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O recuo conservador à esquerda

Publicado Originalmente em 22/12/2013, no site do Passa Palavra

Acauam Oliveira e César Takemoto

 

Porque de boa intenção o inferno está cheio: sobre a inutilidade da conversão didática do capitão Nascimento.

Um texto recente do cronista Antonio Prata, Guinada à Direita, causou bastante polêmica nas mídias. Nele o autor afirma ter enfim aprendido que os problemas do país são causados pelo totalitarismo de esquerda em que vivemos e que, por isso, é preciso adotar uma postura conservadora e reacionária. “[…] no pé que as coisas estão é preciso não apenas ser reacionário, mas sê-lo de modo grosseiro, raivoso e estridente. Do contrário, seguiremos dominados pelo crioléu, pelas bichas, pelas feministas rançosas e por velhos intelectuais da USP”. O texto foi escrito com intenção irônica, disposto a denunciar a violência profunda desses discursos de ódio. Contudo, o tiro saiu pela culatra, e quem acabou passando uma lição para o cronista foi o público, que não apenas “deixou de captar” a ironia, como aplaudiu de pé a nova postura. Diante dessa reação imprevista, Antonio Prata teve de renunciar a ironia – ou antes, explicar a piada – e escrever um segundo texto em que confessa suas intenções e marca seu posicionamento esclarecido à esquerda (Abaixo, a ironia)[1].

A primeira vista, esse movimento parece ser a reduplicação de outra conversão à esquerda muito mais estranha e de maior alcance, protagonizada pelo capitão Nascimento na passagem do primeiro para o segundo Tropa de Elite. É claro que, no caso da crônica, os tons são muito menos avassaladores, uma espécie de reencenação farsesca em tom menor do fenômeno do filme de José Padilha – primeiro como tragédia, depois como farsa – uma vez que o tom conservador e autoritário do capitão Nascimento no primeiro filme o transformou em um dos maiores sucessos de massa de todos os tempos no Brasil, só comparável ao de alguns personagens novelescos. Para um órgão conservador como a revista Veja, pela primeira vez na história do cinema brasileiro tínhamos um “herói do lado certo”, ou seja, que faz pouco caso dos direitos humanos (“direitos humanos para humanos direitos”) e cumpre literalmente a regra de que “bandido bom é bandido morto”.

O primeiro Tropa de Elite (em 2012 escrevi uma série de três artigos sobre o filme, publicado no site do Passa Palavra) procurava delimitar, de forma até então inédita nas telas – TE I é o filme que inaugura (e até aqui, também encerra) o gênero filme de guerra no cinema brasileiro – certa economia libidinal da violência contemporânea brasileira, mapeando (ainda de maneira rudimentar, é certo, porém reveladora) o tipo novo de “subjetividade” que toma forma no país a partir da “guinada à direita” dos mecanismos hegemônicos de representação – um dos sintomas dessa mudança é o grande sucesso editorial de autores explicitamente vinculados ao pensamento conservador, como Olavo de Carvalho, Pondé, Diogo Mainardi,  Leandro Narloch, assim como a mudança no paradigma do humor. Com isso consegue captar e formalizar, melhor do que diversos modelos de representação à esquerda (muitas vezes concentrados mais no que deveria ser do que naquilo que, efetivamente, é) uma transformação radical nos mecanismos simbólicos de constituição do país. Movimento descrito por Vladimir Safatle nos termos de uma perda de hegemonia cultural da esquerda, sobretudo a partir dos anos 80:

Durante décadas, a esquerda conseguiu sustentar uma certa hegemonia no campo cultural nacional. Mesmo na época da ditadura, tal hegemonia não se quebrou. Vivíamos em uma ditadura na qual era possível comprar Marx nas bancas e músicas de protesto ocupavam o topo das paradas de sucesso […] Com o fim da ditadura, a força cultural da esquerda permaneceu. Nossos jornais, por exemplo, seguiam o esquizofrênico princípio: conservador na política, liberal na economia e revolucionário na cultura […] (Hoje) sela-se uma situação nova no Brasil. Pela primeira vez em décadas a esquerda é minoritária no campo cultural[2] 

