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O evangelho marginal dos Racionais MC’s

Em dois de outubro de 1992, São Paulo foi palco daquela que é até hoje considerada a mais violenta e brutal ação da história do sistema prisional brasileiro: o massacre do Carandiru, intervenção assassina da Polícia Militar do Estado de São Paulo que resultou na morte de pelo menos 111 detentos, a maioria composta por réus primários, sem qualquer chance de defesa. Extermínio, puro e simples, que até hoje não foi reconhecido pelo Estado enquanto tal – documentos oficiais tratam o episódio como “rebelião” ou “motim” do Pavilhão 9.  

Em um intervalo de poucos meses, o país seria palco de outros dois massacres que chocariam o mundo. Em 23 de julho de 1993 quatro policiais militares disparariam contra cerca de setentas crianças e adolescentes em situação de rua que dormiam nas escadarias da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, deixando oito mortos e dezenas de feridos, em um episódio que ficaria conhecido como chacina da Candelária. E apenas um mês depois, no dia 29 de agosto de 1993, trinta e seis policiais militares encapuzados e sem uniforme iriam assassinar friamente cerca de vinte e uma pessoas na chacina do Vigário Geral. Ao contrário do que afirmou a P.M., nenhum dos mortos possuía ligação comprovada com o tráfico. 

A sucessão de tragédias programadas no intervalo de menos de um ano confirmava, para quem estivesse disposto a ver, que o genocídio ocorrido no Carandiru não só não havia sido um acidente, como se tornava uma norma que estava longe de se restringir apenas às cadeias do país. Longe de se tratar de equívocos ou desvios, a série de episódios trágicos configurava-se como um verdadeiro projeto do Estado brasileiro, que à época avançava para um modelo neoliberal agressivo, baseado no gerenciamento da miséria por meio da violência. O que a periferia percebe antes de todos é que esse modelo genocida de organização social, ancorado em uma série de mecanismos herdados da escravidão e aperfeiçoados durante a ditadura, não se restringia apenas aqueles considerados “criminosos”, tendo se convertido em norma geral, com aprovação quase irrestrita da opinião pública.  

A compreensão profunda dessas tragédias não enquanto meros acidentes no glorioso percurso da civilização brasileira, mas como fundamentos mesmo de um projeto nacional, estará no centro de diversas mudanças ocorridas no campo cultural, que progressivamente tornariam possível o surgimento daquele que seria um dos mais importantes fenômenos culturais da história do país. Um disco no qual o massacre do Carandiru – ocorrido cinco anos antes – seria reconhecido como o Acontecimento decisivo da nossa época (ocupando literalmente o centro do álbum), revelador da verdade maior do Estado brasileiro, contra o qual era necessário reagir. 

O ano é 1997 e o disco é Sobrevivendo no Inferno.  

Os quatro pretos mais perigosos do Brasil 

Em 1997 os Racionais MC’s já eram considerados um dos mais importantes grupos do cenário hip hop nacional. O grupo formou-se em 1988 a partir do encontro entre Paulo Eduardo Salvador (Ice Blue) e Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown) – moradores do extremo sul de São Paulo – com Edivaldo Pereira Alves (Edi Rock) e Kleber Geraldo Lelis Simões (KL Jay) – moradores da zona Norte – por meio da atuação do produtor cultural e ativista político Milton Sales, que conhecia tanto a cena da região da São Bento, frequentada por Brown e Blue, quanto a casa noturna Clube do Rap, na Bela Vista, dominada por KL Jay e Edi Rock. Naquele mesmo ano, as composições “Pânico na Zona Sul”, de Brown, e “Tempos Difíceis”, de Edi Rock e Kl Jay, entrariam na coletânea Consciência Black (1988), e dois anos depois o grupo gravaria seu primeiro disco, Holocausto Urbano (1990), vendendo cerca de duzentas mil cópias e tornando-se conhecido em toda periferia paulistana. 

