Livro

O Brasil no coco de Caetano: afinal, de que seria o Brasil (e a MPB?), oportunidade?

I

No dia 21 de outubro de 2021, Caetano Veloso apresentava ao mundo o tão aguardado Meu coco, seu primeiro álbum de inéditas após nove longos anos de espera. O disco deixava de lado a sonoridade típica daquela que ficou conhecida como sua bem-sucedida “trilogia rock”[1] (ou “transamba”), marcada pela crueza minuciosa da sonoridade proposta pelos jovens músicos Pedro Sá (guitarra), Marcelo Callado (bateria) e Ricardo Dias Gomes (baixo), e na qual a linguagem musical de Caetano havia se atualizado, aproximando-se de uma comunidade mais jovem e, digamos, alternativa. O movimento, até certo ponto arriscado, como é próprio do artista, revelou-se certeiro ao conectar a proposta estética de Caetano com o estado de espírito e as inquietações da chamada geração Z, fazendo dele um dos músicos da “velha” MPB mais diretamente conectado com a “novíssima” geração – agora desprovida de rótulos. Ao menos até o furacão Elza Soares encontrar-se com o futuro e se converter na entidade conhecida como A mulher do fim do mundo.

Meu coco, ao contrário, propõe algo como uma espécie de “retorno” ao padrão MPB em seu sentido mais clássico. Diferentemente dos fenomenais Besta fera (Jards Macalé, 2019), Encarnado (Juçara Marçal, 2014), ou mesmo a já citada trilogia , discos que em diversos aspectos rompem com a entidade fantasmagórica que até os anos 1990 respondia pela sigla MPB, Meu coco recupera muitos elementos desse imaginário clássico, retornando a padrões temáticos e musicais que nos acostumamos a ouvir em bares, restaurantes e novelas, tudo em chave nova, porém similar, sem soar (na maioria das vezes, ao menos) como caricatura de si, embora seja autorreferente até o limite.

Ouvindo com atenção, percebe-se que boa parte das fases do artista estão presentes no disco, com exceção talvez de sua face mais radicalmente experimental: a sonoridade crua da fase , as calculadas e elegantes incursões percussivas de Livro, o barroquismo transcendental das cordas de Jaques Morelenbaum, o pop grandioso de A outra banda da Terra. Além disso, temas bem conhecidos são revisitados, tais como a Bahia, a bossa nova, o Rio de Janeiro, a novela, a cultura pop, as novas tecnologias, o samba, o axé, as brasilidades, a negritude e, sobretudo, a mestiçagem. O resultado é um trabalho orgânico e bem estruturado, que apresenta um olhar singularmente reflexivo para a realidade brasileira (mas não só) que não emerge como resultado de postulados intelectuais abstratos, mas como um espaço sentimental no qual é possível habitar por meio das canções. Um disco que transborda de afeto e esperança pelo país, deixando-se guiar pela beleza de suas canções, das quais emergem um Brasil profundamente íntimo e pessoal, e que, por isso mesmo, diz respeito a todos nós.

Olhar para dentro de si em busca de um país por inteiro, nele encontrando fissuras que apontam para o futuro que se revela presente naquilo que permanece passado: um movimento radicalmente complexo e de grande voltagem, a um só tempo artística e reflexiva, e que só poderia sair do coco de alguém cuja vida pessoal se confunde publicamente com os percalços do Brasil em suas tentativas – entre inúteis e sedutoras – de concretizar alguma imagem difusa de democracia por vir.

Definitivamente, não é para qualquer um.

II

No coco de Caetano, o Brasil é menos lugar que método – no mais, a grande lição do mestre João Gilberto. Uma certa maneira de olhar, um jeito de corpo. Diz respeito, portanto, ao campo dos desejos. O índio por vir, inscrito nos quereres do sujeito, mas que só virá a partir daqui e que, por isso, já é, nesse instante, enquanto não ainda. Virá que eu vi. A rigor, a qualidade da obra de Caetano nunca dependeu de um horizonte de realização dessa potência, embora a mantenha sempre à vista, menos ato que matéria para o pensamento. Um lugar abstrato transutópico a partir de onde observa e corrige a realidade, lançando mundos no mundo e enxergando o porvir nos destroços do presente.

O Brasil vai dar certo porque eu quero. O Brasil como desejo dos brasileiros em seu desejo de ser. O Brasil como Vontade.

