Livro

Cores e valores e os dilemas do rap brasileiro contemporâneo

Sempre achei que o Racionais e o hip hop em si são arte contemporânea. Em 1988 eles foram 1988. Em 1997, foram 1997. 2002 idem e hoje se releem de acordo com o mundo de hoje.

EMICIDA, 2014

Como podemos reconhecer a partir do depoimento de Emicida citado acima, soar contemporâneo – independente dos riscos e custos envolvidos no processo -sempre foi uma das principais qualidades dos Racionais Mc’s. E com isso não se está simplesmente reforçando o velho clichê de que o grupo está sempre conectado com sua época por retratar a realidade da periferia “tal como ela é”, pois não se trata de uma questão meramente temática, ainda que envolva algo nessa direção. De fato, o significado mais profundo do diagnóstico de que os Racionais estão sempre na “vanguarda” do hip hop nacional é que sua obra se configura enquanto ponto de chegada e partida de desdobramentos históricos e estéticos desse que é um dos movimentos culturais mais importantes das últimas décadas. No geral, os lançamentos de seus discos são eventos catalizadores e transformadores da cena hip hop no país, trazendo formalmente sintetizado um diagnóstico de época fundamental tanto para a autocompreensão do presente quanto para futuros encaminhamentos.

É importante compreender, contudo, que essa posição de “vanguarda” não decorre de um posicionamento “acima” ou “à frente” dos acontecimentos, na condição de quem dita os caminhos por deter seus segredos mais ocultos. Essa contemporaneidade radical – a capacidade de ditar e anteceder o porvir em relação não só ao rap, mas também à sua matéria principal, a subjetividade periférica – é antes de tudo um efeito de sentido derivado da capacidade de manter-se por “detrás” do lugar que lhe garante consistência, no qual o grupo se fixa com olhos e ouvidos atentos.

Nesse sentido é que podemos dizer que os Racionais não apresentam em seus discos aquilo que seus integrantes acreditam que deva ser o caminho a ser seguido pelo rap e pelos membros de sua comunidade, despejando juízos dogmáticos sobre como as coisas são ou deveriam ser. Ao contrário, eles param, observam e sintetizam o que está no ar, para só então tirar suas conclusões e explorar as contradições do que já está aí. É somente a partir desse lugar, desse mergulho em profundidade sobre aquilo que a periferia e o rap concretamente são no momento em que se está, que eles irão propor formas de posicionamento e modelos de atuação. Em última instância, os discos do grupo não dependem apenas das ideias prévias de seus integrantes, mas fundamentalmente da sua vivência, nunca previsível. É a partir desse processo em que a obra é gestada por meio de contradições vividas e eticamente refletidas que eles são capazes de criar obras artísticas com o poder tanto de sintetizar as contradições mais relevantes de seu tempo quanto de apontar para possíveis formas concretas de atuação, produzindo um modelo radical de arte engajada.

Não existe, portanto, novidade nenhuma no fato do último álbum de estúdio do grupo (Cores e Valores, de 2013) ter causado estranhamento em boa parte do público que o aguardava ansiosamente durante anos, nos mais diversos aspectos: sua duração curtíssima, a falta das longas sequências narrativas presentes nos trabalhos anteriores, mudanças decisivas no flow e nas bases, etc. Contudo, se é verdade que a obra dos Racionais é calcada nas contradições de sua época, essas mudanças só podem ser avaliadas após a compreensão de sua necessidade histórica, sendo, pois, fundamental compreender o atual momento vivido pelo rap para que se obtenha a real dimensão dessas transformações.

I. Racionais MC’s e a nova geração do rap nacional

Quando do lançamento do disco, no dia 25 de novembro de 2014, a Folha de São Paulo fez uma série de reportagens com novos nomes do rap brasileiro, como Rael, Lurdes da Luz, Karol Conká, Ogi, Rashid, Flow MC, Rincón Sapiência, Emicida, d entre outros. O eixo temático de todas as entrevistas era a própria obra do entrevistado, a importância dos Racionais em sua trajetória e o que havia mudado no rap brasileiro dos anos noventa até hoje. Uma imagem comum utilizada pelos entrevistados, lançada tempos antes por KL Jay, é a de que o rap havia ‘saído da infância’ e agora começava a ‘entrar na maturidade’. Entende-se nesse sentido que o rap da nova (ou novíssima) geração seria marcado por uma “abertura de horizontes”, caracterizada por uma maior diversificação nos mais diversos sentidos: novos temas, com cada vez mais raps que versam sobre o amor e outros assuntos não diretamente “engajados”, novo público e formas de difusão, com o crescimento da internet, novas bases estéticas, como experimentos com o trap.

Mas talvez a mais importante dessas transformações seja a plurarização de vozes no interior do movimento. Novas vozes femininas (Karol Conka, Lurdez da Luz, Negra Li, Flora Mattos, entre outras), LGBQI (Quebrada Queer, Rico Dalassan, etc.), indígenas (Bro MC’s), a ascensão de rappers oriundos de outros estratos sociais (por exemplo, da classe média com ensino superior), a ruptura com certa hegemonia do Sudeste no campo (Don L., de Fortaleza, Baco Exu do Blues, de Salvador, Djonga, de Belo Horizonte, entre outros, têm recebido diversas premiações), além do trânsito cada vez mais intenso e naturalizado do rap com outras linguagens artística (Criolo, Rincon Sapiência). No caso específico das mulheres, ainda que desde sempre essas vozes tenham existido (cabe lembrar as pioneiras Dina Di, Sharylaine, Lady Rap, Rubia, Lunna, Sweet Lee, dentre outras), é fato que a presença feminina tem se imposto de maneira cada vez mais contundente no cenário hip hop nacional. As mulheres estão conquistando cada vez mais espaço dentro do universo do rap e em seus arredores (a exemplo do crescimento vertiginoso dos slams) e, ao cabo de muitos conflitos e disputas, encontrando um público cada vez mais amplo e promovendo transformações radicais no interior do movimento.