Após o EP Escolha se Caminho (1992), que contava com apenas duas composições (“Negro Limitado” e “Voz Ativa”), o grupo lança aquele que seria um dos grandes discos da história do rap, um marco para a história do movimento hip hop e para o processo de auto reconhecimento das comunidades periféricas brasileiras. Raio-X do Brasil (1993) apresentou uma série de mudanças em relação aos trabalhos anteriores, marcando uma nova postura do grupo frente a sua comunidade. Canções como “Fim de Semana no Parque” e “Homem na Estrada” fazem do álbum uma das mais importantes e radicais realizações culturais da época. Mas é com Sobrevivendo no Inferno (1997), que os Racionais MC’s alcançam projeção nacional, vendendo cerca de um milhão e quinhentas mil cópias e atingido todos os extratos sociais, de manos a playboys. O feito torna-se ainda mais impressionante se levarmos em consideração o embate direto do grupo com o mercado fonográfico brasileiro em todas as suas ramificações, negando-se a receber premiações, dar entrevistas e divulgar seu trabalho na grande mídia. Nesse trabalho, produzido pela produtora independente Cosa Nostra, pertencente ao próprio Racionais, o grupo alcança sua maturidade estética e crítica.  

Progressivamente, Sobrevivendo no Inferno foi se afirmando como uma verdadeira obra-prima da música popular brasileira, consolidando uma nova maneira de tematizar o cotidiano periférico que teria impacto em vários segmentos artísticos tais como a literatura, teatro, cinema e televisão, tornando-se uma espécie de vetor para as mais diversas estéticas da periferia. O gradual reconhecimento do impacto estético e cultural da obra levou também a um crescente interesse acadêmico que se faz multiplicar em teses, artigos e dissertações. Mais recentemente, a obra entrou na lista de leituras obrigatórias de um dos mais prestigiados vestibulares do país. O grau de consagração pública de Sobrevivendo no Inferno é tamanho que o ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, ofereceu o disco como presente ao papa Francisco em uma de suas visitas. 

Seu impacto artístico no cenário nacional pode ser comparado sem exageros ao de outras grandes obras pertencentes aos mais diversos campos culturais, tais como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Grande Sertão: veredas, Terra em Transe e Chega de Saudade. Em termos políticos, contudo, é praticamente sem paralelo. Para o ensaísta Francisco Bosco, por exemplo, o reconhecimento obtido pelo grupo após o sucesso nacional de “Diário de um Detento” foi o grande responsável por fazer com que os debates promovidos pelos movimentos identitários extrapolassem as fronteiras mais estreitas da academia e dos movimentos sociais, ganhando assim o campo mais amplo da cultura. Já para o sociólogo Tiaraju D’Andréa, mais do que simplesmente representar o cotidiano periférico em crônicas poderosas, a obra dos Racionais ajudou a fundar uma nova subjetividade, criando condições para emergência do que ele define como “sujeito periférico”: o morador da periferia que assume sua condição, tem orgulho desse lugar e age politicamente a partir dele. 

Ainda segundo Tiaraju, nesse processo de construção de um novo tipo de subjetividade, a obra dos Racionais MC’s assumiria particular importância, funcionando como uma espécie de catalizadora maior desse processo histórico no qual a periferia se apropria de seu próprio conceito, e para o qual contribuem os mais diversos coletivos culturais periféricos. A partir de então, o termo “periferia” passaria a designar não apenas “pobreza e violência” – como ocorria no discurso oficial e acadêmico até então – mas também “cultura e potência”, confrontando a lógica genocida do Estado a partir da elaboração coletiva de outros modos de dizer. Note-se que a atuação do grupo foi decisiva para fazer do rap muito mais do que uma simples representação da periferia. Sua radicalidade e senso de “missão” (afinal, “rap é compromisso”) ajudou a desenvolver um espaço discursivo onde os cidadãos periféricos puderam se apropriar de sua própria imagem, construindo para si uma voz que, no limite, mudaria a própria forma de se enxergar e vivenciar a pobreza no Brasil.  

MPB – Música Preta Brasileira 

Diversos artistas, rappers e intelectuais são unânimes em concordar que o impacto da produção dos Racionais MC’s consiste, sobretudo, em sua extraordinária capacidade de formalização dessa voz coletiva de tipo novo que emergia na cultura brasileira. Uma fala da periferia para a periferia, que alteraria o conjunto de condições de enunciação até então hegemônicas. Note-se que a novidade não consiste, exatamente, na incorporação das vozes dos marginalizados ao campo da música popular, uma vez que uma das marcas mais poderosas da canção brasileira, e que a distingue radicalmente de outras artes como a literatura e o cinema, é justamente o protagonismo popular. Mas, diferentemente de outros gêneros como o samba, por exemplo, o sujeito que fala no rap não pode ser incorporado enquanto símbolo de uma coletividade nacional. Como afirma a psicanalista Maria Rita Kehl, os Racionais falam de igual com os seus manos, mas contra os playboys e o Estado. Seu foco está na construção de uma fraternidade de iguais no interior de uma comunidade periférica que se afirma contra um projeto de nação que a deseja exterminar. 