Reconhecer em si o mundo enquanto faz dele expressão do próprio ego. Salta aos olhos a percepção de certo narcisismo inerente a essa postura, tão decantada entre os detratores do artista. Entretanto, tal conceito pode se revelar uma categoria analítica produtiva, desde que a afastemos do reducionismo de juízos puramente morais. Longe de expressar mera veleidade, o narcisismo de Caetano é, sobretudo, método. De fato, seu ego “organiza o movimento” e o Carnaval em torno do seu próprio umbigo, mas, ao contrário do que se poderia imaginar, tal processo não faz desaparecer a realidade exterior, submersa em um subjetivismo redutor (embora frequentemente obscureça os limites entre visão crítica, autopromoção e veleidade). Pois não existe uma só canção ou regravação de Caetano, por mais particularizada e subjetiva que seja, que não comporte algum juízo reflexivo a respeito do mundo. Este, por sua vez, reduzido às dimensões do próprio corpo, se torna a um só tempo objeto de performance artística e reflexividade. Em vez de um paradigma de fuga do real, o narcisismo é o modo com que o sujeito enfrenta o mundo, encaminhando o ego diretamente para o olho do furacão, que se dissolve reflexivamente no todo.

Caetano (quase) sempre fala de si, de fato. Essa fala, no entanto, (quase) nunca é apenas autoelogio vazio: a reflexão sobre sua condição de estar no mundo é o ponto do qual emergem múltiplos e contraditórios aspectos da realidade. Um olhar que observa a si a observar o mundo, a um só tempo de dentro e de fora.

Quando eu cheguei por aqui eu nada entendi. O eu é já um outro.

Em seus melhores momentos, as canções de Caetano apresentam um brilhante e ousado equilíbrio entre a exposição agônica da própria subjetividade; uma reflexão profunda sobre a música popular enquanto forma radical de pensamento; e uma sensibilidade profética a respeito do devir brasileiro no mundo – de modo que cada nova possibilidade estética inventada corresponda a uma nova possibilidade de inscrição do ser brasileiro no mundo. Repouso do universal no particular, a pergunta fundamental sobre o existir (existirmos, a que será que se destina) inscrita por completo no mais prosaico dos gestos (a cajuína cristalina em Teresina). A transfiguração em projeto daquilo que João Gilberto e Jorge Ben realizaram musicalmente ao interpretar o passado sob a luz das técnicas mais avançadas do presente, para daí abrir possibilidades outras de futuro. Transcendência intransitiva de um ateu crente de Brasil.

Ao falar de si, Caetano é o Brasil inteiro. Ou quase. Afinal, em sua obra, o Brasil nada mais é do que uma estrutura de pensamento cuja materialidade formal recebe o nome de MPB. Dentre seus fundamentos, a maneira como o Tropicalismo ressignificou o sentido político e estético mais geral do próprio gênero. Passemos a ele.

III

Em linhas gerais, a fase inicial da MPB pode ser descrita como um movimento cultural encabeçado por uma classe média intelectualizada, mais ou menos progressista, que se colocava em oposição à ditadura civil-militar.[2] Uma oposição, entretanto, que fora desarticulada na base pelos militares em seus vínculos estruturais mais concretos com as chamadas classes populares, o que acabava por gerar uma espécie de convite à mobilização sem a participação do povo, com resultado estético variável. Em seus momentos mais problemáticos, as canções replicavam essa espécie de protesto no vazio,[3] resultando em um populismo revolucionário de caráter abstrato, repleto de fórmulas didáticas e redundantes (o dia que virá), ainda que avançadas na forma, influenciada, no geral, pela bossa nova. Em suma, um modelo desengajado de engajamento cujo horizonte final é o conformismo de classe.

Esse padrão populista de engajamento será profundamente criticado pelos tropicalistas, que surgem no cenário cultural com o objetivo, entre outros, de desvelar o vazio dessa fórmula, propondo um novo significado para o conceito de MPB, que desloca seu sentido político do plano do conteúdo para a forma. Os tropicalistas irão liberar os conteúdos da MPB de um imaginário previamente definido desde fora, em nome de um porvir abstrato e de uma identidade nacional bem assentada em termos imaginários. A partir de então, a ênfase na identidade nacional (que permanece) irá recair mais sobre o método do que sobre os temas, que podem abordar desde uma moda de viola até o rock‘n’roll mais barulhento. O Brasil como porvir, resultado do processo artístico.

Após a passagem do furacão tropicalista, a força política da MPB não será mais julgada exclusivamente em relação a seus conteúdos mais ou menos engajados. A canção deixa de ser compreendida como um objeto nacional-popular com códigos perfeitamente delimitados, para ser assumida como método de investigação e disputa em torno de sua própria sigla (Música, Popular e Brasileira). O significante MPB deixa de se referir a objetos em particular, ligados a uma visão política determinada, e passa a representar uma disputa em torno de seus próprios termos, cujos sentidos serão completamente variáveis, quando não contraditórios.

