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Seria o pagode um samba rebaixado?

Ontem li em um texto de um crítico musical que “o pagode é o equivalente ao chafé no samba, diluição do gênero”. Fazia tempo que não lia nada nesse sentido, mas decerto que não se trata de nenhuma novidade. Ao contrário, trata-se de um tópico de grande sucesso no senso comum crítico mais afeito a polarizações rasteiras do que ao pensamento propriamente dito.

Diga-se de passagem, o samba é acusado de ser diluído desde a gravação de Pelo Telefone em 1916. Ou seja, literalmente desde que o primeiro samba foi gravado, os sambistas são acusados de “se vender”.

“O pagode é um samba rebaixado”. Rigorosamente, uma frase como essa não diz nada. Sua função não é dizer. Ela articula palavras em um eixo sintagmático, decerto, mas seu conteúdo é puramente ideológico. Ela nada nos diz da diferença entre Fundo de Quintal e Revelação, ou entre este e Raça Negra, ou mesmo sobre as diferentes faces da carreira de um mesmo grupo. Seu ponto de partida dá por encerrado o assunto antes de apresentar qualquer argumento, como em outros significantes esvaziados de sentido, menos argumento que blindagem: “imperialismo norte americano”, “indústria cultural”, “música comercial”.

O verdadeiro conteúdo da frase não é o que ela supostamente expressa em termos de significado, mas as paixões que mobiliza: quem curte um pagodinho ficará indignado, quem não curte vai aproveitar para gozar junto. Nada é dito à consciência, pois o que se pretende é atingir diretamente as paixões. A norma das redes sociais, mas que funciona na crítica há séculos.

Sem ingenuidades, contudo: o sucesso ou fracasso de um crítico (ou de um artista) depende também de saber mobilizar a torcida a seu favor. Por isso não me oponho de forma alguma ao uso de artifícios retóricos desse tipo, muito pelo contrário. É claro que, dado as especificidades de meus parâmetros éticos e estéticos, jamais utilizaria essa frase em particular. Mas talvez em algum momento eu pudesse dizer algo do tipo “o samba é um pagode rebaixado”. O que rigorosamente também não quer dizer nada, mas que me parece mais elegante estilisticamente devido a seu caráter contraintuitivo – além de ser bem menos conservadora em termos de provocação.

(Este, aliás, é outro elemento importante desse tipo de frase de efeito – como o que se busca é o apoio da torcida, frequentemente seu teor de provocação se volta contra alvos fáceis, de baixo risco. Os alvos visados são os mais genéricos possíveis: “manipulação das massas”, “alienação do povo”, “perda de autenticidade”, cujo efeito principal é a despolitização apaixonada. Algo similar ao que se viu nos protestos contra a “corrupção” no período de ascensão do bolsonarismo – o teor genérico da pauta destitui  de saída seu caráter político. Em suma, trata-se de um artifício conservador utilizado em larga escala por progressistas).

O problema não é se utilizar desse artifício retórico, mas tomá-lo por aquilo que ele não é. No caso, passar por explicação algo que é de outra ordem. “Eu não gosto de pagode porque ele é um rebaixamento do samba”. O que isso quer dizer, objetivamente? Nada. A frase gira sob si mesma, redundante. “Eu não gosto de pagode porque eu não gosto de pagode”. O momento em que o gosto estritamente pessoal pretende afirmar-se como A Verdade.

Não é verdade que o crítico não gosta de pagode porque ele rebaixa o samba. E não é verdade porque o argumento é falso. Não aguenta 10 minutos de discussão séria. Essa é somente uma maneira de colocar o próprio gosto em um patamar de superioridade não rebaixada , de onde se enxerga, altivo, a vulgaridade da plebe.

Como andei dizendo por aqui, o gosto é um horizonte incontornável de toda crítica. Mas existem formas bem menos danosas de lidar com ele, sobretudo em olhos menos apaixonados por sua própria imagem. Afinal, dizer que o pagode rebaixa o samba é algo tão vazio quanto dizer que “a crítica é o rebaixamento da música”. Com a diferença de que, nesse caso, por vezes de fato é.

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