O filme foi um estrondoso sucesso, mas em sentido oposto ao esperado pelo “bom senso humanista”: ao invés de sentir o filme como denúncia, verdadeiro tiro de 12 na cara, o público identificou-se imediatamente com a exploração obscena do poder, com aquele herói que tem a coragem de fazer, bem feito, o que deve ser feito, custe o que custar. Funk ostentação. E o que fez José Padilha diante desse encontro traumático com o Real, em que o filme realiza a fantasia perversa que estrutura certa fantasia fundamental da realidade brasileira contemporânea (o país como campo de extermínio)? O diretor recua, no segundo filme, para a zona de conforto de um discurso moralmente aceitável, tranquilizador, tentando enquadrar esse novo modelo de dinâmica simbólica no velho paradigma do “Sistema” invisível que articula toda espécie de sujeitos corruptos (políticos, mídia, polícia, mensaleiros, etc) em benefício dos poderosos. Ou seja, enquanto Tropa de Elite 1 se parece com o raio-X do modelo ético do Brasil contemporâneo, sua continuação soa como um caricatura das posições mais “coxinhas” presentes nas manifestações brasileiras de junho de 2013, ancoradas em pautas politicamente vazias como “moralização da política” e “fim da corrupção”, cujo efeito imediato é uma fuga ao embate político propriamente dito, que passaria por um confronto efetivo com a “verdade” expressa pelo Capitão Nascimento original. Podemos falar, nesse caso, de uma espécie de “recuo conservador à esquerda” (desde que entendamos perfeitamente o significado de estar à esquerda nesse caso), similar ao realizado por Antonio Prata em sua crônica.

***       

Uma hipótese possível para o “equívoco” de Padilha, responsável em parte pelo sucesso do filme, é que este não levou em consideração o fator “massa”. Aparentemente o diretor tinha em mente o público mais restrito e especializado (cult?) que acompanha o cinema de cunho “social” brasileiro – o mesmo que havia assistido e elogiado seu trabalho anterior, o documentário “Ônibus 174” – e pretendia fazer uma espécie de filme denúncia da barbárie policial, a partir de uma ótica interna (algo similar ao que fez Kubrick em Nascido para matar). Contudo, o filme se tornou um fenômeno de massa e saiu do controle, pois Nascimento foi considerado um verdadeiro herói nacional. A imoralidade obscena do poder deixou de ser autoevidente, como antes parecia ser (terá sido realmente?). Diga-se de passagem, e contrariando o que afirma José Padilha, nada na forma do filme indica que o olhar do personagem é problemático – tirando uma ou outra crise de ansiedade circunstancial[3] – mas antes, sua estrutura serve para confirmar o caráter incorruptível e infalível do capitão Nascimento.

Aparentemente – segundo entrevistas do diretor lamentando que o público (ou melhor, a crítica “patrulheira”) não entendeu o caráter problemático da personagem[4] – Padilha contava com certo olhar à esquerda do público (e aqui cabe uma pergunta: qual público o filme “imagina”, constrói para si? E qual a relação dessa fantasia com o público “real”?) que imediatamente reconheceria o caráter sádico e obsceno da personagem, condenando-o. Ao contrário do que se esperava, contudo, o que se viu foi a celebração de Nascimento como a grande figura paterna finalmente capaz de moralizar a sociedade brasileira, definindo precisamente o certo e o errado e se esforçando para recolocar o país nos trilhos.

Podemos dizer, assim, que o “grande Outro” do segundo filme é a presença obscena das massas reveladas pelo primeiro, aquele dejeto imprevisto que não se deseja encarar. Diante desse encontro perturbador Padilha recua para a zona de conforto moralizante e civilizatória, do esclarecimento do abjeto. O intuito de Tropa de Elite II é claramente moralizador, e pretende esclarecer o público, ensinando didaticamente que a posição do Nascimento no primeiro filme é inaceitável.

