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Xande canta Caetano

A pergunta mais analiticamente adequada: como e por que tão belo?

É outro, contudo, meu assombro: como é possível o escoar tão imediato do alumbramento por entre a multidão?

Na contramão da sacralidade das Artes Maiúsculas, o mistério oculto e óbvio da música popular. O sublime que se oferta junto com a chave para sua imediata compreensão.

É bonita, é bonita e é bonita.

Muitos relatos emocionados, inclusive do próprio Caetano. Ouvidos desconfiados, aos poucos, se abrindo. Uma amiga, nem um pouco fã do artista: “Até que enfim enfiaram um pouco de serotonina nesse homem”. Ironia das mais precisas.

“Sei lá bicho, parece que o Xande teve o dom de colocar o Caetano no lugar certo”.

Comentário crítico bastante aguçado – colocar Caetano no lugar. De fato, algo da sua genialidade, desde o tropicalismo, consiste em nunca estar inteiramente sob a máscara com a qual se apresenta. Suas canções ganham vida a medida em que se distanciam de si ao comentar-se. De certo modo, elas nunca são “integralmente”, e esse caráter inacabado e incompleto é o vão por onde se movimenta uma consciência crítica que as irá dotar de consistência. Canções que pensam ser canções a medida em que se pensam enquanto canções. Auto-antropofagia.

E dessa obra que se desloca de si para ganhar sentido na distância entre voz e linguagem (olhar que olha para si a olhar para o mundo), Xande erige sua morada. Dona Fia, dona Fia, um pagodeiro faz pagode. Ou seja, lamento negro.

(Ah, mas o disco tem muito mais do que só samba ou pagode… Claro, meu bom. O pagode é sempre, por definição, o para além de si. Ouça Art Popular).

Xande canta Caetano abre com uma versão arrebatadora e límpida de Muito Romântico. Originalmente, uma canção que Caetano compôs para Roberto Carlos. Ele usa a canção para fazer um comentário sobre a música (e a voz) de Roberto, a medida em que responde tanto ao racionalismo frágil e elitizado de certa interpretação da MPB, que associa romantismo (popular) a mal gosto (brega), quanto ao conjunto de forças políticas ditatoriais que “querem fazer calar”. Caetano comenta Roberto comentando a MPB e, de quebra, a ditadura.

Jogo de espelhamentos, de onde emerge o senso crítico e o distanciamento que se observa também no arranjo original da versão de Caetano, com um coral ostensivo que parece querer tomar o lugar da canção, quase que competindo com ela. Uma estranha solenidade melancólica, tensa, que Roberto Carlos faz questão de retirar de sua versão que se encaminha em sentido quase oposto. Solar, assertiva, pop black. Ou seja, conforme o esperado, Roberto exalta a si, enquanto Caetano toma distância para exaltar a força estranha inscrita nas canções e na própria voz do rei, a despeito (ou não) de si.

E a versão de Xande? Bom, a versão de Xande exala Verdade.

Xande coloca a música de Caetano em seu lugar. O lugar que a ele, Xande, pertence. Caminho de Ogum e Iansã. Com samba até de manhã. E uma ginga em cada andar.

Arlindo. Péricles. Belo. Leandro. Jorge Aragão. O muito romântico pagode.

Palmas e mais palmas para Pretinho da Serrinha: algumas das músicas (Trilhos Urbanos, Gente, Lua de São Jorge), nasceram para existir na versão que toma forma nesse trabalho, sob o império da voz de Xande, mas sob os cuidados musicais meticulosos e brilhantes de Pretinho.

Um disco sobre Caetano (e também sobre Gal e Bethânia) que dispensa a sacralidade enrijecedora da MPB para fazer o bonde da história avançar. Um trabalho lindo, pagode de primeira, como os álbuns clássicos do Revelação na virada do século.

Ouvir soar o Coração Vagabundo de Caetano no Coração Radiante de Xande é outra alegria. Do samba que se revela, ao vivo, no Olimpo, para alegria de deuses ateus.

Outra amiga, professora pagodeira, direto ao ponto: “Definitivamente a música popular não é a produção das classes dominantes ou camadas médias intelectualizadas comprometidas com a formação nacional. Porque essa melancolia não é culpa da desgraça das Palmeiras, né, mas dos barcos que atracavam naquelas praias. Achei o disco de chorar. Mas não chorei.”

O samba é feito de chorar. Mas não chora. Quer prosseguir, quer durar, quer crescer, quer luzir.

Do que não mais parecia possível enquanto sempre esteve ali. Nada mais Caetano, como as ondas são do mar.

Enquanto isso, Xande de Pilares segue fazendo o que faz de melhor: maltratar meu pobre coração desde a década de 1990. Obrigado por isso, negão. De novo.

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