Essa maior abertura do rap é sentida como uma vitória sob diversos aspectos, inerente não só ao estilo musical, mas também à própria cena hip hop. Um “amadurecimento” diretamente relacionado a outro aspecto muito salientado pelos entrevistados, a percepção cada vez maior do rap enquanto negócio que precisa ser controlado pelos próprios negros, consolidando a “família”. Valoriza-se muito a percepção empresarial do rap enquanto negócio, com o desenvolvimento de formas próprias de distribuição, a criação de marcas de camisetas, bonés, o lançamento de livros e CDs, a organização dos próprios eventos e espetáculos etc. Desse modo, a passagem do rap para a “vida adulta” é marcada também pela busca de independência financeira, em um processo intenso de profissionalização.

Os rappers da “novíssima” geração começam a desenvolver uma atitude empresarial – e liberal – mais intensa, comum ao modelo norte-americano, assumindo para si o cuidado com a qualidade da produção de seus produtos, assim como a divulgação, procurando formas alternativas de se inserir no mercado. Em suma, entram para valer no jogo empresarial, cruzando diversas barreiras anteriormente delimitadas e, consequentemente, se deparando com um conjunto novo de ambiguidades e contradições.

Como afirma o antropólogo Ricardo Tepperman, os integrantes da nova geração do rap nacional “mostraram-se muito mais desenvoltos na profissionalização de suas carreiras, obtendo grande e inédito sucesso na criação de novos sistemas de gestão do rap como negócio” (TEPERMAN, 2015, p. 11). Convém, entretanto, lembrar aqui o argumento de Daniela Vieira, para quem a relação mais orgânica com o mercado está presente no horizonte de diversos grupos de rap desde o início do movimento no Brasil, não sendo, pois, exclusividade dessa nova geração, que teria “se vendido” para o mercado (SANTOS, 2019, p. 268). O que interessa nesse caso é menos o reconhecimento em caráter de ‘denúncia’ do objetivo explícito e declarado de ganhar dinheiro e se profissionalizar – como se isso por si só indicasse perda de radicalidade e qualidade estética – do que compreender o conjunto de transformações sociais, históricas e ideológicas que tornaram possível às novas gerações conquistar uma maior inserção institucional.

Acreditamos que essa percepção de que o rap teria decrescido o tom de radicalidade de seu discurso não seja de todo correta para dar conta desse conjunto mais amplo de transformações. Em alguns casos inclusive, há de se pressupor que a radicalização do discurso, quando desvinculada de determinadas possibilidades emancipatórias bloqueadas na prática, pode vir a ser desejável para a inserção no circuito mainstream. Ou seja, a equação proposta pelos defensores do discurso\pensamento crítico, que propõe uma relação algo esquemática entre o grau de inserção no mercado e a atenuação da radicalidade do discurso, como se o mercado necessariamente exigisse discursos brandos (o que torna discursos a princípio mais autônomos, como o discurso acadêmico, automaticamente mais ‘radical’), não se verifica como uma necessidade de ordem prática, pois em diversos momentos o mercado estimula a radicalidade discursiva, voltando-se inclusive contra seus próprios pressupostos, como quando determinado programa de TV realiza a paródia da programação da própria emissora. Dessa forma, o mercado pode apresentar a si próprio como o espaço de realização do princípio de liberdade inerente ao regime democrático liberal, em tudo diverso aos espaços totalitários que extinguem o pensamento crítico – e talvez o maior exemplo nesse sentido seja a consolidação da performance crítica da música popular em plena ditadura militar.

Nesse sentido, o sucesso em âmbito nacional do disco Nó na Orelha, de Criolo, cuja repercussão transcendeu os limites associados ao público consumidor de rap, é também um marco importante para o gênero, tanto em termos de inserção no mercado quanto com relação às diversas mudanças formais, em especial o trânsito do rap por outros gêneros como o afrobeat, dub, samba, bolero etc. Esse é, aliás, mais um elemento     constantemente apontado pelos jovens rappers como característica peculiar da nova geração, uma maior abertura formal e temática do rap para além de conteúdos temáticos e formais específicos do “rap de mensagem.

II. Cores e valores (preto e amarelo): rap e mercado

Cores e Valores é um disco que só pode ser compreendido no interior desse contexto, pois as mudanças na sonoridade dos Racionais MC’s têm relação direta com as novas demandas e posicionamentos do rap nacional. O diálogo é travado, antes de tudo, no interior do próprio rap, numa mistura explosiva de boas-vindas, conselhos para os mais jovens e análise detida da cena atual. Afinal, nunca foi a “crueza” dos temas ou a linguagem direta a principal marca do compromisso do Racionais com a realidade periférica, mas a adequação da forma a seu contexto, cujo resultado estético pode ser mais ou menos direto.

Em um sentido bastante específico o álbum segue na trilha aberta por Cores e Valores, pois a questão ainda é saber como o rapper pode seguir “lutando o bom combate” uma vez que saiu do lado de seus irmãos, sendo o lado de lá da ponte um território a um só tempo rigidamente demarcado e aberto para quaisquer conjuntos de valores – desde que desvinculados de riscos concretos de transformações sociais profundas. Entretanto, o disco apresenta uma orientação temática nova, expressa desde o título, que não aponta diretamente nem para a realidade periférica em si, nem para o posicionamento ético dos sujeitos. O interesse central não é o trato imediato com a realidade periférica, mas um determinado conteúdo temático, cuja relação é cada vez mais simbólica (cores, valores) que objetiva. Ainda que o foco permaneça voltado para os valores éticos dos sujeitos, esse assume uma linguagem deliberadamente abstrata – a relação entre as cores, que podem assumir significados diversos, e seus respectivos valores, também mutáveis – que terá importantes consequências em termos estéticos. Uma espécie de reflexão sobre as infinitas possibilidades de combinação e variação entre os termos – por exemplo, o amarelo (dinheiro) em relação ao preto (sujeito periférico) pode representar vitória ou tragédia, redenção ou morte, a depender do quanto se consegue alcançar certo equilíbrio entre os termos.