Ora o mérito do primeiro filme não consiste no acerto da perspectiva de seu protagonista, como lamentou o pensamento conservador mais eriçado (“E o Capitão Nascimento, hein? Coitado! Foi cursar Ciências Sociais na USP ou na UnB, virou um crítico do “sistema”, já pode ser militante do PSOL e se transformar num burocrata da sociologia esquerdopata brasileira” – Reinaldo Azevedo), mas passa necessariamente por ela. Ou seja, o filme formalizou – brilhantemente – o novo modelo de organização simbólica da sociedade brasileira, dando a ver uma estrutura que não havia encontrado ainda sua representação cinematográfica, embora já houvesse se estruturado em outras gêneros artísticos, como a literatura periférica e o rap (em certo sentido, podemos dizer que Tropa de Elite I formaliza a mesma conjuntura expressa em Diário de um detento, dos Racionais, a partir da perspectiva do Robocop do sistema, que se tornou moralmente aceitável). Diante desse achado, desse confronto assustador, Padilha recua, e ao invés de mergulhar mais fundo na barbárie do primeiro filme, encarando o Leviatã de frente, o diretor volta-se para a legitimação do modelo explicativo do Fraga, chapado e esquemático, um modelo que pretende “educar” o expectador não conscientemente previsto do primeiro filme, encaminhando-o para o lado certo da força. Desse modo Tropa de Elite II faz um recuo didático para explicar porque o capitão Nascimento não é um herói (desde a primeira cena, que mostra um Bope ineficiente de uma forma que não apareceu em nenhuma cena do primeiro filme, até a divisão estrutural da voz narrativa entre Nascimento e Fraga – o grande dado estrutural do filme – e a gradual conversão daquele aos princípios democráticos-humanistas-ongueiros), passando de um modelo discursivo ultraconservador protofascista para um conservadorismo de contorno liberal. A mudança de ponto de vista é tão radical que altera inclusive o gênero do filme: se Tropa de Elite I é um filme de guerra que explora as várias dimensões do sadismo do Bope, sua continuação é nada menos que um filme de investigação policial, no estilo daqueles do Harrison Ford dos anos 80, em que as intrigas vão sendo descobertas enquanto o sujeito vai sendo enredado cada vez mais profundamente numa trama política complexa, até ser resgatado pela prática democrática. Em outras palavras, diante do confronto obsceno com o Real brasileiro, Tropa de Elite II esconde a sujeira debaixo do tapete. Mas continua fedendo.

Não seria muito mais radical e revelador se José Padilha (e Antonio Prata) tivesse tido a coragem de levar seu projeto até as últimas consequências, fazendo, por exemplo, com que a utopia reacionário de Nascimento não apenas se realizasse, mas tornasse de fato o Brasil um país “melhor” em seus termos (sem corrupção, sem violência não estatal, sem promiscuidade entre classes, sem devaneios esquerdistas, etc)? É claro que essa se revelaria por fim como a mais terrível das distopias que poderia nos ocorrer, por ser nosso presente sem possibilidade de redenção. Algo como O homem do Castelo Alto, de Phillip K. Dick, em que os nazistas vencem a Segunda Guerra em um universo alternativo, e o resultado é uma imagem precisa do mundo contemporâneo, sob domínio liberal. O recuo à esquerda dos autores preserva sua integridade moral frente os holofotes, por assim dizer, mas fracassa diante da necessidade de se confrontar com o demoníaco, como condição para libertarmo-nos de seu domínio.

Desse modo Tropa de Elite II realiza uma espécie de concessão ao discurso social do cinema brasileiro, que olha para o sistema de produção da desigualdade e estabelece com ele um compromisso moral de “denúncia” e solidariedade – o grande paradigma “contemporâneo” é Central do Brasil, de Walter Salles. Ou seja, ocorre um recuo diante da matéria nova no cinema, a dimensão “protofascista” do país que encontra eco entre todas as camadas sociais, de modo a evitar a radicalização da reflexão, que não está pronta e demanda trabalho. Foge-se da matéria informe da violência, iluminando o povo pelo caminho correto, ao invés de inverter o processo e apreender aquilo que a violência (popular) está gritando. É como se diante da barbárie ritualizada de programas como Big Brother ou Pânico na Band, os autores recuassem para as posturas mais “humanas” do programa do Gugu, que explora a miséria, mas pelo menos dá uma casa, ou reforma o guarda roupa. Varrer a sujeira revelada pelo Nascimento com discursos generalizantes liberais acaba por deixar as coisas exatamente como estão. Melhor seria procurar formas de fazer com que essa matéria se tornasse, ela própria, a matriz de sua superação, como procura fazer o rap ao usar a matriz discursiva do “Crime” de modo a propor um novo modelo de subjetividade que não se confunde com a ilegalidade, mas que só a partir daí pode ser capaz de propor algum horizonte emancipatório.

 

E se o verdadeiro recalque do Morcegão não for o Robin? A travessia do fantasma.

O movimento aqui proposto se estrutura numa das noções da cura psicanalítica, a tal “travessia do fantasma” lacaniana (retomada por Richard Boothby e Zizek), e implica uma estrutura dupla da fantasia: “‘atravessar a fantasia’ não significa que o sujeito de alguma forma abandona seu envolvimento com os caprichos ilusórios e se acomoda a uma ‘realidade’ pragmática, mas exatamente o contrário: o sujeito se submete ao efeito da carência simbólica que revela o limite diário da realidade diária.” [5] Desse ponto de vista, o Tropa I faz ‘má psicanálise’, porque o seu efeito prioritário é justamente o de uma “acomodação a uma realidade pragmática”, ou seja, não realiza efetivamente a travessia da fantasia e, com o Tropa 2, se distancia ainda mais dela.