Nesse sentido, o verdadeiro significado político da MPB pós-Tropicalismo (i.e., a MPB por excelência) está menos em seu conteúdo do que em sua forma, na maneira como essa incorpora e sintetiza uma série de contradições do projeto de modernização nacional no período da ditadura. E isso tanto por parte de artistas mais politizados, como por aqueles que apostam em formas mais subjetivas de expressão. Ou seja, a MPB se assume em definitivo como um sistema de pensamento, menos diretamente ligada à ideologia política de um grupo particular (seja à direita ou à esquerda) do que a certo imaginário mais amplo de Brasil, que materializa as contradições dos múltiplos projetos de modernização do país.

Voltando a Caetano – não por acaso, um dos grandes mestres do Tropicalismo –, a força de sua obra passa justamente por essa capacidade de incorporar radicalmente toda a potência da MPB enquanto estrutura de pensamento, para a partir dela apostar nas possibilidades do país em apresentar um projeto civilizatório de alcance global, como se sua obra fosse uma espécie de máquina de inscrever a originalidade brasileira nas coisas. O Brasil, que está em primeiro lugar em seu próprio olhar, é ao mesmo tempo algo que não se localiza em nenhuma particularidade, e o movimento que permite corrigir e deslocar tudo o que vem de fora em nome dessa coisa que é puro movimento, embora exista no espaço. E cuja missão é, nada mais, nada menos, que a salvação da humanidade.

IV

Tal originalidade brasileira está inteira no coco e no disco de Caetano Veloso, que aposta todas as suas fichas no que enfim há de nos redimir contra todas as formas de fascismo: Os Tincoãs, João Gilberto, Ary Barroso, Noel Rosa, Tom Jobim, Pixinguinha, Jorge Ben, Jorge Veiga, Djavan, Milton Nascimento. Além de novas possibilidades em forma de Enzos, Ferrugem, Glória Groove, Maiara e Maraísa, Marília Mendonça, Duda Beat, Djonga e Baco Exu do Blues. Todos guiados pelo Santo Espírito Samba, que sem ele não dá. Note-se que não vai nisso conformismo, embora vá, sim, mitificação. Mas um mito ativo, que almeja tomar de volta o Brasil, ou a brasilidade, de falsos Mitos e “messias de arma na mão”[4], como nos diz Luiz Antonio Simas[5]. Recuperar o Brasil que nos foi sequestrado, inventando um novo país se preciso for.

Problema nenhum com isso, muito pelo contrário. Livrar o Brasil de seus falsos messias parece ser, no momento, a única missão civilizatória possível. O problema, no caso, é outro: a partir de onde e em nome de que Caetano propõe que façamos isso? Nesse ponto, as coisas parecem ser bem mais apocalípticas e, ao que tudo indica, Enzos não nos salvarão. Tampouco os paradigmas que outrora embalaram os sonhos da MPB e que aqui retornam sob nova roupagem.

No momento em que escrevo esse ensaio, Genivaldo de Jesus Santos, um homem negro de 38 anos, acaba de ser morto por policiais rodoviários federais em Umbaúba, no litoral sul de Sergipe. Nada de novo sob o sol, a não ser pelo caráter excessivo do caso: os assassinos montaram uma câmera de gás no porta-malas da viatura, remetendo a um misto de campo de concentração e navio negreiro, e em pleno dia asfixiaram Genivaldo até a morte, enquanto dezenas de aparelhos celulares registravam tranquilamente o extermínio. Mais do que morte, recado: “Não se trata apenas de produzir a morte física, mas também a morte das possibilidades existenciais. Tirar a vida biológica é insuficiente; é preciso eliminar a memória que se tem sobre os mortos”.[6]

O Brasil é uma oportunidade. Claro que sim, e disso não duvidamos. O ponto é: oportunidade de quê? A propósito, quem entendeu isso melhor do que ninguém foi nosso fascismo miliciano de matriz escravocrata, que soube aproveitar muito bem o clima de liquidação total para acelerar o fim do mundo e “passar a boiada”. A polícia, miliciana, genocida e racista em sua essência, tornando-se enfim forma de governo.

É sempre possível seguir afirmando que esse não é o verdadeiro Brasil, que o Brasil real é o que se inscreve no porvir enquanto promessa de felicidade. “Se o Brasil achar solução para si, vai salvar o resto do mundo”, como aposta um Bruno Latour em franca (e algo desesperada) esperança.[7] Entretanto, passados mais de 500 anos de massacres sistêmicos e mais de 130 anos da Abolição, já não estaria mais do que na hora dessa esperança difusa e desesperada mostrar efetivamente a que veio? Dito de outro modo: se tudo o que essa utopia consegue oferecer como arma para enfrentar o apocalipse são Ferrugem, Maiara e Maraísa e, pairando sob tudo o mais, certa percepção hipostasiada da mestiçagem enquanto locus utópico por excelência, podemos entregar as nossas almas à condenação eterna sem esperança de redenção.

