uma vez, eu acredito que essas personagens não estão de todo errado quando afirmam serem brancas, assim como os americanos também não estão de todo errado ao dizer que elas não são. Ou seja, eles são brancos e não-brancos ao mesmo tempo, justamente porque a categoria raça não existe enquanto verdade absoluta, sendo intrinsicamente relacional.

No geral, o público ri do casal porque goza com o momento em que o filme revela que eles não eram os brancos que tão arrogantemente pensavam ser. E ri também da sua estupidez por acreditar na sua branquitude. Por isso achamos muito bem-feito quando os verdadeiros brancos – estrangeiros, naturalmente – colocam os traidores em seu devido lugar, punidos por se colocar contra seu próprio povo, mestiço que nem eles. Mas a questão a se investigar aqui é a seguinte: porque nós acreditamos tão facilmente quando os americanos afirmam ser o que são, ou seja, brancos? Afinal de contas, a identidade étnica deles é tão ficcional quanto a dos sudestinos. No fundo, o que está em questão é a percepção mais ou menos consciente por parte do público de que o branco é aquele que, no limite, tem o poder de definir o não-branco a partir de seu poder de matar. Ou, como diz Franz Fanon, branco é aquele que tem o poder de atribuir identidade aos outros sem que assuma uma identidade própria.

Ou seja, existe uma percepção implícita de que aquilo que fundamenta as identidades étnicas é, no limite, a violência. Como o não-branco é sempre aquele que morre, a conclusão a que o público chega é que os sudestinos não são brancos porque eles foram mortos – e é muito interessante que mesmo para um público progressista como o de Bacurau o não-branco segue sendo definido a partir de sua morte, justamente porque o racismo estrutura a percepção de todo mundo, progressistas ou conservadores, de forma profunda.

Entretanto, me parece ser absolutamente fundamental realizar um segundo movimento para escapar da armadilha encantatória das identidades fixas. É preciso desconfiar da perspectiva dos americanos, reconhecendo que enquanto os sudestinos detinham o poder de matar, eles eram, efetivamente, brancos. Eles não estavam enganados em relação a sua identidade. Eles só deixam de ser brancos quando aparece alguém com maior poder de fogo e, portanto, maior poder de definição identitária. Ou seja, os motoqueiros estavam certos ao se reconhecerem enquanto brancos, porque o branco não é uma identidade com um conjunto específico de características, mas uma função no interior de uma estrutura definida pelo próprio racismo. Função essa que consiste na capacidade de estabelecer a identidade não-branca a partir da violência. Portanto, a branquitude não é um conjunto de características essenciais, mas uma tecnologia de morte organizada por meio de práticas estruturais que fundamentam a sociedade de maneira objetiva.

O casal sudestino, portanto, não era racista por um equívoco de percepção, por um desvio moral, mas por um sistema de poder no qual eles se localizavam efetivamente no lado branco da força. O fato dessa branquitude poder ser revogada por um grupo ainda mais poderoso não significa que ela nunca tenha existido, ou que ela fosse mera miragem ideológica. Significa apenas que ela não existe de forma absoluta, enquanto categoria a-histórica. Porque senão corremos o risco de considerar que os verdadeiros brancos, com B maiúsculo, são apenas aqueles que existem na Europa, ou seja, considerando que o branco é sempre um Outro distante que nunca se apresenta integralmente a nossos olhos.

O racismo enquanto mecanismo de controle social vai sempre estabelecer diferenças entre brancos e não brancos a partir da seleção de quem deve morrer e quem pode matar. As identidades étnicas e raciais, portanto, dizem respeito a esse controle biopolítico dos corpos. Portanto é fundamental que a gente reconheça a verdade do posicionamento dos sudestinos, porque senão seremos incapazes de reconhecer aqueles sujeitos que estão nas fotografias mostradas no início como brancos, o que é um dos truques mais elementares do racismo mestiço de matriz freiriana.

VII.