Num quadrinho de fã recente (The Deal), a travessia do fantasma se realiza numa história de super-herói em que o Batman, num momento chave (o Coringa havia esquartejado o Alfred, fazendo com que Bruce perdesse o pai pela segunda vez), reconhece o vínculo profundo de amor que existe entre ele e o Coringa. Aqui o homem-morcego não apenas impede que o Coringa despenque das alturas para a morte certa (repondo a cena fatídica do Cavaleiro das Trevas (Dark Knight)) segurando-lhe pela mão, como expressa a própria impossibilidade desse amor saltando junto com ele para morte certa, ainda de mãos dadas, expondo justamente essa falha do simbólico (que não pode acolher o ‘real’ desse amor).

Digamos então que no Tropa I o público é levado a segurar a mão do Cap. Nascimento, a lhe dar apoio, compreendê-lo como figura trágica, sublimá-lo como figura ética, mas não a reconhecer seu amor por ele e o abismo que se segue a esse reconhecimento mesmo. O filme é crucial, pois trata-se de reconhecer um momento do cinema industrial no qual o paradigma da “dessublimação repressiva” (“de esquerda”, na taxonomia do Antonio Prata) converte-se em “sublimação repressiva” (“de direita”, no mesmo sistema classificatório) novamente (a sublimação clássica da psicanálise freudiana), com a diferença que aqui ela não projeta mais nenhum horizonte civilizatório, mas a eterna luta do bem contra o mal. Incapaz de atravessar o fantasma, o impulso ético esquerdista xinga, joga pedra, e se põe acima da brutalidade reinante. Confrontar a fantasia é a lição que se pode tirar de tudo isso. Quando a teoria cinematográfica francesa (para simplificar bastante um debate complexo) encastelou-se na sua valorização do cinema de vanguarda no fim dos anos 60-começo dos 70, uma outra teoria se articulava e se perguntava se era realmente útil simplesmente recusar o cinema industrial “ilusionista”. É aqui que a teoria lacaniana pode ajudar. Ao invés de apostar incondicionalmente num cinema que a todo o momento deve demonstrar ostensivamente ser uma ilusão (“era tudo ironia”…), desconstruindo e expondo os seus procedimentos mesmos, não caberia reconhecer, e criar mecanismos para pensar, que era o próprio cinema industrial ilusionista que confrontava de maneira mais aberta e direta a dimensão mais traumática do fantasma, das aparências como aparências, como aparições? Ou seja, como reabilitar uma dimensão emancipatória da identificação? 

 

Quanto vale um país cronicamente inviável?

A esse respeito, e servindo como contraexemplo, podemos dizer que o mergulho a fundo na violência informe protofascista da sociedade brasileira é a especialidade de Sérgio Bianchi. Seu cinema aparece como uma maneira de, sem simplesmente negar a tradição vanguardista, investir nos materiais mais regressivos dos fantasmas da classe média brasileira, sistematicamente se recusando a “voltar para o aconchego” da posição segura-de-si “esquerdista”.

O próprio derrotismo da classe média torna-se meio de vida confortável: a madame que em Cronicamente Inviável sonha em drogar os pobres para que estes morram com eficácia e felicidade capitaliza uma ONG para fazer o mesmo no Quanto vale ou é por quilo?, enquanto a dominação e a violência como alimentos da reflexão são alternadas com a venda de órgãos de crianças pobres pelo intelectual. Uma a uma, as fantasias compensatórias do espectador de cinema nacional são conspurcadas: o teatro e o MST são comandado por líderes parasitas e autoritários, o cinema é pura negociação de políticas públicas, os homossexuais só sabem se vender como carne num açougue barato, os miseráveis são massacrados quando não iludidos, os pobres só querem manter o pouco que tem, os ricos… bem, enriquecer também não é viável sem passar a perna nos outros e se aliar aos inimigos. A enxurrada de clichês[6] que se encadeiam capta e esmaga as fantasias do espectador, obrigado a reagir a cada uma delas sem que ele tenha uma resposta sistemática ao todo. Imbricado de modo irremissível nessa sobreposição de horrores, sua resposta consiste em negar o todo do filme (ou o cinema de Bianchi, pura e simplesmente) ou compreender a sua parte naqueles horrores mesmo. 