A recepção inicial do disco – bastante tímida, diga-se de passagem –, como as resenhas publicadas pelos sites Monkeybuzz (ROLIM, 2014) e Miojo Indie (FACCHI, 2014), propôs uma espécie de divisão do álbum em duas partes[1]. Entretanto, acreditamos ser possível identificar pelo menos quatro momentos, ou ciclos temáticos, ao longo do disco – que possui pouco menos de quarenta minutos. O primeiro ciclo começa com Cores e Valores, que vai tratar do orgulho das origens negras, do orgulho black, da necessidade de permanecer firme no caminho dentro da “torre de Babel”, que é a cidade de São Paulo (“cujo herói matou um milhão de índios”), pautada pelo consumo. Na sequência, Somos o que Somos acompanha a breve reflexão de um bandido sobre o crime e seus valores[2], e a necessidade de se tomar a força aquilo que a sociedade nega sistematicamente aos mais pobres (dinheiro, dignidade), sem trair os seus parceiros. Mais uma vez, os valores a serem mantidos em um contexto de desumanização são ensinados pelos socialmente marginalizados, que mesmo pelas margens, ou por isso mesmo, aprendem a agir “como reis”. Preto e Amarelo, por sua vez, é o louvor gangsta, o lado positivo dessa combinação de cores, dinheiro e negritude. Nos três casos as canções tratam da relação positiva entre o preto (cor) e o amarelo (dinheiro), ou seja, a possibilidade de se manter a integridade ética em um contexto envolvendo a circulação de muito dinheiro, seja no crime – também um modelo de negócio -, seja no caráter mais profissional do rap. Aqui a perspectiva do rap enquanto negócio – uma questão fundamental para a nova geração – é endossada pelos Racionais não só como algo possível, mas amplamente desejável, na medida em que constitui um caminho que pode salvar vidas por meio da elaboração de condições dignas de trabalho – uma das promessas do lulismo, diga-se de passagem.

Com a faixa instrumental Trilha, quetermina ao som de tiros da polícia, indicando uma ruptura traumática, encerra-se esse primeiro ciclo, delimitando nova temática. Essa ruptura traz consigo a problematização do caráter francamente positivo da combinação negro e dinheiro, exposto na primeira parte. Se até então o valor financeiro (amarelo) coincidia com o valor ético (preto), a partir dessa segunda parte o grupo vai elencar diversas situações em que os dois campos não coincidem, tornando a relação, no mínimo, problemática. Eu te disse narra a história de um talarico (sujeito que se mete com a mulher do próximo) punido com a morte, enquanto Preto Zica trata do amor deslumbrado pelo dinheiro, que torna o sujeito mais vulnerável à traição dos falsos amigos. Nos dois casos trata-se de situações em que os desejos (individuais) passam à frente dos valores (coletivos), com consequências funestas.

Cores e valores: finado Neguin fala da necessidade de se manter a ética dentro do crime, ou de como o crime pode ensinar os valores éticos necessários à sobrevivência dos novos guerreiros que surgem a cada dia. Eu compro volta a assumir um tom de celebração do empoderamento pelo consumo, e ainda que os versos “À vista, mesmo podendo pagar / tenha certeza que vão desconfiar / pois o racismo é disfarçado há muito séculos / não aceita o seu status e sua cor” demonstre consciência de que a integração entre preto e amarelo nunca será plena, essa canção é a que faz o mais claro elogio ao consumo em todo o disco, chegando inclusive a assumi explicitamente o lema do rapper 50 Cent, “fique rico ou morra tentando”. Entretanto, a faixa seguinte que encerra o segundo ciclo, A escolha que eu fiz, chama a atenção para o alto custo que pode ter essa escolha para a maioria dos cidadãos periféricos, basicamente tornando literal a frase do rapper americano ao narrar os momentos finais de um ladrão que foi traído por um companheiro e morto pela polícia.

Nas canções dessa segunda parte, os rappers ora advertem, ora são advertidos por seus parceiros sobre aquilo que aprenderam a partir de um código de ética comum, fundamental para que a ascensão social não se converta em tragédia. Note-se o alto teor de organicidade da obra, comum a todos os álbuns do grupo, assim como a complexidade das visões que se entrelaçam, não devendo ser compreendidas individualmente. Comprometidos com os valores da periferia de um ponto de vista forjado internamente, a perspectiva dos Racionais vê a melhora nas condições de vida da periferia naquele momento como uma conquista inquestionável, resultado de muita batalha, ainda que permeada por contradições. Uma postura em tudo diferente de certo posicionamento “radical” que somente reconhece potencial contestatório no pobre enquanto ele não está “corrompido” pelos valores do capital (como ironicamente adverte Criolo em Sucrilhos, “cientista social, Casas Bahia e tragédia / gosta de favelado mais que Nutella”). Daí a posição clara de parceria e apoio às novas conquistas não só do rap, mas também do funk carioca e sua vertente ostentação paulista, que celebra o consumo, o hedonismo e o dinheiro, e que é sempre motivo de polêmica[3]. Pois o dado fundamental aqui é o fortalecimento da música negra periférica não apenas enquanto arte, mas também enquanto negócio, de modo a evitar o destino comum a diversos artistas populares que morreram na miséria enquanto enriqueciam seus produtores.

O rap buscou primeiro ficar livre: os pretos serem pretos, o preconceito ficar estampado, o favelado ser favelado. Tudo isso o rap cantou e mudou. Acabou. O crime não é mais o mesmo que cantamos nos anos 1990, as pessoas não se matam mais daquela forma. Não adianta fechar os olhos para esse momento. Se conquistamos tudo isso, as próximas conquistas são uma rádio e que as nossas marcas se estabilizem no mercado. É introduzir a periferia no contexto geral, como os caras do funk estão fazendo.

Ice Blue – entrevista para Revista Cult, n. 192

Ganhar dinheiro e, sobretudo, permanecer com ele por mais de uma geração, é apontado como uma questão decisiva não só para os rappers, mas também para a periferia, como forma de re-existir no interior do sistema – capitalista, não custa lembrar. Finalmente, a integração do negro na sociedade de classes, sobre o que falava Florestan Fernandes, e que é uma pauta histórica do movimento negro desde os primórdios do pós-abolição. Entretanto, para não ser engolido por este sistema, é importante se manter ligado aos valores que foram e são gestados do lado de fora, em suas margens. Apenas o compromisso ético radical com a periferia é capaz de evitar os destinos trágicos representados na segunda parte do disco. Ou seja, o núcleo contraditório da questão é “vender-se sem se vender”, contradição explorada aqui a partir da ambiguidade fundamental do conceito de valor, em sua dimensão a um só tempo moral e mercadológica. Ao contrário de meramente adesista, a premissa pode ser explosiva caso atinja aquele ponto em que o sistema é incapaz de cumprir as suas promessas de integração, o que faz com que a conquista de mercado apareça enquanto conflito em um terreno em que alguns são mais iguais do que outros (a capa do disco é sintomática nesse sentido: nela os integrantes do grupo aparecem vestidos de gari mascarados, assaltando um banco. A associação entre trabalho precarizado e marginalidade, que torna criminosa toda apropriação de dinheiro, é explícita). Conforme era cantado desde o álbum anterior, “Preto e dinheiro são palavras rivais / É, então mostra pra esses cu / como é que se faz” (Vida Loka, parte II). Digamos que Cores e Valores seja uma tentativa de resolver essa rivalidade, operação que não é simples e envolve um processo de investigação a um só tempo temático e formal, fazendo do rap o caminho (concreto) para estabelecer essa relação.