Até aqui eu não entrei diretamente no território do rap, mas me aproximei dele enquanto estrutura de pensamento, para pensar como o rap enxergaria esse espaço que nós estamos ocupando nesse momento. Mas agora eu gostaria de avançar em alguns aspectos do rap propriamente dito.

Uma das novidades mais importantes do rap brasileiro consistiu na formação de um ponto de vista de tipo novo. Uma fala construída pela periferia para a periferia, e que mudaria radicalmente o cenário cultural do país. A novidade não está necessariamente na incorporação das vozes dos marginalizados ao campo da música popular, que acontece também em outros estilos musicais, como o samba. A diferença é que o sujeito que fala no rap não deseja (ou não consegue) mais servir enquanto símbolo de uma coletividade nacional (como no caso do samba). O foco do rap está na construção de uma fraternidade de iguais no interior de uma comunidade periférica que se afirma contra um determinado projeto de integração nacional. A fala do rapper é contra os playboys e contra o Estado, a favor de sua comunidade.

A juventude negra periférica é a primeira a perceber que o projeto de integração nacional – aquele que orientou as políticas brasileiras desde o começo do século, a partir do nacional desenvolvimentismo – tinha deixado de existir com o neoliberalismo (que toma fôlego aqui a partir de meados dos anos 1980). É a periferia que ensina isso para Universidade, inclusive. Que oBrasil deixou de existir enquanto projeto, e que, portanto, seria preciso mudar todo o modelo de organização político, estético e cultural.

Nesse sentido, o rap se desvincula de alguns dos principais pilares de organização ideológica da cultura popular brasileira até então: a identidade nacional pensada em termos de conciliação, tanto racial, via mestiçagem, quanto de classe, via nacional desenvolvimentismo. É como se o gênero tomasse forma a partir dos destroços desse projeto de formação do país, comprometendo-se radicalmente com aqueles que ficaram socialmente relegados às margens de um projeto de integração que nunca chegou a se completar. A aposta do rap nacional está na construção de uma identidade formada a partir da ruptura com essa tradição conciliatória, por meio da afirmação de uma comunidade negra que se desvincula do projeto de nação mestiça tal como concebida até então.

VIII.

Isso nos leva diretamente ao segundo ponto: a ideia de que o rap ajudou a formalizar e a compreender o modo de organização do racismo brasileiro, ao demonstrar de forma brilhante as maneiras como ele se articula tanto social quanto ideologicamente. Depois dos Racionais, não tem mais como não reconhecer que o Brasil é um país extremamente racista [quer dizer, o Sérgio Camargo até consegue, mas aí é cinismo puro]. Depois dos Racionais, o mito da democracia racial não tem mais como se sustentar tranquilamente.

Entre outras coisas, o grupo ajudou a consolidar a visão de que o racismo brasileiro não é velado, ou sutil. O racismo brasileiro é bem explícito, sendo atirado em nossa cara o tempo todo. Ele aparece nos corpos negros que lotam os programas policiais, nos silenciamentos, nos índices de violência contra a comunidade negra. Esse racismo tem que ser ostensivamente explícito para deixar muito claro para os brancos que, em uma nação que se compreende enquanto miscigenada, eles serão protegidos e preservados a todo custo. Que eles não têm com o que se preocupar. Ele serve para aplacar o medo branco.

O racismo brasileiro é uma estrutura social que funda a nação. Isto é, só existimos enquanto sociedade por meio do racismo, em um país construído literalmente sob cadáveres. Nesse sentido ele é muito explícito. Ele é tão explícito que o menino Miguel morreu um dia depois dos protestos pelo Black Lives Matter. Só para deixar bem claro que tipo de país nós somos.