Sigamos, então, nos rastros dessa pergunta: de que seria o Brasil oportunidade? O disco, obviamente, faz suas apostas. Algumas das novidades nele presentes soam como simpáticas peças de museu. Outras estavam no começo do ciclo que nos trouxe até o abismo presente, para começo de conversa. Daí que alguns de seus pontos de partida sejam bastante difíceis de aceitar, como o que se expressa no verso “Tudo embuarcará na arca de Zumbi e Zabé”. Afinal, a tal arca parece ter afundado já há algum tempo; Zumbi não está em Buarque, como o próprio já declarou em “Sinhá”(em parceria com João Bosco); e “embuarcar” não parece ser caminho futuro, mas passado, e que, para todos os efeitos, deu no que deu.

Pairando acima de todas essas sugestivas e sintéticas provocações, a imagem-mito de uma Isabé a emergir como síntese enunciativa silenciosa entre Zumbi e Zabé da loca, apontando para uma espécie particular de conciliação que representaria o gesto da princesa Isabel (i.e., a abolição) como complemento amoroso/conflituoso à figura de Zumbi. Não mais como a redentora branca do imaginário liberal-conservador, mas como uma figura mítica de tipo novo, redimida pela luta do movimento negro, capaz de reconhecer nela uma aliada. Dialética entre dois mitos e, no limite, duas raças, enfim unidas em torno de um ideal comum? Talvez, mas com um alvo bastante preciso: menos a historiografia oficial (que já consagra a princesa) do que o movimento negro, evocado aqui de forma provocativa.

Caetano já indicou mais de uma vez preferir o simbolismo do 13 de maio ao do 20 de novembro, apontando para fatos históricos importantes, tais como a ligação real de Isabel com o movimento abolicionista (como no caso do Quilombo do Leblon[8]), para além da mera imagem figurativa e acessória com que costuma ser retratada por seus críticos. Sabemos, contudo, que não é exatamente disso que se trata, pois estamos aqui mais próximos do mito do que da história, e da possibilidade de uma forma narrativa centrada não na afirmação, mas na resistência contra o Estado ao qual Isabel servia.

Como bem recorda o músico e pesquisador Túlio Villaça em ensaio primoroso onde compara o disco de Caetano ao mais recente trabalho da cantora Juçara Marçal,[9] Sérgio Camargo, o presidente negro e fascista da Fundação Palmares, expressou recentemente o desejo de “mudar o nome da instituição para Fundação Princesa Isabel”. Seu objetivo é o de destruir por dentro a memória construída pelo movimento negro, apagando o nome de Palmares da história a partir da reatualização da figura da princesa como redentora de um povo bestializado. Não é esse, obviamente, o objetivo de Caetano: o que ele busca é, digamos, uma forma de combinar o “melhor dos dois mundos”, a legitimidade da luta negra com a simpatia pela princesa europeia abolicionista. Um movimento que aposta no Brasil como potência mestiça, onde os encontros étnicos têm o poder de criar radicalidades disruptivas. Potência essa que se apresenta em todo seu esplendor na beleza específica da música popular, capaz de abrigar sob sua forma tanto os gestos mais avançados de uma classe média bem-intencionada quanto o potencial subversivo da criatividade popular, criando uma imagem redentora de futuro.

Para isso, entretanto, é preciso silenciar sobre aquilo que na figura de Isabel emerge como indício claro de interdição. Ou seja, aquilo que nela representa a negação da segunda vinda do messias, a verdadeira abolição integral tal qual sonhada pelos Quilombos – um novo e mais profundo Haiti, fantasma que fundou (negativamente) o constitucionalismo brasileiro.[10] Desde esta perspectiva, substancialmente mais radical, não haverá segunda abolição sem que essa primeira – isabelense – seja derrotada. Um retorno à boa e velha luta de classes que desaparece no coco de Caetano, que não pode abdicar do papel mediador da classe média branca em sua utopia – afinal, o papel que lhe cabe enquanto perpetuador do legado de João Gilberto. Dessa perspectiva, tal visão alternativa de futuro – o retorno do verdadeiro Cristo negro – só pode aparecer como uma distopia cujo resultado é, na melhor das hipóteses, uma forma talvez mais violenta de apartheid.