III. Cores e valores (preto com preto): rap e periferia

A escolha que eu fiz, última canção desse segundo ciclo, termina com uma crítica à exploração midiática da tragédia social, “Se um Datena filmar / e a minha estrela brilhar / Eu morro feliz / vilão vagabundo, foda-se o que esse porco diz”. Essas considerações pouco amistosas dirigidas ao padrão de jornalismo policial brasileiro (o famigerado pinga-sangue) são a deixa para o início do terceiro ciclo do disco, que começa precisamente com um conjunto de samplers de diversos telejornais relatando o incidente ocorrido durante uma apresentação do grupo na Praça da Sé, em 2007, quando o show foi interrompido pelo confronto entre o público e a polícia, resultando na prisão de onze pessoas, além de dezenas de feridos. Dessa forma tem início a canção A praça, que marca nova mudança de direcionamento temático, agora com canções que traçam uma espécie de revisão da própria trajetória do grupo. Tal mudança irá, em certo sentido, ressignificar as duas primeiras partes, pois se até agora tratava-se de marcar posição diante dos problemas contemporâneos colocados pelo rap, a partir daqui o grupo volta-se para seu passado e, consequentemente, para a história do rap. A mudança é acompanhada desde as bases, que deixam o caráter mais denso e sombrio do início para assumir um clima mais dançante e nostálgico, que lembra os bailes blacks dos anos setenta (e que por sua vez será o foco do trabalho solo de mano Brown, Boogie Naipe), tematizados em algumas letras.

A marginalização e a perseguição do rap e de seu público é o tema de A Praça, que trata do despreparo do estado e da bem conhecida carnificina policial ao lidar com sujeitos, sobretudo da periferia. Em O mal e o bem Edy Rock lembra sua trajetória, desde o primeiro encontro com KL Jay, e a posterior formação dos Racionais. O foco aqui será a importância do rap – e do grupo – como elemento de mediação que permite caminhar e aprender com o crime, além de oferecer uma alternativa a ele (“Em meio às trevas, é, e o sereno / elaboramos a cura, a fórmula com veneno”).  Uma espécie de alternativa marginal (no sentido de ainda ser um espaço de agressão à norma excludente) ao crime. Você me deve traz novamente a reflexão do rap enquanto negócio a ser consolidado marginalmente, e a necessidade dos pretos tomarem a cena, o mainstream (“Família unida, esmaga boicote / Ê, bora pixote, hollywood não espera”). O terceiro ciclo se encerra com Quanto vale o show, cuja base é a bem conhecida música do filme Rock Balboa, paradigma hollywoodiano de superação das adversidades.  Nessa que é uma das melhores canções do disco, Brow traça uma brilhante reflexão sobre sua adolescência, dos treze aos dezesseis anos, marcado pela ascensão gradual da violência na medida em que se aproxima dos anos 1990. É interessante notar o paralelo que é feito entre o crescimento vertiginoso da violência e o aumento da variedade de produtos aos quais era necessário adquirir, assim como o crescimento paralelo da cena black da qual emergirá o rap – que passa inclusive pelo samba. Novamente o rap surge enquanto resultado da violência e como alternativa ao desfecho inevitável (“Corpo negro semi-nu encontrado no lixão em São Paulo / A última a abolir a escravidão”). O show vale exatamente isso: oferecer uma opção que não termina em morte em um contexto marcado por um quase determinismo de origem. Vale lembrar que os acontecimentos narrados na canção terminam em 1987, um ano antes do surgimento oficial dos Racionais MC’s.

Esse movimento de recuperar em chave histórica a trajetória do grupo, tornando-a matéria de reflexão, marca uma importante e decisiva mudança de horizonte. É claro que relatos de trajetórias individuais e histórias de vida sempre marcaram as canções do grupo, mas estas no geral se davam em termos individuais, ainda que representativas, acompanhando a própria trajetória individual dos rappers ou a de algumas personagens emblemáticas. Em Cores e Valores, pela primeira vez, os Racionais se colocam enquanto grupo como sendo, já, história, ou seja, enquanto portadores de valores e ensinamentos do passado. Até seu segundo ciclo o disco apresenta-se em uma relação de continuidade com o movimento atual do rap, inserindo-se nesse contexto de transformação de temas e sonoridades. A partir desse terceiro ciclo, entretanto, o foco  de interesse se direciona para aquilo que já passou. Ao  mesmo tempo em que a levam a obra “para frente”, olhando para o futuro com os dois pés no presente, mantendo-se atentos ao que se passa ao seu redor, o grupo está na estrada tempo suficiente para apresentar-se enquanto portador de um conjunto expressivo de experiências a se transmitir.

Ao incorporar uma reflexão sobre a temporalidade do rap a partir da formalização estética de sua própria história – a mais importante e significativa dentro do rap brasileiro -, o disco permite historicizar os novos desafios do hip hop, contemplando tanto os seus avanços quanto aquilo que no interior dessa experiência se esgotou. A esse propósito, creio que o sentido geral dessa “perda” pode ser melhor compreendido ao considerarmos alguns aspectos da forma.

Um dos traços mais marcantes de Cores e Valores, que imediatamente chama a atenção de quem ouve, é o grau de radicalidade de suas mudanças formais em relação aos trabalhos anteriores do grupo. Já de cara impressiona o tamanho das canções e do álbum como um todo, muito menor do que os trabalhos anteriores, com pouco mais de trinta minutos de duração. Segundo o próprio KL Jay, essa mudança tem relação direta com o tipo de escuta contemporânea:

Tem a ver com o mundo de hoje. Tudo rápido, poucas ideias, sem esticar o chiclete. Não pode ser chato. Tem músicas que são maiores, de três, quatro minutos, e que não são chatas. É legal esse lance de uma música entrar na sequência da outra, dá aquela vontade de ouvir mais. Você fica voltando para ouvir. Isso te instiga.