Por conta mesmo dessa distância com um projeto de integração nacional, o rap brasileiro se desvincula de certa linha de desenvolvimento da canção no país, filiando-se mais organicamente à tradição do rap norte-americano, tal como ela se constitui no final dos anos 1960, no bairro do Bronx em Nova York. Nesse sentido, ele pode ser considerado como uma das grandes manifestações culturais com forte impacto sobre todo campo da música popular brasileira e que não é um desdobramento da chamada “linha evolutiva” da MPB (tal como formulada por Caetano Veloso), formada pela tríade samba\bossa nova\MPB, frequentemente interpretada como sendo a mais genuína representante da tradição musical brasileira e pautada pelos princípios do encontro e das mediações culturais.  

A aposta dos Racionais, ao contrário, está na construção de uma identidade formada a partir da ruptura com essa tradição conciliatória, por meio da afirmação de uma comunidade negra que se desvincula do projeto de nação mestiça tal como concebida até então. Desde o princípio o rap nacional irá se reconhecer enquanto um gênero cantado por negros que reivindicam uma tradição cultural negra por meio de um discurso de demarcação de fronteiras étnicas e de classe que denuncia o aspecto de violência e dominação contido no modelo cordial de valorização da mestiçagem: “eu sou irmão dos meus truta de batalha \ eu era a carne, agora sou a própria navalha” (Negro Drama). 

Nesse sentido, podemos dizer que o rap desloca a canção brasileira de um dos seus principais pilares de organização de sentido até então: a identidade nacional pensada em termos de conciliação racial, via mestiçagem, e de classe, via nacional desenvolvimentismo. É como se o gênero tomasse forma a partir dos destroços desse projeto de formação do país, comprometendo-se radicalmente com aqueles que ficaram socialmente relegados às margens de um projeto de integração que nunca chegou a se completar. De fato, a complexidade desse ponto de vista obriga ao ouvinte mais atento a recompor toda a história cultural brasileira a partir de outra perspectiva, desconstruindo suas principais linhas de organização de sentido até ali e abrindo-se para uma forma de dizer de tipo novo.  

Obviamente que tal conjunto de mudanças encontrou muita resistência por parte da crítica especializada e defensores da tradição em geral, sobretudo por ter vindo de onde veio: do lado de cá da ponte. Dentre as críticas mais comuns estão as que sustentam que ao alterar os códigos de identificação daquilo que se considerava até então como sendo a verdadeira cultura brasileira (e mesmo de certa tradição afro-brasileira, uma vez que em Sobrevivendo no Inferno o negro é associado mais ao cristianismo do que às religiões de matriz africana, como é recorrente no samba e na MPB) o grupo estaria importando um conjunto de valores e ideias que não seriam capazes de captar aspectos essenciais da realidade local. Ou seja, tratava-se de um pensamento colonizado, espécie de paródia involuntária do rap americano que seria, quando muito, um modismo passageiro. 

O impacto e a potência de Sobrevivendo no Inferno, contudo, logo deixariam evidente que eram antes os termos do problema que apareciam invertidos nesse tipo de abordagem crítica. De fato, a excelência estética do álbum tornava visível que o “problema” estava muito mais no conjunto de valores definidos enquanto “nacionais”, organizados a partir da exclusão de uma série de elementos fundamentais aos quais o rap vinha dar sentido e visibilidade, a começar pelo corpo negro do jovem periférico.  