O Florestan Fernandes tem uma sacada muito boa nesse sentido. Ele costumava dizer que os Brasileiros não têm vergonha de ser racistas, mas têm muita vergonha de dizer que são racistas. Essa diferença é fundamental. O que é velado e escondido e preservado não é o racismo, mas duas outras coisas. Em primeiro lugar, a identidade dos racistas – i.e., a identidade do branco brasileiro. Os racistas brasileiros são preservados e exaltados como heróis. E é aí que entra outra sacada do rap. Porque ele reconhece que o racismo no Brasil consiste não em ocultar seus crimes, mas em defender os criminosos e construir o lugar do negro como corpo que pode e deve ser exterminado. Existe um mecanismo de proteção aos racistas e um mecanismo de desidentificação dos racistas com seu próprio crime. Muitas vezes o racista no Brasil sequer compreende que está sendo racista, tamanho é o grau de naturalização do processo no país. O Brasil inteiro pode ser considerado, portanto, como um grande sistema racista que não se enuncia enquanto tal. A fórmula do Florestan serve como definição do projeto nacional, e não só de alguns sujeitos.

Em segundo lugar, apaga-se da história o protagonismo do povo negro (a não em alguns setores, como futebol, música popular e religiões afro). Isso é um movimento que a gente vê o tempo todo, em todos os lugares e se confunde com o próprio imaginário nacional. Para ficar só no campo da literatura, na história oficial, Machado de Assis é branco, Castro Alves é mais importante que Luiz Gama e Joaquim de Macedo é mais importante do que a Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista brasileira, negra e abolicionista. Ou seja, a história cultural do Brasil é narrada de ponta cabeça com o objetivo explícito de passar um pano para os brancos por meio do sistema de pactos silenciosos da branquitude.

Um outro exemplo mais recente foi com relação aos protestos ocorridos no Brasil quando da morte do George Floyd. Assim que os protestos tiveram início, alguns grupos imediatamente começaram a repetir aquela velha ladainha de que os negros americanos são mais ativos que os daqui, e que o movimento negro brasileiro não faz nada. Vários intelectuais e militantes tiveram então que vir a público mais uma vez para desmentir essa história, simplesmente falsa. O movimento negro brasileiro, depois de décadas de perseguições, inclusive se unifica nacionalmente em 1978, em plena ditatura militar, por conta da morte do feirante Robson da Luz, assassinado pela polícia. Aqui ocorre uma inversão curiosa: os brancos contam a história de uma forma totalmente enviesada e porca, de maneira a ocultar seus próprios crimes, e depois nos acusam de não fazer nada.

O que o rap se esforça por fazer é tomar a nossa história das mãos brancas, de modo a subverter a história oficial e construir uma coletividade a partir de outras bases. É por isso que ele recupera lideranças negras do Brasil e de fora do Brasil, e é por isso que ele denuncia os crimes raciais do Estado, procurando romper com esse pacto de silenciamento.

IX.

Existe ainda um último ponto, a meu ver é fundamental para se pensar a contribuição do rap para o pensamento brasileiro e para a formação política da juventude negra. Trata-se da percepção muito precisa que o rap tem daquilo que nós estamos tratando hoje por racismo estrutural. A associação que o Racionais faz entre negritude e marginalidade é fundamental para se compreender como o racismo brasileiro se organiza de maneira estrutural, que pouco tem a ver com o fato de se gostar ou não de pessoas negras. Ao longo dos anos 1990 até boa parte dos anos 2000, tanto os Racionais quanto o rap brasileiro em geral irão reconhecer no destino do bandido e do marginal o segredo para a emancipação da periferia como um todo, uma vez que a produção do bandido preto pobre como “inumano” é condição de manutenção da normalidade social pensada enquanto necropolítica.

No trabalho do rap dos anos noventa, o destino do “bandido” e daqueles que estão a margem do sistema aparece como uma espécie de imagem síntese do destino de todo jovem negro periférico, na medida em que se compreende que massacres como o do Carandiru e chacinas como a da Candelária e do Vigário Geral não foram um acidente, mas a consolidação de um projeto de Estado. Portanto, oferecer alternativas reais para a vida desses sujeitos é a condição para a emancipação da periferia como um todo, uma vez que a produção do bandido preto pobre como “não sujeito” e, portanto, como um corpo que pode ser morto e descartado, é condição de manutenção da “normalidade” social.