Mais à frente, outro verso nos informa que “o português é um negro dentre as euro-línguas”. Ao mesmo tempo que é fácil se deixar encantar pela sugestão de que o enegrecimento do português foi capaz de superar a aspereza feia e violenta de palavras como câimbra, furúnculo e íngua, com o negro subvertendo na própria linguagem (ou seja, na base do pensamento) as condições de degradação impostas pela colonização, a analogia entre a condição negra e o caráter secundário da Língua Portuguesa na Europa não pode ser levada até as últimas consequências. O fato de ser a menos prestigiada das línguas europeias não faz dela um negro: afinal, existe um navio negreiro de distância a bloquear, de saída, a mera possibilidade de comparação. Brancos de segunda categoria são, ainda assim, brancos, e frequentemente mais mortais do que os que integram os esquadrões de elite mais higienizados das metrópoles.

Em Caetano, a canção parece ser menos coisa que lugar, ou modo: a forma de subversão da dor em prazer. Um pensar por entre frestas. Os mesmos anjos que reduzem a vida à algoritmos permitem aos neurônios ganhar novos contornos (algo)rítmicos que, enfim, poderão fazer emergir o novo. Menos conciliação passiva que olhar em paralaxe, que encontra na forma heterogênea da canção um rendimento extraordinário. Ainda assim, seria mesmo a música de Billie Eilish signo positivo do porvir que emerge do horror contemporâneo ou, ao contrário, sua mais profunda forma de consolidação? E será mesmo o sertanejo universitário de Maiara e Maraísa a reatualização contemporânea do samba (leia-se, João Gilberto) capaz de endireitar o que no país anda esquisito e errado? Não seria, antes, o sertanejo universitário uma máquina cultural de desaparecimento da alteridade negra e indígena, significativamente integrada e satisfeita com o novo normal? Expressão, mais do que de resistência, da própria queda?[11]

V

Em Meu coco as canções podem muito. Quiçá podem tudo, inclusive derrotar o fascismo e reencantar o mundo. Uma aposta ousada, afinal; talvez as polcas não quisessem ir tão fundo. Mas aqui é preciso levar a sério essa aposta, pois, como vimos, a MPB é a própria formalização estética da forma moderna de Brasil que Caetano irá transformar em projeto utópico-existencial, uma forma particular de ser. Seu potencial utópico consiste, portanto, na possibilidade de se seguir desejando, mostrando não apenas que ainda faz sentido acreditar, mas que este é um movimento fundamental. A Utopia nada mais é que o movimento decisivo de ativar as brechas que nos permitem seguir respirando – e não por acaso, o primeiro movimento do fascismo é sequestrar sonhos e desejos.

Ainda assim, no meu próprio coco não deixa de ecoar, como um mantra, os versos de Negro Léo entoados por Juçara Marçal: “Desavisados emulam o futuro, porta aberta que bateu lá atrás.”[12] A força existe, mas haverá, de fato, cais para ancorarmos? Senti falta no disco de Caetano dessa dimensão de impotência, que é também consciência da própria fragilidade do seu projeto de utopia mestiça. Assim como senti falta da percepção daquilo que em seu reservatório utópico revela-se enquanto continuação do horror por outros meios. Intelectuais e artistas que defendem, como Caetano, uma percepção crítica da mestiçagem, frequentemente recusam tanto as armadilhas do binarismo quanto dimensões ideológicas francamente reacionárias de mitos como o da democracia racial, propondo uma espécie de terceira via cujos resultados, no entanto, se aproximam perigosamente daquilo que já está posto, afetando pouco ou quase nada as dissimetrias no poder. O efeito, paradoxal apenas em aparência, é que a defesa da pluralidade mestiça quase sempre resulta em velhas formas hierarquizadas de poder branco.

Por outro lado, aquilo que me faz falta não necessariamente falta ao disco. Talvez seja precisamente o contrário, pois a organicidade é uma das muitas qualidades de Caetano. Mas a homogeneidade frequentemente projeta sua dissonância para além: daí a sensação de que o clima de redenção programática só possa existir mesmo em torno da órbita do irrequieto coco de Caetano. O que se não é defeito artístico, tampouco é o Brasil.

Caminho radicalmente diverso é o apresentado por Juçara Marçal em Delta Estácio Blues, por exemplo. Nele, a impotência do presente abre novos caminhos no passado, reivindicando um mito de tipo novo. Um mito em que o próprio João Gilberto (pai fundador da Utopia-Brasil de Caetano) “está obsoleto com trinta anos de antecedência”[13]. Ou seja, uma utopia que salta diretamente dos Quilombos para a verdadeira liberdade, sem a mediação do projeto de imaginação moderna e nacional que atravessa o coco de Caetano enquanto reservatório de possibilidades. Uma utopia em tudo diversa (quem falou que só podemos ter uma?), tão nossa quanto aquela, mas que desde certa perspectiva mestiça só pode aparecer enquanto alheia, estrangeira e imprópria. Um curioso gesto de recusa em nome do que seria certa vocação mestiça antropofágica que, a princípio, a tudo deveria comportar. Menos, é claro, aquilo que tenciona o que lhe há de mais elementar.