KL JAY, 2013

Para alguns, trata-se de um avanço em termos de densidade poética; para outros, uma inequívoca perda de intensidade dramática. Em todo caso, o sentido de organicidade comum aos discos dos Racionais se mantém, pois vimos como as canções adquirem significado pleno ao serem consideradas no interior do conjunto maior do disco, seguindo na contramão do caráter cada vez mais “atomizado” das canções de gêneros como o funk carioca, tecnobrega e sertanejo universitário, para os quais a gravação de álbuns de estúdio tem se tornado uma prática cada vez mais dispensável.

Além do tamanho das canções e do disco como um todo, a forma de se cantar também mudou, passando para um estilo mais “cifrado”. Aquele estilo de linguagem direta, com pretensões de assumir a forma de máximas de sabedoria  coletiva periférica, no qual se inscreve “a atuação humanizadora do rapper” (GARCIA, 2007, p. 214) ainda se apresenta, mas de forma muito menos constante do que nos trabalhos anteriores. Tudo se passa como se a poesia inicial de Jesus Chorou, de Nada como um dia após outro dia, que ali cumpria a função de parábola introdutória, tivesse se tornado a norma geral de composição. Em seu lugar surgem padrões mais entrecortados de versos, ligeiros, que chamam atenção para o flow. Certas  linhas temáticas conhecidas de longa data pelos fãs do grupo seguem por todo disco, porém em uma forma menos direta, entrecortada, especialmente nas letras de Mano Brown:

Conspiração funk internacional in / Jamaica Queen / Fundão Sabin / Fun- ção pra mim / Se Deus me fez assim / Fechou neguin / Eu tô sob verniz

Cores e Valores

A opção formal obviamente afeta a relação do ouvinte com a mensagem transmitida, ao menos no campo das intencionalidades. Destaca-se a habilidade do rapper em desenvolver o seu flow, e o que se admira é menos a dimensão coletiva de máximas periféricas do que o talento entoativo individual gestado na periferia (ainda aqui o paradigma é Emicida: mais do que o conteúdo de seus versos, o que chama a atenção do público, sobretudo fora do circuito hip hop, é sua extraordinária capacidade de improvisação). Essa espécie de voltar-se para si, para a forma, que caracteriza a linguagem de Cores e Valores em relação a seus predecessores, está também na base de outra importante mudança que se destaca desde as primeiras audições. As grandes narrativas “épicas” cedem lugar a relatos muito mais concentrados, quando não restritos a alguma opinião específica em canções de pouco mais de trinta segundos.

Tudo nesse álbum tende, portanto, a concentração formal, rompendo claramente com o padrão proposto em Nada como um dia após outro dia (que por sua vez rompia com o padrão da indústria fonográfica ao apresentar canções de até onze minutos). A hipótese é que esse conjunto de transformações, que guarda relação direta com a abertura temática e estrutural do rap contemporâneo tal como indicada pelos jovens rappers entrevistados pela Folha (o distanciamento – mas não necessariamente abandono – das temáticas privilegiadas nos anos noventa, a conquista do “direito de falar sobre coisas alegres”, o surgimento de novas tonalidades de cores, inclusive as femininas, e seu progressivo fortalecimento comercial) ocorre simultaneamente a um progressivo afastamento histórico do hip hop de suas bases periféricas, já tematizado em Nada como um dia após outro dia, e que aqui avança mais um passo.

Tal afirmação precisa evidentemente ser considerada com bastante cuidado, pois não se pretende sugerir que houve um “aburguesamento” do rap, que seria agora um novo estilo de classe média etc. Digamos que a relação expressa pela fórmula do negro drama, “você pode sair da favela, mas a favela nunca sai de você”, torna-se ainda mais densa, pois se em 2002 o movimento de sair da favela pelo “sucesso” do rap era uma possibilidade restrita, atualmente tem se tornado uma realidade muito mais palpável. A promessa de emancipação coletiva que era a aposta do movimento hip hop nos anos noventa não se realizou, enquanto o rap obtém cada vez mais reconhecimento e prestígio por meio de muito esforço e talento, nunca é desnecessário dizer. Além do mais, é preciso reconhecer que, ao que tudo indica, a trilha sonora do gueto contemporâneo é muito mais o funk do que o rap, o que faz deste um repositório de valores comunitários que vale a pena manter, mas que se encontra cada vez mais distante de uma relação orgânica com seu território de origem.

Tudo se passa como se os Racionais já não se sentissem autorizados a sustentar suas reflexões a respeito dos valores periféricos em trajetórias pessoais (suas ou dos outros), como se houvesse uma interdição fundamental a impedir a indexação do conteúdo temático (a relação entre as diversas cores e os valores financeiros e éticos) a conteúdos da realidade periférica objetiva – daí inclusive o caráter abstrato do título do álbum. O que em canções como Jesus Chorou, Fórmula Mágica da Paz, Vida Loka I e II era subjetivo, mas plenamente partilhável a partir do reconhecimento de uma experiência em comum, em grande medida desenvolvida pelo próprio hip hop, torna-se agora conteúdo abstrato. A periferia é ainda o grande foco das canções, mas a reflexão se constrói mais a partir dos valores aprendidos com ela no passado do que por meio da descrição pormenorizada de vivências periféricas do presente. Mesmo as narrativas centradas em bandidos, que são muitas, parecem ter uma conotação mais simbólica do que realista por seu alto grau de concentração, como se servissem ainda de exemplo, mas não pudessem mais ser acompanhadas de perto. Em todo caso, a certeza de que o conteúdo transmitido pelo rap identifica-se com a realidade periférica não está mais tranquilamente estabelecida.

As implicações disso são muitas, e merecem ser debatidas com atenção, pois indicam mudanças importantes no campo da cultura e da sociedade. Incorporado enquanto estética, o pressuposto ético fundamental do rap dos Racionais – o de que o sucesso comercial só vale a pena se representar uma alternativa real para toda a periferia, mantendo-se vinculada a ela em alguma medida – parece perder fôlego e força de mobilização. Ao se desvincular a vitória do rap (profissionalização) dos caminhos da comunidade, que segue no mais baixo patamar da escala social, seu potencial emancipatório é abalado, ainda que não necessariamente sua visão crítica, herdada da própria periferia. O rap segue sendo consciente, sem dúvidas, mas já não funciona tão bem como espaço de construção coletiva de um proceder comum.