 E talvez seja algo próximo disso o que faz, por exemplo, o Reinaldo Moraes do Pornopopéia, ao confrontar as fantasias obscenas da classe média, mais especificamente da elite cultural branca, masculina e decadente – em oposição à “nova classe média”. É também o fantasma da classe média que se projeta sobre a família “classe C” dos Inquilinos. E mesmo sendo ainda muito cedo para afirmar qualquer coisa, podemos pressupor que, no Jogo das Decapitações, Bianchi parece pretender não apenas acertas as contas com a própria obra, mas também com a esquerda-torturada-na-ditadura-que-está-poder (e o aconchego abafado de viver na sua sombra), com a figura do loser no cinema brasileiro contemporâneo, com a USP, com a guerra intestina dos pobres contra os pobres, com a classe C-novo rico, tudo num jogo fantasmagórico de decapitações que confronta múltiplos fantasmas e atravessa alguns deles… Quem viver verá.

 

Fantasmas sertanejos

E o mesmo recuo ideológico não pode ser lido na própria relação de “superação intertextual” que há entre Os Sertões, do Euclides da Cunha, e o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa? Não é verdade que o trauma de Canudos e o fantasma da recém constituída República Brasileira são melhor confrontados pelo positivismo de Euclides do que pela inventividade linguística rosiana e a sua correspondente mitologização do sertão? Não poderia a linguagem do Euclides bem nos figurar hoje como a correspondente “dos mapas de Estado Maior e da vontade de dominar a silva horrida por meio da tecnologia e de um volumoso aparato militar”[7]? Uma linguagem e uma tecnologia que se armavam contra o próprio fantasme da elite modernizadora nacional, ou seja, o confronto com o real da geografia física e humana do país, com o “medo de perder-se no ‘labirinto de montanhas’ , no ‘labirinto de veredas’ e no ‘labirinto das vielas’ da ‘urbs monstruosa’, espaço anárquico de uma população depauperada e crescente que escapava ao controle e era o oposto dos ideais de ordem e progresso”[8]? Não estaria também essa fantasia de controle do outro monstruoso na estruturação do gozo coletivo propiciado pelo primeiro Tropa de Elite? Seria a perspectiva rasteira da narrativa-rio inventada por Rosa (em oposição à perspectiva aérea de Euclides) uma travessia do fantasma, ou um deslocamento mitologizante (Grande Sertão: Veredas e Casa-grande e senzala: “o paralelismo entre os dois títulos é perfeito, em termos semânticos, sonoros e métricos”[9]) cuja função é encobrir o núcleo traumático de Canudos num trabalho de simbolização/conversa/aproximação infinito? (A pergunta não é retórica, mas a resposta dependerá de uma leitura radicalmente impiedosa desse grande romance.)

Por outro lado, não é o próprio Rosa que fundamenta o seu retrato do Brasil através de uma encenação do “sistema jagunço”, “uma instituição no limiar entre a lei e a ilegalidade, onde a transgressão é a regra e a guerra é permanente”[10]? E não é (mais ou menos) assim que o Tropa de Elite 2 reapresenta o problema também? Digamos então que a sofisticação na forma de apresentar os problemas não necessariamente leva ao confronto mais efetivo do núcleo básico das contradições e, ainda que possa satisfazer as plateias mais exigentes, pode implicar em simples repetição mítica do mesmo. Não deixa de ser uma ironia objetiva o fato de que a grande invenção da prosa rosiana termine, em termos de “enredo”, com o casamento padrão sacramentado na propriedade, como no caso daquele conhecido sargento de milícias, no tempo do Rei. 

 

O gigante acordou: corre que é fria!