É Túlio Villaça que, mais uma vez, demonstra a tensão constitutiva entre esses dois projetos de fundação mítica da utopia. Vale a pena a citação mais longa:

Caetano, em seu livro Verdade tropical, fala dos dois gigantes da América, EUA e Brasil ao norte e ao sul, e sua difícil convivência. Juçara traça um elo (não tão) perdido entre a música negra dos dois países, não no tempo, mas territorial, aproveitando o elemento mítico para colocar o Brasil em vantagem – pois Robert Johnson vem receber seu poder, receber a unção de Bide, Marçal e Ismael – uma Santíssima Trindade ao avesso, que substitui o Demônio no pacto. Só que, para Caetano, esta reescrita mítica não é necessária, pois o elo perdido para ele foi achado em 1958, por um homem branco de Juazeiro e igualmente com a vantagem para o Brasil, mas possivelmente um outro Brasil.  […] Caetano insiste no suposto vigor da MPB em promover uma inclusão geral e que esta união seria a arma mais potente contra o fascismo, enquanto Juçara prefere seguir a trilha aberta pelos excluídos e elaborar uma resposta ao fascismo que não caia nos mesmos erros da trilha que, ao fim e ao cabo, permitiu sua ascensão.[14]

Em Meu coco Caetano convoca todas as forças da brasilidade, inscritas sobretudo na música popular, contra o fascismo. Uma verdadeira frente ampla que se confunde com o próprio país a realizar o melhor de suas potencialidades. Por isso quer ver redimido o gesto da princesa Isabel e do 13 de maio, filtrado pela radicalidade de João Gilberto e Chico Buarque, em aliança com o movimento negro. Delta Estácio Blues, por sua vez, é todo 20 de novembro, reivindicando o político como um não lugar a ser inventado a partir dos destroços não nomeados no presente. Nem Brasil, nem brasilidade – o próprio devir negro em diáspora. Uma utopia de universalidade que se produz por meio da clivagem, portanto. Não se trata, como se costuma dizer, da substituição do universal pela afirmação de uma identidade autorreferente incapaz de construir projetos coletivos, mas de reconhecer que o único Universal digno desse nome é o que emerge por meio da afirmação do devir negro em diáspora – avesso constitutivo da modernidade colonial. O resultado é um disco significativamente mais difícil e resistente ao presente do que Meu coco e, ao mesmo tempo, mais contemporâneo e próximo desse lugar que já é sem ser, tão almejado por Caetano.

VI

Os discos de Caetano Veloso estão sempre em diálogo direto com o espírito de seu tempo. O enigma da modernização brasileira nos anos 1970; a politização do cotidiano e do imaginário nos anos 1980; o lugar do projeto-Brasil no concerto das nações nos anos 1990; o que emerge depois do fim das utopias nos anos 2000.[15] Mesmo discordando-se de sua interpretação de mundo, sua obra frequentemente convoca o ouvinte a abandonar a passividade, convidando-o a se posicionar diante de uma determinada situação condensada artisticamente. Trata-se de um tipo de arte particularmente potente, que não se contenta em confortar o público em suas perspectivas prévias, tensionando de forma complexa e artisticamente relevante aquilo em que ela própria acredita.

Nesse sentido, o artista segue sendo um dos que mais acertadamente incorporaram a forma-MPB como método de investigação sobre o que nos constitui enquanto sociedade. Não que ele tenha dado a melhor resposta para essa pergunta. Mas certamente é muitíssimo bem-sucedido em transformar a própria obra em uma reprodução infinita e em tons diversos dessa pergunta fundamental por seus próprios fundamentos – no fim das contas, o próprio significante nacional. Chico Buarque pergunta por aquilo que não mais somos desde que dormimos no ponto e deixamos a banda passar. Caetano Veloso pergunta o que podemos vir a ser a cada momento em que já somos.[16]