Ao romper com as bases de representação do imaginário nacional que conferia sentido simbólico e ideológico à MPB, os Racionais fizeram da dissolução dessa imagem que orientava parte da sociedade brasileira seu ponto de partida. Aquilo que para MPB representou uma crise profunda – a ponto do próprio Chico Buarque afirmar que o modelo de canção que sua geração havia consolidado provavelmente teria chegado ao fim – serviu de ponto de partida para os quatro jovens periféricos. Dessa maneira, o grupo conseguiu transfigurar em matéria formal aquilo que o Brasil havia efetivamente assumido enquanto projeto político: um verdadeiro campo de extermínio a céu aberto, que tem como aspecto decisivo a produção e a gestão da violência contra os mais pobres. 

A construção do ponto de vista periférico  

Ao se tratar das qualidades de Sobrevivendo no Inferno, frequentemente se insiste na novidade do ponto de vista periférico, na agressividade da postura presente nas letras e arranjos, bem como no elevado grau de contundência das narrativas, carregadas com o senso de urgência daqueles que estão, literalmente, em meio a uma guerra. Contudo, outro aspecto fundamental do disco que por vezes não recebe o mesmo nível de atenção, é o elevado teor de complexidade estética dessa perspectiva. Sem exageros, podemos dizer que poucas vezes a realidade nacional foi analisada e representada com um olhar tão complexo, considerando-se inclusive as instâncias discursivas mais consagradas, como a academia e a literatura. Como afirma Walter Garcia, um dos primeiros críticos acadêmicos a explicitar rigorosamente aquilo que há muito já se sabia na quebrada, na obra dos Racionais ocorre uma plena adequação entre linguagem formal e conteúdo da experiência, adequação essa que é resultado de um trabalho estético rigoroso. Ou seja, a condição de “voz privilegiada da periferia” é resultado formal, e não ponto de partida da obra, e ainda que esse resultado só possa ser obtido a partir da realidade periférica, a relação entre lugar de fala e estrutura narrativa não se dá de forma automática.  

Podemos afirmar que em seus trabalhos iniciais – Holocausto Urbano (1990) e Escolha seu Caminho (1992) – os Racionais ainda não haviam encontrado a linguagem mais adequada a sua proposta. Apesar de diversos elementos do rap já estarem presentes, como a denúncia e a crítica social, ainda não é possível dizer que existe ali uma linguagem em que a comunidade periférica encontra-se efetivamente representada. Isso porque em diversas dessas canções iniciais o rapper assume uma postura autoritária que apresenta pelo menos dois elementos principais. Por um lado, ele se apresenta como superior em relação a quem está do lado de fora da comunidade, por ser alguém que vive a realidade periférica e que por isso pode falar com mais propriedade sobre o que se passa por ali: “Então quando o dia escurece\ só quem é de lá sabe o que acontece\ ao que me parece prevalece a ignorância\ e nós estamos sós\ ninguém que ouvir a nossa voz” (“Pânico na zona sul”). Por outro lado, ele também assume um tom de autoridade em relação a própria periferia, acusando os moradores de serem alienados, limitados, etc., como nesses versos de “Beco sem saída”: “Ficam inertes, não se movem, não se mexem \ Sabe por que se sujeitaram a essa situação? \ não pergunte pra mim, tire você a conclusão”. Ou ainda, em “Negro limitado”: “Não sabe o que dizer \ Veja só você, o número de cor do seu próprio RG\ Então, príncipe dos burros, limitado\ Nesse exato momento foi coroado.” 

Esse tom de superioridade de quem busca se legitimar a partir de certo distanciamento tanto daqueles que estão de fora quanto dos que estão dentro da comunidade foi definido pelo pesquisador Ton Lopes como “tom professoral”, um discurso catedrático cujo objetivo é assumir uma posição de superioridade em relação ao restante da comunidade. Como resultado, tais discos assumem muitas vezes uma postura conservadora e autoritária que, ao silenciar as demais vozes periféricas, acaba por reproduzir a mesma violência a que se pretendia denunciar. O próprio Brown anos mais tarde irá afirmar que não canta mais essas canções nos shows por conta dessa atitude arrogante e distanciada.  

Entretanto, já a partir do Raio-X do Brasil o grupo irá apresentar uma mudança de postura radical. O ponto de vista particular dos rappers deixa de ser o elemento principal em canções como “Pânico na zona sul” e “Mano na porta do bar” para se tornar apenas uma das muitas perspectivas possíveis, criando um mosaico de vozes e olhares absolutamente contraditórios entre si. A obra se torna essencialmente aberta, apresentando perspectivas que são confrontadas da forma mais complexa possível. Longe de tornar o conjunto incoerente, a multiplicidade de vozes e olhares oferecem uma percepção mais densa da realidade periférica ao serem estruturalmente organizadas a partir daquilo que Walter Garcia definiu como um “ponto de vista épico”.  