É importante lembrar que o rap nunca foi um objeto cultural meramente estético. Sua radicalidade deriva em grande medida da regulação de sua dimensão estética pelo compromisso ético com a comunidade. Ou seja, boa parte de sua força consistia não apenas no fato dos rappers serem politizados, engajados, intelectualizados, etc., mas no poder de penetração dessas canções e seu conjunto de valores junto a coletividade periférica, que se politizava junto. O caráter coletivo dessa politização sempre foi o ponto verdadeiramente revolucionário do rap. Os rappers mais importantes do país não se colocavam como porta-vozes, como modelos, mas incorporavam as demandas da comunidade em suas canções de forma radical, para serem pensadas coletivamente. O objetivo nunca foi criar uma casta de rappers privilegiados com uma visão de mundo complexa, radical e progressista. Esse momento é fundamental, mas faz parte de um outro, mais decisivo, que é a participação ativa da periferia na construção desses valores. Caso o sucesso do rapper não seja acompanhado pela comunidade, o sentimento é de derrota e aporia.

Dentro desse novo contexto, qual lição os Racionais podem aprender e quais podem transmitir para essa “nova” periferia, sem desconhecer suas transformações e cientes das condições históricas que fizeram as coisas chegarem onde estão? Porque ainda que os temas permaneçam mais atuais do que nunca, insistir na mesma forma seria ignorar que a periferia mudou, abandonando assim a busca pela “voz ativa” da quebrada, que sempre norteou sua ideologia.

IV. Amores periféricos

A última canção do disco Eu te proponho, introduzida por Coração Barrabaz, expressa bem as contradições que procuramos acompanhar, o encontro dos novos desafios do rap com dilemas que vêm de longe, e cuja sobreposição no disco permite tanto problematizar os caminhos escolhidos quanto vislumbrar algumas respostas. O quarto e último ciclo do disco irá tratar do amor de forma inédita na obra do grupo, tomando definitivamente partido em uma polêmica que atravessou o universo hip hop quando “novos” nomes (Emicida, Criolo, Projota etc.) começaram a se destacar para a grande mídia. Dizia-se então que a temática do “verdadeiro” rap era aquela desenvolvida ao longo dos anos noventa, tratando de temas como violência, criminalidade, e que os novos rappers deturpavam o sentido original ao criarem letras com temáticas amorosas. Obviamente que a medida que esses nomes foram se firmando no cenário musical, tais críticas perderam força.

O clima nostálgico e dançante é deixado de lado, e as bases mais graves do início sustentam a levada de Coração Barrabaz. O vocal distorcido, grave, é empregado para tratar de um processo de separação com metáforas violentas que associam o lugar do (ex) amante ao de quem está preso. A seguir, a voz de Brown anuncia o desejo de felicidade e fuga, tema da próxima canção, talvez a mais complexa do disco em termos de integração de seus elementos fundamentais. Eu te proponho retoma o clima black dançante, sobre o qual o rapper destila os versos de Gilberto Gil (“Vamos fugir desse lugar, baby”). A associação entre amor e fuga é estabelecida desde o início, e pela primeira vez em um disco dos Racionais o amor entre homem e mulher aparece explicitamente como lugar de confiança, e não de traição – certamente em decorrência do avanço das conquistas das mulheres por um espaço cada vez maior na cena. A ambiguidade e a incerteza do corpo feminino, antes representado como o lugar de perigo extremo a ser controlado – o espaço inominável do desejo – aparece enquanto aposta positiva (pela primeira vez surgem versos como “Eu acredito em ti”, referindo-se a uma mulher). Pode-se dizer que esse estado de fruição que libera o sujeito do estado de vigilância constante é um dado novo no conjunto da obra dos Racionais.

Entretanto, é interessante notar o quanto esse estado de conciliação é o tempo todo atravessado por um conjunto de forças em sentido contrário – o anti-sujeito, para usarmos da terminologia semiótica – sempre relacionado aos aspectos marginais da vida loka (“E se moiá? E se o júri tiver provas contra nóis?”). Esse espectro sempre presente atinge o ápice precisamente no momento do encontro sexual propriamente dito, quando a base rítmica proposta por Kl Jay se altera radicalmente, deixando o clima dançante para criar novamente um contexto muito mais sombrio que propõe uma ruptura brusca, um encerramento. A partir daí abre-se um leque maior de associações, como que catalisando as diversas cores presentes ao longo do disco. O sampler de alguém tragando um cigarro de maconha, que acrescenta mais um sentido à ideia de fuga da realidade, se junta a um piano e a uma base “seca”. Os versos são os mais sexualmente explícitos da canção (“Vou entre suas coxas, minha diretriz”), imediatamente seguido por versos traduzidos de Marvin Gaye (“Não há morro tão alto, vale tão fundo”).

O resultado é que o clímax amoroso não é representado pela canção como um momento de descanso e paz; ao contrário, é nesse instante que as imagens de violência retornam com maior força. Ainda que sejam imagens positivas, trata-se d a positividade de uma situação de extrema tensão. Drogas, banditismo, marginalidade, refúgio bucólico, fuga da polícia: as imagens se sobrepõem e atravessam a promessa de paz e tranquilidade, que remetem aos versos “Conseguir a paz, de forma violenta”, de Diário de um detento.

Toda pressão, tudo, foda-se o mundo cão / Você no toque e eu com a glock na mão, já era / Refúgio na serra, eu fujo à vera, eu fui / Fundo na ideia eu bolo a vela, eu fumo / O norte é meu rumo, ao norte eu não erro / Os federais dão um zoom na 381 verá.