Quando essas percepções afiadas permanecem na condição de perguntas sobre nosso modo de ser no mundo, elas se tornam bastante produtivas. “O samba ainda vai nascer/ O samba ainda não chegou/ O grande poder transformador” (“Desde que o samba é samba”). “O melhor o tempo esconde/ Longe, muito longe/ Mas bem dentro aqui” (“Trilhos urbanos”). O melhor está por vir, ainda que já esteja por aqui desde o início. Ao mesmo tempo, esse olhar para o que existe enquanto um não ainda garante a percepção de que o presente não é bom, mantendo a tensão crítica e evitando o mero deslumbramento adocicado. “Aqui tudo parece/ Que era ainda construção/ E já é ruína” (“Fora da ordem”). “A mais triste nação/ Na época mais podre/ Compõe-se de possíveis/ Grupos de linchadores” (“O cu do mundo”). Trata-se, portanto, de uma maneira muito produtiva de se olhar através da música popular criada por negros como uma forma bem-sucedida de sobrevivência, que ao mesmo tempo não deixa de expor toda violência de uma comunidade nacional abstrata cuja razão de ser é o genocídio.

Quando permanece aberta no plano do pensamento estético, tal perspectiva aposta no deslocamento contínuo das ideologias (a tal ponto que os que buscam por coerência política tendem, em algum momento, a se frustrar), mantendo sua potência crítica. Quando, por outro lado, esse olhar trata de se fixar, sobretudo no que diz respeito a visões políticas mais concretas, seus problemas aparecem com maior vigor. É o que podemos observar quando, por exemplo, Caetano essencializa a mestiçagem como o verdadeiro caminho para a emancipação nacional, ou quando reconhece no liberalismo vantagens “incontestáveis” em comparação ao aparato ideológico adotado pelos países socialistas.

Nesses casos, o olhar nômade tem que se haver com perguntas incômodas a respeito das suas formas de fixação. Por exemplo, qual seria o caminho para a constituição dessa nova civilização, “nem capitalista nem comunista”, que se apresenta como uma modernidade alternativa efetivamente justa e honesta para consigo e seu povo?  Ao sair da arte para apostar na materialidade social (justamente o oposto do movimento que levou à formação da estética tropicalista e, na sequência, da MPB), o modelo estético parece perder força à medida que perde ambivalência – o que já diz algo a respeito das dificuldades de realização da utopia-Brasil por esse caminho.

A grande movimentação que levou a chama civilizatória das áreas quentes para o frio do hemisfério norte parece estar – depois de atingir o Japão e tigres asiáticos neocapitalistas e China neocomunista – madura para fazer um desvio de rota. Ter como horizonte um mito do Brasil – gigante mestiço lusófono americano do hemisfério sul – como desempenhando um papel sutil mas crucial nessa passagem é simplesmente uma fantasia inevitável.[17]

Isso foi escrito em 1997, e o Brasil cresceu enormemente desde então. Sexta maior economia do mundo. FHC [Fernando Henrique Cardoso] e Lula. O Tropicalismo literalmente tomando o Ministério da Cultura com Gilberto Gil. Para alguns, o maior momento de realização política da história recente do país. Entretanto, bem pesadas as coisas, há de se convir que o que vimos esteve muito distante de representar uma alternativa efetivamente radical ao mesmíssimo modelo de “desenvolvimento” humano e social, inclusive com os derrotados de sempre.

Diante disso, a força do olhar de Caetano consiste em afirmar que ainda não chegamos lá. Dependente, portanto, da inscrição de um elemento profético, um não ainda que, imerso no presente, não é a plena realização de si. Essa, no entanto, é também sua maior fraqueza: uma utopia condenada a não se realizar, a não ser nos territórios de sempre, como no caso da cultura. Um imaginário que sempre será exclusivamente artístico: não é pouca coisa, mas está longe de revolucionar a modernidade ocidental, ou mesmo a condição material de existência dos mais pobres no país. Sequer é capaz de tornar o campo da música popular um espaço real de equidade democrática. De fato, pode ser uma imagem exata daquilo que sempre fomos: um país em que os negros realizam feitos dentre os mais brilhantes do Ocidente, sem que a sociedade crie modelos reais de inclusão civilizatória.

Passados mais de cinquenta anos, a utopia tropicalista, que é a da própria MPB, em grande parte se realizou: o Brasil criou um poderoso mercado de cultura de massas, talvez no mesmo nível dos EUA e certamente superior ao dos países europeus. O que não é pouca coisa. Mas esse feito surpreendente sequer chegou a arranhar a fratura social que nos constitui. Pior: em grande medida dependeu dessa fratura para se consolidar. Daí que se possa dizer que a liberdade desse olhar tenha seus próprios limites, que não estão na conta da ausência de qualidade artística, nem são derivados de posicionamentos políticos prévios – para dizer de forma direta, a obra de Caetano é muito superior à de uma infinidade de artistas de esquerda –, mas sim dos condicionamentos históricos das formas estéticas.