A partir de Sobrevivendo no Inferno os Racionais irão adotar definitivamente esse modelo em todas as composições. “Diário de um detento”, por exemplo, é literalmente resultado de um processo coletivo de construção, uma parceria entre Jocenir, um dos sobreviventes do massacre, e mano Brown. Além disso, os cadernos de Jocenir circularam pelo presidio para serem aprovados pelo coletivo carcerário antes de sua versão final. Nesse sentido, trata-se de uma canção que foi efetivamente composta por toda comunidade carcerária, cujo sistema de valores é definido coletivamente a partir de múltiplos olhares que se sobrepõem na canção.  

Da mesma forma, em “Capítulo IV, versículo III” é possível observar com clareza essa mudança de perspectiva, a um só tempo ética e formal. Em determinado momento da canção surge uma personagem viciada em crack que é profundamente recriminada por Ice Blue. Contudo, toda vez que Blue adota alguma postura de exclusão desse sujeito, imediatamente surge a voz de Brown relativizando a oposição (que nos primeiros discos seria absoluta): “Ei Brown, sai fora, nem vai, nem cola \ Não vale a pena dar ideia nesse tipo aí […] Veja bem, ninguém é mais que ninguém \ Veja bem, veja bem, e eles são nossos irmãos também \ Mas de cocaína e crack, uísque e conhaque \ Os mano morre rapidinho sem lugar de destaque \ Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma? \ Nem dá… nunca te dei porra nenhuma”. 

A postura adotada nesses casos é muito mais cuidadosa e humilde do que a anterior, e retira o ponto de vista do rapper da condição de verdade última inquestionável. Não existe mais uma única perspectiva imposta como a mais correta: em primeiro lugar porque cada uma dela carrega seu próprio conjunto de contradições e incertezas: “Eu já não sei distinguir quem tá errado, sei lá \ minha ideologia enfraqueceu \ preto, branco, polícia, ladrão ou eu \ quem é mais filha da puta, eu não sei! aí fudeu” (Fórmula mágica da paz); segundo porque mesmo diante de perspectivas que são irreconciliáveis (como a do trabalhador que é morto pelo bandido), existe todo um cuidado de compreensão e acolhimento do Outro que pertence a mesma comunidade em nome de um bem comum: a interrupção do ciclo perpétuo de mortes. “A gente vive se matando irmão, por quê? \ não me olhe assim, eu sou igual a você \ descanse o seu gatilho, descanse o seu gatilho \ que no trem da malandragem, o meu rap é o trilho” (Fórmula mágica da paz).  

Em Sobrevivendo no Inferno, a figura do professor autoritário dos primeiros discos cede lugar a postura do pastor-marginal, aquele que almeja “conseguir a paz de forma violenta” portando uma “bíblia velha, uma pistola automática e um sentimento de revolta”. Ao contrário do professor, de olhar distanciado e senhor da verdade, o pastor-marginal acolhe e guia seus irmãos pelo vale das sombras a partir da palavra divina, construída coletivamente por toda comunidade de irmãos. Enquanto o objetivo do professor é transmitir a sua verdade, o pastor deseja salvar a alma dos irmãos desgarrados, livrando-os das mãos do demônio, mais próximo e mais destrutivo do que se imagina: “Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor! \ Pelo rádio, jornal, revista e outdoor \ Te oferece dinheiro, conversa com calma \ Contamina seu caráter, rouba sua alma \ Depois te joga na merda sozinho! \ É, transforma um preto tipo A num neguinho”. O discurso é de aceitação e acolhimento, mas também de rigor, pois a salvação da alma depende de que o sujeito se comprometa a andar pelo certo. 