O momento de entrega sexual, que a princípio representaria a promessa de fuga das condições adversas (“vamos fugir desse lugar, baby”), é precisamente aquele em que toda violência retorna e tensiona a relação entre o prazer do desejo e a  utopia conciliatória final. Ainda se trata de uma superação da adversidade, é certo, mas está não é idílica e nem desfaz os laços com o real, espécie de versão atualizada do prognóstico de Negro Drama, onde é o amor que tira o homem da miséria, sem tirar de dentro dele a favela. Essa fratura negativa do desejo sintetiza os impulsos contraditórios que atravessam todo disco, o meio negativo a partir de onde as relações entre cores e valores são estabelecidas. Portanto, tanto o grande momento comercial que vive o rap quanto o voltar-se da periferia para o próprio desejo (movimento chave no funk) são atravessados por impulsos contraditórios e carregados de uma negatividade inscrita nas raízes – violentas – do hip hop. A canção termina com uma visão utópica recitada por Mano Brown, e uma canção de Cassiano que recupera os impulsos utópicos da música negra e que é bruscamente interrompida, como que sugerindo uma continuação do álbum (e que talvez tenha sido o Boogie Naipe, trabalho solo de mano Brown).

Eu te proponho realiza, dessa forma, uma espécie de síntese do embate principal que atravessa todo o disco, entre os novos desafios e horizontes do rap nacional e a relação com a periferia que tornou sua existência possível. No contexto presente, não parece ser possível manter a mesma linguagem do rap dos anos noventa, pois modo como a periferia reconhece a si e procura sobreviver no inferno cotidiano assume outras formas que fazem com que o padrão do hip hop anos noventa soe deslocado, forçado ou mesmo neutralizado[4], sendo a questão decisiva aqui a possibilidade de fazer com que os antigos valores persistam nessas novas condições, questão que atravessa Cores e Valores do começo ao fim.

As mudanças formais presentes em Cores e Valores comportam um tensionamento que contempla não apenas aquilo que o rap ganhou ao transformar-se, mas também o que foi perdido ao longo do processo. Ao sobrepor às duas camadas temporais – o rap enquanto negócio marginal, no sentido de ter origem no contexto de violência periférica e de ser um negócio da comunidade negra brasileira – os Racionais tornam visível e problemática a trajetória do rap nacional, avaliando sua história a partir de suas contradições internas. A posição histórica privilegiada do grupo permite recuperar o momento preciso em que o rap se articulou enquanto alternativa cultural, política e material ao processo de desagregação da periferia, sendo que sua radicalidade estética inicial dependeu em grande medida da articulação complexa entre ética e estética, ou seja, de um posicionamento radical – a ponto de “subordinar” o estético a demandas éticas – junto à periferia. É essa a radicalidade implícita no questionamento central de Quanto vale o show?, que aponta para a capacidade do movimento hip hop de, literalmente, salvar vidas.

Entretanto, a própria trajetória vitoriosa do rap, que afirma cada vez mais sua independência ao conquistar um reconhecimento profissional, comercial e institucional cada vez maior, comporta uma contradição decisiva que se inscreve na forma mesma de Cores e Valores. Pois a concentração formal do disco, além de inserir o trabalho em um diálogo direto com as demandas contemporâneas do hip hop, é também sintoma de certo afastamento do rap de sua matriz periférica, cuja subjetividade a que dava forma em certo sentido ficou no passado, apesar dos problemas históricos da periferia estarem longe de serem resolvidos. Cores e Valores é atravessado do início ao fim por esse espectro do “novo tempo do mundo” (ARANTES, 2014) em que certas experiências periféricas são incorporadas formalmente pelo rap sem se vincular diretamente as demandas de uma coletividade que progressivamente assumiria contornos mais conservadores. Mais precisamente, Cores e Valores é uma brilhante reflexão sobre esse afastamento, sobre o que se perdeu e ganhou pelo caminho.

Pode ser que o último disco dos Racionais, pela primeira vez desde que o grupo iniciou sua trajetória, não tenha sido o acontecimento mais significativo do hip hop brasileiro quando de seu lançamento (nessa categoria entram os trabalhos de Criolo e Emicida, por aquilo que representam no momento atual do rap), mas sua obra continua oferecendo um potencial de síntese estética que faz dela um espaço privilegiado de observação dos rumos da sociedade contemporânea em seus impasses. Ou seja, Cores e Valores também indica algo de uma experiência – ou desejo – humana emancipatória que em certo sentido se perdeu, e que viemos acompanhando ao longo desse trabalho. A vitória comercial e afirmação estética do rap, que lhe garante maior abertura formal, é simultânea a uma mudança na auto percepção musical da periferia, que em grande medida desloca radicalmente a dimensão de organização política da periferia, fundamental no hip hop[5].

REFERÊNCIAS

ARANTES, Paulo Eduardo. Bem vindos ao deserto brasileiro do real. In: Extinção. São Paulo, Boitempo, 2007.

BOTELHO, Guilherme. Quanto vale o show? O fino rap de Athalyba-Man.

A inserção social do periférico através do mercado de música popular. Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 2018. Dissertação de mestrado.

BROWN, Mano. Entrevista concedida à revista Showbizz, n. 155, jun. 1998.

         . Entrevista concedida a Spensy Pimentel, 2006. Disponível em:

<http://www2.fpa.org.br/o-que-fazemos/editora/teoria-e-debate/edicoes- anteriores/ cultura-entrevista-com-mano-brown>. Acesso em: 05 de jan. 2017.

CAMPOS, Felipe Oliveira. Cultura, Espaço e Política: um estudo da Batalha da Matrix de São Bernardo do Campo. Universidade de São Paulo, 2019. Dissertação de mestrado.

D’ANDREA, Tiaraju Pablo. A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo. Universidade de São Paulo, 2013. Tese apresentada ao departamento de Sociologia.

EMICIDA. ‘Me cobro para buscar novas maneiras de fazer velhas coisas’, diz Emicida. Folha de São Paulo. São Paulo, 29 de dez., 2014.

FACCHI, Cleber. Cores e Valores, Racionais MC’s. Miojo Indie, 03 de dez., 2014. Disponível em: <http://miojoindie.com.br/disco-cores-e-valores-racionais-mcs/>.

FELTRAN, Gabriel de Santis. Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo. Caderno CRH, v. 23, n. 58, 2010.

FELTRAN, Gabriel de Santis. Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo. Caderno CRH, v. 23, n. 58, 2010.

GARCIA, Walter. Diário de um detento: uma interpretação. In: NESTROVSKI, A. (org.) Lendo Música. São Paulo, Publifolha, 2007.

