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Elza Soares – No tempo da intolerância

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DOSSIÊ ESPECIAL: 2023 POR SEUS DISCOS

“Sei lá bicho, parece que na música popular brasileira hoje a gente está vivendo um período de transição”. Palavras de meu mano Breno Longhi, radialista, pesquisador e camarada de longa data. Quem tem ouvido, que ouça, sobretudo quando o sujeito em questão sabe o que diz.

Mas que indefinição seria essa? Olhando para a política, a coisa toda salta aos olhos, e a sensação é a de que estamos atolados até o pescoço naquela tirinha premonitória da Turma da Mônica: “o que está acontecendo?!?”. No campo econômico o desconcerto não é menor: o capitalismo avança, certamente, mas nem os seus maiores entusiastas parecem saber para onde: afinal, o projeto dos grandes milionários consiste em correr pra lua, ou pra marte, quando não para o fundo do mar.

Desde 2013, vivemos no Brasil um período marcado por um radicalismo intenso que fraturou o tecido social e transformou o jogo político em uma arena predominantemente fundamentalista. Paradigmas outrora consolidados, supostamente democráticos, foram dissolvidos com velocidade e eficácia impressionantes. Consensos aparentemente sólidos, óbvios até, do tipo “a terra é redonda”, parecem não valer nada quando enunciados pela facção rival. Como argumentam Felipe Nunes e Thomas Traumann no livro “Biografia do Abismo”, nossa época não é mais marcada pela disputa entre diferentes projetos políticos dentro de um mesmo sistema (presidencialismo de coalizão), mas sim entre diferentes perspectivas existenciais, na qual o ponto de vista do outro, tornado meu inimigo, precisa ser literalmente eliminado. A lógica é fundamentalista e genocida: somos todos pastores a desejar o extermínio das religiões de matriz africana como forma de combate ao demônio. Tal lógica atinge também o campo democrático: afinal, não existe argumento razoável contra o fascista que tem por objetivo a eliminação da alteridade. Sobretudo se a alteridade, no caso, for você.

Um disco chave para entender esse período é o Mulher do Fim do Mundo, de Elza Soares, lançado em 2015. Talvez o grande álbum da década, MFM foi capaz de capturar com precisão o horizonte de fratura e esgotamento do tecido social brasileiro e latino-americano, tanto por sua urgência temática quanto pelos diversos mecanismos de tensionamento inscritos em sua sonoridade. Enunciando-se desde o fim do mundo, categoria a uma só tempo geográfica e histórica, Elza oferecia uma resposta estética e política à altura dos desafios de seu tempo. Aos 84 anos de idade, a cantora do milênio se convertia no grande símbolo de sua época: a voz de todos aqueles que resistem sem se deixar apreender sob nenhum rótulo, incluindo aquele que aparece como sendo o mais radicalmente abrangente, mas do qual Elza, mulher negra, nunca foi capaz de usufruir plenamente: MPB.

O trabalho mais autoral de Elza, que marca sua transição de cantora extraordinária para a condição de mito, só poderia emergir dos escombros do cânone da MPB. Quando o significante nacional se torna um substrato vazio, música sem nação brasileira, esse corpo\voz emerge enquanto fantasmagoria, síntese de múltiplos processos de exclusão encarnados no grão da voz que resiste e canta até o fim. Voz em negativo, o mundo desde o fim como condição necessária ao porvir. Voz daquelas que sempre foram o fundamento negativo da nação, tendo em vista ser o racismo seu principal mecanismo de estruturação. A sonoridade ousada, criativa e assertiva de Mulher do Fim do Mundo, retirava a figura da Elza da dimensão monumental esterilizante para situá-la de modo radicalmente ativo no presente.

Todos esses fatores fizeram com que Mulher do Fim do Mundo não só fosse capaz de captar com maestria o espírito de dissolução do seu próprio tempo, como apontasse também para o futuro de maior radicalização, muito antes da eleição de Bolsonaro deixar evidente para todos onde é que o embate político real se daria a partir de então. Não mais no campo institucional representativo – no mais, uma falácia – mas na esfera mais orgânica e instituinte dos regimes de ser. Afinal, quando o capitalismo não está mais pra brincadeira, o patrão entra babando na disputa pelo sacrossanto direito de pagar seus funcionários com cachos de banana.

(Para alguns, o problema está na perigosíssima “febre identitária”, elemento de segregação e particularização que, no limite, ocasiona o completo esfacelamento do tecido social. Tolos! Não percebem que a segregação se tornou a condição mesma de possibilidade de articulação de todo e qualquer discurso sob a égide neoliberal – com as bênçãos esquerdistas, diga-se de passagem. Em suma, o identitarismo é o modo de ser de TODOS os grupos dentro do capitalismo de desastre. Sobretudo o de antigos universalismos que se veem completamente desarmados para lidar com o atual estágio de dissolução global. Isso ocasiona fenômenos curiosos, como o brasileiríssimo “identitarismo mestiço” (alô Risério!), cuja grande sacada é interditar as possibilidades de nomeação de diferenças raciais efetivamente atuantes no presente ao definir sua própria miopia de classe como uma suposta “essência nacional”).

Eai, já ouviram a palavra de Douglas Rodrigues Barros hoje?

Seguindo nessa linha, podemos interpretar o álbum póstumo de Elza Soares, “No tempo da intolerância”, como uma espécie de SINTOMA de que essa aposta estética talvez não seja mais capaz de capturar a Verdade dos novos tempos de radicalização do fascismo. Pois tudo o que soava como força artística e liberdade radical em 2015 aparece domesticado de forma perversa em uma sucessão de clichês, oito anos depois.

O álbum de 2015 promoveu a transmutação definitiva da artista, que saía da condição de “cantora do milênio” para assumir a forma da Entidade “Mulher do Fim do Mundo”. Em “No tempo da intolerância”, contudo, a força dessa Entidade é reduzida a um punhado de jargões progressistas envoltos em arranjos bastante convencionais e óbvios, quando não conservadores. Tudo aquilo que era potência disruptiva se perverte em “lacração”, ou seja, palavras de ordem militante sem densidade formal, verdadeira matriz da força artística dos trabalhos anteriores.

Não que não haja uma verdade própria a esse desvirtuamento: todo processo parece acompanhar os diversos mecanismos de neutralização do potencial subversivo de categorias como “empoderamento”, “encruzilhada”, “ancestralidade”, dentre outros, convertidos em sintagmas vazios que pouco parecem expressar para além das simpatias políticas de quem os mobiliza. Digamos que o disco seja o equivalente musical da subida das minorias na rampa do planalto, de braços dados com Lula em sua posse, seguido da demissão de diversas mulheres de postos de poder, para alegria do Centrão, além da indicação de Flávio Dino no lugar de uma indicação negra para o STF. Ou seja, No tempo da intolerância incorpora em suas fragilidades os impasses do progressismo latino americano, em que Lula, The Third aparece como um frágil interregno antes do retorno da extrema direita, com carga total e sangue nos olhos (e nas mãos). 

Não que “No tempo da intolerância” seja um disco péssimo: longe disso. É perfeitamente possível se divertir, dançar e se emocionar ao escutá-lo. Mas a sucessão de clichês que o envolve está longe de fazer jus a grandiosidade da memória de Elza Soares. De todo modo, é bom deixar avisado, já que a coisa anda tão feia que mesmo uma discordância puramente estética pode ser tomada como uma declaração de guerra, ou um ato de racismo.

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