A mudança de linguagem do “professor autoritário” para a do “pastor-marginal” transforma também a função dessa palavra, portadora de uma verdadeira teologia da sobrevivência. Uma palavra de salvação que não mais se dirige ao Estado ou a qualquer outra instância externa à própria comunidade. Ela é caminho de salvação, desde que aquele que a escute compreenda e aceite os caminhos do proceder periférico. Seu objetivo maior é formar os sujeitos para construção de uma ética comunitária que os permita viver a vida loka sem desandar, permanecendo vivos. Em termos gerais, isso significa que as canções de Sobrevivendo no Inferno não pretendem ser interpretadas como mera narrativa (mais ou menos como não faz sentido ler um manual de guerrilha como mero entretenimento durante uma guerra, ou imaginar um evangélico fazendo uma leitura puramente ficcional da bíblia). O texto almeja partilhar uma sabedoria construída coletivamente pela periferia, integrando-a à vivência dos sujeitos.  

Os Racionais MC’s produziram a mais radicalmente engajada obra da história da música popular – incluindo aqui a MPB dos anos 1960 – o que, no limite, altera o próprio significado do termo “representação” artística. Como afirma mano Brown: “Não sou artista. Artista faz arte, eu faço arma. Sou terrorista”. Em Sobrevivendo no Inferno, a ética atravessa a dimensão estética de tal maneira que, em seus momentos de maior radicalidade, o valor da obra deve ser calculado por sua capacidade de, literalmente, salvar vidas. Esse é o grau de radicalidade dessa produção. 

Sendo conduzido por um pastor-marginal, não é de se espantar que o disco assuma a forma de um culto evangélico (cabe aqui lembrar que as igrejas neopentecostais começavam a assumir certa centralidade nos processos de socialização das comunidades periféricas, e o rap disputava o mesmo rebanho). De forma bastante livre, e aproveitando-se das sugestões teológicas do disco, podemos esquematizar as várias partes desse “culto” onde se exploram as diversas contradições entre os modelos éticos (crime, neopentecostal e rap) presentes na periferia. Teríamos assim a seguinte divisão: cântico de louvor e proteção (“Jorge da Capadócia”); leitura do evangelho marginal (“Gênesis”); entrada em cena do pregador do proceder, explicando (ou confundindo, a depender da necessidade) os sentidos da palavra Divina (“Capítulo IV, versículo III”); o momento dos testemunhos das almas que se perderam para o diabo, com resultados trágicos (“Tô ouvindo alguém me chamar” e “Rapaz Comum”); intermezzo musical para velar aquelas mortes, interrompido por tiros que fazem recomeçar o ciclo; a pregação\mensagem central (massacre do Carandiru) que liga o destino daqueles sujeitos ao de toda a comunidade (“Diário de um detento”), chave de compreensão do destino de todos e descrição do próprio Inferno; exemplos do modo de atuação do diabo no interior da comunidade (“Periferia é periferia”); exemplos do modo de atuação do diabo fora da comunidade (“Em qual mentira vou acreditar”). Ao final, um momento de autorreflexão sobre os limites da própria palavra enunciada (“Mundo mágico de Oz” e “Fórmula mágica da paz”). Por fim, os agradecimentos finais a todos os presentes, verdadeiros portadores da centelha divina (“Salve”).  

Diga-se de passagem, esse modelo de organização rigoroso é responsável por alguns resultados estéticos notáveis. Poucos discos nacionais tem o mesmo senso de organicidade, com início meio e fim construindo juntos os sentidos da obra. A introdução, que se estende desde a faixa de abertura até a fala inicial de Primo Preto, é talvez um dos melhores começos de álbum da história da música popular brasileira. A riqueza do conjunto e o senso de organicidade podem tranquilamente ser comparados ao de obras-primas como Dark Side of the Moon, do Pink Floyd, ou Sargent Peppers, dos Beatles. 

“Descanse seu gatilho \ meu rap é o trilho”

Em Sobrevivendo no Inferno – que se tornou um paradigma para boa parte do rap nacional ao longo dos anos 1990 e 2000 – o modelo ético periférico é construído de forma mais radical, em primeiro lugar, na vida do crime. Os presos não apenas têm direito a voz, ou “lugar de fala”: seus ensinamentos precisam ser incorporados como condição de sobrevivência. Isso significa que a obra dos Racionais faz apologia a criminalidade? Muito pelo contrário: basta acompanhar as letras de todas as canções e tentar encontrar algum caso de um criminoso que não tenha final trágico. “A vida bandida é sem futuro” talvez seja a principal lição do disco. Acontece que o ponto de vista das canções a respeito da criminalidade e da violência é muito mais complexo do que o olhar do “cidadão de bem conservador” (para quem bandido bom é bandido morto), e do “defensor dos direitos humanos” (para quem o bandido é mera vítima da sociedade, por ser pobre). Afinal, é a sobrevivência da comunidade que está em jogo. 