         . O novo caminho de Edi Rock. Le monde diplomatique: Brasil, ano 7, n. 76, nov. 2013.

MARQUES, Adalton. “Liderança”, “proceder” e “igualdade”: uma etnografia das relações políticas no Primeiro Comando da Capital. In: Etnográfica, vol. 14 (2), 311- 335, 2010.

MENDES, Beatriz. O laboratório de Emicida. Carta Capital, São Paulo, 24 de ago., 2012.

Revista Rap Nacional. Mano brown é apedrejado com comentários após aparição em videoclipe de funkeiro. RRN, V. 11, abr. 2013.

ROLIM, Gabriel. Racionais – Cores e Valores. Monkey Buzz, 04 de dez., 2014. Disponível em: <http://miojoindie.com.br/disco-cores-e-valores-racionais-mcs/>

SANTOS, Daniela Vieira dos. Sonho Brasileiro. Revista Nava, v. 4, n. 1/2, 2019.

SORAGGI, Bruno B.; PEREIRA, Elvis. Inspirada nos Racionais MC’s, nova geração dá mais cores e valores ao rap. Falha de São Paulo. São Paulo, 21 de dez., 2014.

SORAGGI, Bruno. B. ‘O que eu canto tem ficção misturada com realidade’, diz o rapper Ogi. Folha de São Paulo, São Paulo. 22 de dez., 2014.                                                                                  . ‘É preciso se manter fiel à verdade, mas livre pra experimentar’, diz Rael. Falha de São Paulo, 21 de dez., 2014.

TEPERMAN, Ricardo Indig. Do rap ao rap: Emicida de 2015 não é o Racionais de 1990. Nexo Jornal, 13 de nov., 2015.

         . O rap radical e a “nova classe média”. Psicologia USP (Impresso), v. 26, p. 37- 42, 2015.

FONOGRAMAS

CRIOLO. Nó na Orelha. Oloko Records, 2011.

         . Convoque seu Buda. Oloko Records, 2014.

EMICIDA. Pra quem já mordeu cachorro por comida até que eu cheguei longe. Laboratório Fantasma, 2009.

         . O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui. Laboratório Fantasma, 2013.

         . Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa. Laboratório Fantasma, 2015.

RACIONAIS MC’S. Holocausto urbano. Zimbabwe, 1990.

         . Escolha seu caminho. Zimbabwe, 1992.

         . Raio-X do Brasil. Zimbabwe, 1993.

         . Sobrevivendo no inferno. Cosa Nostra, 1997.

         . Nada como um dia após outro dia. Cosa Nostra, 2002.

         . Cores e Valores. Cosa Nostra, Boogie Naipe, X-File Records, 2014.

 SABOTAGE. Rap é compromisso. Cosa Nostra, 2000.


[1] Uma outa forma de interpretar o disco, a meu ver bem mais produtiva, é considera-la como sendo uma única música de pouco mais de trinta minutos, como faz Tarso de Melo em texto publicado em seu blog “Cores & Valores, em menos de trinta minutos divididos em quinze faixas, é uma música só, uma porrada só, um grande baile em que as agonias do nosso tempo são colocadas na mesa, estiradas no chão da Praça da Sé e, depois, tiradas pra dançar, já acenando para as outras praias que os discos solos de Edi Rock e Mano Brown vão multiplicar”.

[2] Esse modelo de canção atravessa toda a trajetória do grupo, e os exemplos são vários: Mano na porta do bar (1993), Tô ouvindo alguém me chamar (1997), Rapaz comum (1997), Eu sou 157 (2002), Crime vai e vem (2002), Mente de vilão (2009), entre outras. A diferença é que aqui não se acompanha a trajetória completa de vida do bandido, mas apenas um momento específico, como uma espécie de lição.

[3] Mano Brown foi muito criticado por aparecer em um videoclipe de seu amigo MC Pablo do Capão, em 2013, novamente com acusações de que estava traindo o “verdadeiro” rap. Quanto a isso, suas palavras são muito claras: a questão ali não é estética. “É o mesmo povo, é a mesma cor. Eles [a polícia] não estão diferenciando se canta funk, rap ou samba. É favelado falando, eles não gostam […] O errado é os que não são do funk não protestar pelos os que são do funk. A gente sabe que na verdade ali é racismo puro, isso é racismo puro” (Revista Rap Nacional, abr. 2013).

[4] “O rap não pode ser limitante. O negro já tem tantas limitações no Brasil, tantas regras e o rap ainda te põe mais cerca. Não pode isso, não pode aquilo. O rap nasceu da liberdade e da expansão das ideias. É mais comovente se apoiar na fraqueza e divulgar isso, lavar roupa suja o tempo inteiro, expor as fragilidades o tempo todo, na feira livre. Teve um momento em que isso foi preciso. Hoje em dia é exposição, é Datena, que entra na casa das pessoas e mostra a panela suja, o cara morto embaixo da cama, é isso aí. Teria que ser isso e eu não quero ser isso” […] “Ninguém vai algemar o Pedro Paulo. Ninguém vai me fazer Mano Brown o tempo todo. Pode esquecer. Querer fazer a minha vida virar Racionais o tempo inteiro ninguém vai. Na minha vida mando eu. Eu quero que as pessoas sejam livres e eu também sou.” (BROWN, 2009).

[5]  Para tentar compreender as razões que levaram a um considerável crescimento da produção artística da periferia – não apenas o hip hop (incluindo dança e grafite, além do rap), mas também a produção literária, os saraus, os coletivos de samba, etc. – entre os anos 1990 e 2013, Tiaraju D’Andréa levanta um conjunto de quatro grandes motivadores principais: 1) A produção cultural como pacificação (fomentar o encontro, a utilização dos espaços comuns, a arte e a cultura); 2) como sobrevivência material (a produção cultural como forma de profissionalização e alternativa ao mundo do trabalho precarizado e às atividades ilícitas); 3) como participação política (a descrença no mundo da política, o fim de ciclo de trabalho de base do PT nas periferias de São Paulo, a busca de novas formas para a política) e 4) como emancipação humana. Digamos que no momento atual o rap se fortalece em sua dimensão de sobrevivência material, mas perde força tanto enquanto espaço de integração cultural, paulatinamente perdendo espaço para os bailes funk, quanto no campo de alternativa ao esgotamento de horizontes da política partidária.

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