O que aconteceria caso Caetano Veloso reconhecesse que a base material da liberdade artística da MPB sempre foi a manutenção perversa de certos horizontes sociais incontornáveis? Abandonaria ele a utopia bossa-novista, condição de sua existência artística, bem como a dos demais artistas de sua geração, em nome da construção de outro projeto de sociedade que ele próprio reconhece ser necessário? Deixaria o conforto relativo da posição “radical” de classe média em nome de uma real e verdadeira traição de classe?[18] Essa posição, que implica algo como deixar de ser, obviamente é impossível, a não ser enquanto dissolução absoluta – o fim da MPB. Dado o histórico de nossa elite letrada, que se leva em altíssima conta, é difícil apostar nesse altruísmo suicidário em nome do bem comum. De todo modo, Caetano consegue uma vez mais propor uma obra em que as contradições do país parecem emergir das dimensões mais profundas de seu desejo, nessa que talvez seja sua principal qualidade: fazer de si mesmo alegoria.


[1] Composta pelos álbuns (2006), Zii e Zie (2009) e Abraçaço (2012).

[2] Inicialmente conhecido como MMPB – Movimento pela Música Popular Brasileira. Ver NAPOLITANO, Marcos. Seguindo a canção: engajamento político e industrial na MPB, 1959 – 1969. São Paulo, AnnaBlume/Fapesp, 2001.

[3] “O contato com os explorados, para o qual se orientavam, foram usadas em situação e para um público a que não se destinavam, mudando de sentido. De revolucionárias passaram a símbolo vendável da revolução”. SCHWARZ, Roberto. Cultura e política, 1964-69. O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 (1978), p. 63-92. SCHWARZ, 1992, p. 79.

[4] Trecho de letra do samba enredo da Estação Primeira de Mangueira de 2020, “A verdade vos fará livre”, de autoria de Luiz Carlos Máximo e Manu da Cuíca.

[5] SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz; HADDOCK-LOBO, Rafael. Arruaças: uma filosofia popular brasileira. Bazar do Tempo, 2020.

[6] ALMEIDA, Silvio. “Ódio e Nojo”. Folha de São Paulo. São Paulo, 26 de maio de 2022.

[7] AMARAL, Ana Carolina. “Se o Brasil achar solução para si, vai salvar o resto do mundo, diz Bruno Latour”. Folha de São Paulo. São Paulo, 12 de setembro de 2020.

[8] O Quilombo do Leblon foi um dos primeiros quilombos abolicionistas do Rio de Janeiro – um modelo diferente de resistência à escravidão, posto que organizados perto dos grandes centros e liderados por personalidades públicas com capital político e trânsito entre classes. A história é contada por Eduardo Silva, pesquisador da Casa de Rui Barbosa, em seu livro As Camélias do Leblon e a Abolição da Escravatura, onde também é descrito a ligação secreta da Princesa Isabel. SILVA, Eduardo. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.

[9] VILLAÇA, Túlio Ceci. Zumbi, Zabé, Johnson e Ismael. In Revista online Uma canção. Rio de Janeiro, dezembro de 2021. https://www.revistaumacancao.com/zumbi-zab%C3%A9-johnson-ismael

Último acesso: julho de 2022.

[10] QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. Constitucionalismo brasileiro e o Atlântico negro: a experiência constitucional de 1823 diante da Revolução Haitiana. São Paulo: Lumen Juris, 2017.

[11] QUEIROZ, Marcos Vinícius Lustosa. “Pobre moreno, que era grande, hoje é pequeno: Música sertaneja e o enigma racial brasileiro.” Revista Zumbido. São Paulo, Selo SESC, agosto de 2021.

[12] MARÇAL, Juçara. Sem cais. Delta Estácio Blues. QTV Label, 2021.

[13] VILLAÇA, Túlio Ceci. Zumbi, Zabé, Johnson e Ismael. In Revista online Uma canção. Rio de Janeiro, dezembro de 2021. https://www.revistaumacancao.com/zumbi-zab%C3%A9-johnson-ismael Último acesso: julho de 2022.

[14] Idem.

[15] WISNIK, Guilherme. Caetano Veloso. São Paulo, Publifolha, 2005.

[16] Gilberto Gil e Jorge Benjor, por sua vez, realizam em sua performance/corpo aquilo que os dois vetores da melhor produção da classe média branca intelectualizada conseguem colocar apenas como pergunta. Mas essa já é outra história.

[17] VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 500.

[18] CANDIDO, Antonio. Radicalismos. Vários escritos. 3ª ed., revista e ampliada. São Paulo, Duas Cidades, 1995, p. 265-266.

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