Ao longo dos anos 90 até boa parte dos anos 2000, tanto os Racionais MC’s quanto o rap brasileiro em geral irão reconhecer no destino do bandido e do marginal – naquilo que ele representa do grande Outro não integrável à ordem nacional – o segredo para a emancipação da periferia como um todo, uma vez que a produção do bandido preto pobre como “inumano” é condição de manutenção da normalidade social. A radicalidade do rap consiste também em reivindicar a inclusão desse sujeito cuja exclusão é a própria condição de existência do sistema, reconhecendo no dilema do detento e do marginal o destino de toda periferia enquanto avesso da civilização brasileira. Como afirma Gabriel Feltran, o crime nessas narrativas não é o oposto da lei e da ordem, mas o esteio normativo possível para a consolidação de uma comunidade mais justa. 

A tarefa fundamental do rapper passa a ser, portanto, a de propor novas formas de sobrevivência aos sujeitos periféricos, posicionando-se ao lado do bandido (sem se confundir com ele) ao mesmo tempo em que se define enquanto marginal, ou seja, um sujeito destinado a morrer pelas mãos do Estado. Trata-se de, em conjunto com a comunidade periférica, construir um caminho de sobrevivência para todos os irmãos, bandidos inclusos, por meio da palavra tornada arma. Mais do que isso, o rap reconhece que apenas assumindo todas as complexas implicações desse lugar de marginalidade será possível para periferia construir espaços emancipatórios. Uma vez que o fundamento do Estado brasileiro é a transformação da violência em verdade por meio da atuação genocida da polícia, pode-se dizer que o projeto ético\estético do grupo consiste em negar um dos principais pilares que tornam possível a formação do país. Daí o elevado grau de periculosidade do grupo. Trata-se, enfim, de reconhecer no massacre do Carandiru a verdade maior do Estado brasileiro (assim como os filósofos frankfurtianos reconheciam em Auschwitz um laboratório para todo o projeto de civilização do Ocidente), e criar os meios necessários para evitar sua repetição. Sobrevivendo no Inferno é a imagem mais bem-acabada de uma sociedade genocida que se tornou humanamente inviável, e uma tentativa radical, esteticamente brilhante, de sobreviver a ela. 

Referências: 

BOSCO, Francisco. A vítima tem sempre razão? São Paulo, Editora Todavia SA, 2017. 

D’ANDREA, Tiaraju Pablo. A Formação dos Sujeitos Periféricos: Cultura e Política na Periferia de São Paulo. Universidade de São Paulo, 2013. Tese apresentada ao departamento de Sociologia. 

FELTRAN, Gabriel de Santis. Sobre anjos e irmãos: cinquenta anos de expressão política do “crime” numa tradição musical das periferias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n. 56, p. 43-72, 2013. 

GARCIA, Walter. Diário de um detento: uma interpretação. In: NESTROVSKI, A. (org.) Lendo Música. São Paulo, Publifolha, 2007.  

_______________. Elementos para a crítica da estética do Racionais MC’s (1990-2006). Ideias – Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, v. 1, p. 81-110, 2013. 

KEHL, Maria Rita. Radicais, raciais, racionais: a grande fratria do rap na periferia de São Paulo. São Paulo em perspectiva, v. 13, n. 3, p. 95-106, 1999. 

LOPES, Charleston Ricardo Simões. Racionais MC’s: do denuncismo à virada crítica. Universidade de São Paulo, 2015. Dissertação de mestrado. 

OLIVEIRA, Acauam. O fim da canção? Racionais MC’s como efeito colateral do sistema cancional brasileiro. Universidade de São Paulo, 2014. Tese de doutorado. 

SCHWARZ, Roberto. Nacional por subtração. In: Que Horas São? São Paulo, Companhia das Letras, 1987.  

TEPERMAN, Ricardo. Se liga no som: as transformações do rap no Brasil. Editora Companhia das Letras, 2015.   

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