Portanto, é possível dizer que no centro do debate do hip hop dos anos 1990 estava um projeto radical de abolicionismo penal periférico, que partia da percepção de que o Estado Brasileiro funciona a partir da criminalização da comunidade negra e seu conjunto de valores. E que, portanto, é a própria concepção do Brasil como Estado Penal Militarizado que precisava deixar de existir. Não é preciso reforçar a radicalidade desse projeto, que não foi abraçado por nenhum lado do espectro político, seja à direita, seja à esquerda.

Nesse sentido, não seria exagero afirmar que nunca houve no Brasil uma produção estética tão radicalmente engajada, nem mesmo quando pensamos no contexto mais politizado da MPB dos anos 1970. Não por conta do conteúdo político das letras, ou da participação política dos integrantes, mas porque o rap rompe os limites entre ética e estética de uma maneira muito mais radical do que qualquer outra música já feita no Brasil, a tal ponto que as letras das canções muitas vezes assumem um caráter proverbial, quase bíblico, no sentido de que elas desejam fazer parte da vida daqueles que a escutam, enquanto um código coletivo de conduta ética. O rap almeja ser mais do que simplesmente uma forma estética: ele é um modo de existência a um só tempo ético e material, cujo sentido último é dado pela sobrevivência dos jovens negros de periferia.

Além disso, o rap não apenas ensinou para muita gente que o racismo existe, e como ele existe. Mas também ajudou a difundir a noção de negritude como resistência, juntamente com os esforços do movimento negro, mas com um alcance muito mais amplo, por se tratar de uma produção artística. Com o hip hop, negritude vira definitivamente sinônimo de resistência. Como disse a Djamila Ribeiro, em uma formulação bastante feliz e precisa, o hip hop mostrou para a periferia como organizar o seu ódio, fazendo com que os negros passassem a tratar a sua raça como arma, um instrumento de luta contra o genocídio do seu povo.

X.

Eu gostaria de finalizar citando um texto do professor Silvio Almeida que foi publicado na Folha de São Paulo, cujo título é “Regimes autoritários sempre tem seus juristas de estimação”. Nesse artigo, o autor defende a ideia de que a relação entre o campo jurídico e o racismo é algo absolutamente orgânico. Em suma, não haveria o que nós chamamos de Racismo Estrutural sem todo aparato jurídico que lhe dá sustentação. O racismo só se torna uma estrutura por meio da atuação direta dos juristas. Todo regime de horror moderno, seja a barbárie nazista, seja a colonização, seja o neoliberalismo, precisa da organização tecnológica do aparato jurídico. Portanto o conjunto de saberes envolvidos no Direito são diretamente responsáveis pela organização do genocídio do povo negro.

Eu cito então o Silvio Almeida:

“A tessitura jurídica do poder nazifascista não foi criada por amadores ou incompetentes que desconheciam o direito. Foram juristas “respeitáveis”, professores importantes, “homens de bem” que colocaram toda sua inteligência e prestígio à disposição do regime. A construção do autoritarismo demanda alguma sofisticação já que é preciso casar ideologia e técnica. A verdade é que nunca houve ditaduras, colonialismo, escravidão e golpes de Estado que não contassem com juristas de estimação.”

Ou seja, todo regime de horror precisa de gente inteligente, bem formada e com um horizonte de regulação racional em mente para que possa vir a existir. É claro que é possível que o direito funcione em sentido oposto, e o próprio Silvio cita o exemplo da ação proposta junto ao Supremo Tribunal Federal por movimentos sociais e organizações não governamentais que resultou na proibição de operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Mas enquanto o sistema jurídico for orientado pelos mandatos da branquitude, ele vai seguir sendo muito mais um instrumento de manutenção do poder e perpetuação do racismo. É por isso que é tão importante escapar da lógica tautológica do próprio direito, caso o objetivo seja construir um direito contra hegemônico. E é por isso que iniciativas como essa da Adriana e do Douglas são tão importantes.

24\08\2020

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