Pode-se dizer que o gesto, entre recusa e medo, tanto de Padilha quanto de Antonio Prata, é bastante similar ao movimento de parte das esquerdas nas manifestações de junho, que diante do caráter terrível e protofascista do gigante acordado, passou por um processo de hipercorreção que via possibilidades de golpes à direita por todos os lados, optando por recuar estrategicamente diante da incapacidade de uma real articulação de suas bases (que haviam gerado o movimento inicial). Reconheço que eu mesmo fui um dos que assumiram, como um reflexo, que era necessário recuar em certo momento das jornadas de junho, no qual a esquerda passava a temer pela massificação crescente das manifestações, projetando sobre elas o seu fantasma fundamental, o fantasma do golpe de 64. Era de certa forma evidente que ela não teria força para politizar o país, ou pelo menos o país que segurava a mão do Nascimento e da luta contra a corrupção (outro fantasma que não se atravessa). Aliás, o golpe não veio, mas o enquadramento narrativo dos protestos foi sequestrado com sucesso pela direita. O que resta de radicalidade – anticapitalista de algum modo – nas manifestações atuais, é imediatamente identificado com a fissura excessiva dos black block, interpretados como marginais inconsequentes e perturbadores da ordem pública. Ou seja, diante do abandono de campo pela esquerda – após uma série de conquistas fundamentais, lembrando que os preços das passagens de ônibus e dos pedágios intermunicipais continuam congelados, e que a onda de protestos ainda não se esgotou – a direita pode reorganizar-se e assegurar a hegemonia da sua versão da história.

Ampliando, assim, o escopo para o campo dos movimentos sociais, percebe-se melhor o quanto esse recuo conservador à esquerda, que se estrutura em diversos segmentos culturais e sociais no país, se configura enquanto sintoma de um processo mais amplo de afastamento da esquerda de suas bases, conduzindo no limite ao estranhamento e a certa incapacidade de construção de elementos mediadores que tornem possível o processo de identificação, que tende a se realizar, então, à direita.

O gigante acordou, mostrou sua cara feia e espantou muita gente bem intencionada. É hora de voltar a mostrar coragem: cara feia ainda é fome.

 

NOTAS

[1] As reações geradas pelo texto de Antonio Prata, sejam elas contra ou a favor, quase sempre de aderência ao texto, indicam não apenas que os leitores tem perdido sistematicamente a capacidade de compreensão básica da ironia (o que por sua vez é um sintoma de uma mudança radical na concepção mesma de “interpretação textual”)  mas que em tempos da linguagem crua da imagem e do funk – que acessam “imediatamente” a “verdadeira” realidade em si – o uso da ironia pode estar deixando de ser “funcional”, por conta de um fluxo de consciência geral.  Não é que as pessoas não entenderam a ironia: é a própria “função” da ironia na linguagem que está mudando radicalmente de sentido, uma vez que os sujeitos – visíveis – estão cada vez mais implicados em seus enunciados. A linguagem é tornada coisa e, como tal, interpela diretamente o leitor – “efeito colateral” da ruptura (cínica) da autonomia da linguagem. Pois como distanciar-se da palavra, ironicamente, quando não existe autonomia da palavra? Se a palavra-pedra do João Cabral é hoje literal, e faz um puta rombo na cabeça? Num plano mais geral, a explicação da piada pode ser lida por sua vez como uma falência da verdade dialética. Para Hegel, a verdade não tem a sua medida num padrão exterior, mas aparece como contradição pragmática, ou seja, como a própria inconsistência constitutiva do processo discursivo: a dialética fenomenológica hegeliana nasce da própria contradição entre o enunciado e a posição de enunciação. Assim, no caso da polêmica do Prata, o público colou-se no enunciado, enquanto Prata, não menos reducionista, colou-se na própria posição de enunciação. Fica claro então que o que é evitado por ambos os lados é o real da contradição

[2] http://bit.ly/1gcehkr

[3] Apesar de a personagem ter sua vida privada em virtude de suas escolhas, seu caráter heroico – de quem age corretamente – permanece intocado. O sacrifício de sua vida pessoal em nome de um bem maior faz dele ainda mais heroico, e engrandece suas escolhas.  

[4] http://bit.ly/1fEoNDj

[5] Richard Boothby, Freud as Philosopher, Nova Iorque, Routledge, 2001, pp.275-6, citado por Slavoj Zizek, “Paixões do Real, paixões do semblante” em Bem-vindo ao deserto do Real! São Paulo: Boitempo, 2003, p. 32. 

 

[6] Ainda que o uso de clichês seja sistemático em Bianchi, o seu método caótico de combiná-los nas cenas lhes subtrai o caráter de fácil interpretação, e na verdade tende a exacerbar ao máximo a tensão hegeliana entre enunciados – tanto em forma de falas e sons quanto de olhares – e posições de enunciação. 

[7] Faço aqui uma apropriação das considerações e citações de Willi Bolle, “O sertão como forma de pensamento” em grandesertão.br. São Paulo: Duas Cidades/34, 2004, p. 78-9.

[8] Bolle, Idem.

[9] Bolle, Ibid., p. 282.

[10] Bolle, “O sistema jagunço”, Ibid., pp. 91-139.

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