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“O funk na Batida” vê as tensões entre a música e a Justiça no país

Livro de Danilo Cymrot mostra que a violência contra negros persiste ainda que Anitta tenha exportado o gênero.

No mesmo ano (2019) em que Anitta atingia o topo mundial do Spotify e o canal KondZilla se tornava o quinto maior do Youtube, dez envolvidos no Baile da Gaiola, no Rio de Janeiro, teriam sua prisão decretada pela Justiça, e nove jovens morreriam pisoteados no Baile da Dz7, em Paraisópolis, em decorrência de uma ação policial.

Esse conjunto contraditório de eventos, que aponta ao mesmo tempo para a consagração internacional do funk (capaz de mobilizar renda e recursos financeiros tanto para sujeitos marginalizados quanto para grandes corporações dentro e fora do país), e para a repressão contínua de que é alvo, é um dentre os muitos exemplos apresentados por Danilo Cymrot em seu livro O funk na batida, recém-lançado pelas Edições Sesc SP. A obra acompanha de perto as relações tensas e frequentemente ambíguas entre o aparato jurídico brasileiro e suas populações periféricas. Relações essas que extrapolam o âmbito meramente cultural para dizer algo de mais profundo sobre nós.

Como bem adverte Hermano Vianna, O funk na batida resultado ampliado de uma pesquisa de mestrado realizada pelo autor na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – é menos sobre funk do que sobre o Brasil. Corretíssima percepção, desde que nos atentemos para o fato de que não se trata de um “Brasil” qualquer. Se até bem pouco tempo a relação do país com sua cultura popular poderia ser lida na chave mais otimista do “encontro”, o trabalho de Danilo apresenta ganhos significativos ao focar em um elemento particularmente decisivo de cisão: o “encontro” dos aparatos jurídicos e repressivos do Estado com corpos negros e periféricos em movimento. Ou seja, o Brasil encarado do ponto de vista da guerra contra os pobres, a partir de dois de seus principais polos de tensão.

Ao se concentrar nas inúmeras formas de articulação entre os processos de glamourização e criminalização do gênero, Danilo acaba encontrando um elemento estrutural importante do racismo brasileiro. No caso, um exemplo nada original do velho processo brasileiro de racialização, instituído desde antes da abolição: formas culturais negras progressivamente absorvidas enquanto nacionais; corpos negros violentamente excluídos da festa. Cultura negra nacional, corpo negro marginal – fórmula elementar do racismo brasileiro.

Assumindo uma perspectiva crítica à criminologia tradicional, o livro atua como uma espécie de mediador de conflitos entre o funk e poder público, ouvindo com atenção os diversos argumentos conflitantes, analisando pacientemente suas motivações e assumindo um ponto de vista que aposta (utopicamente?) na possibilidade de resolução dos impasses entre corpos negros e Estado antidemocrático. O resultado, dos mais interessantes, é particularmente feliz, sobretudo quando escapa aos bem conhecidos binarismos em que frequentemente recaem as discussões envolvendo cultura e periferia.

Assim, se o livro se dispõe a “defender” o funk contra suas principais acusações – apologia ao crime, associação com o tráfico de drogas, valorização da pedofilia e machismo – apresentando inúmeras evidências que deitam por terra tais argumentos, também não deixa de apresentar críticas mais “legítimas”, tais como a atuação controversa de MC’s menores de idade no funk “putaria”, ou as reclamações por parte de moradores de periferia em relação aos bailes e seus excessos. Sem jamais perder de vista, contudo, a forma com que tais críticas são frequentemente mobilizadas para justificar a repressão violenta e indiscriminada aos bailes, ou as condenações generalizadas ao gênero como um todo.

Em momentos mais pontuais, os esforços do livro para não deixar de fora nenhuma das vozes envolvidas no confronto pode parecer ao leitor não especializado algo cansativo. Tal opção, entretanto, cumpre bem a função de construção minuciosa de um “caso jurídico”. Já em outros momentos, mais delicados, tal modelo parece deixar escapar um esforço de síntese dialética entre elementos que são contraditórios apenas na superfície – como a própria relação de complementariedade entre glamourização e criminalização das culturas periféricas, base mesma do modelo de racismo à brasileira.

Por vezes, a busca por explorar o máximo de complexidade das relações acaba por deixar de lado uma compreensão mais sistêmica do todo. Quando afirma, por exemplo, que no ano de 2020 o governador de São Paulo João Dória apresentou uma “postura contraditória” em relação ao funk, prometendo mobilizar a Polícia Militar para proibir a realização de bailes funk e parabenizando MC Fioti pela versão funk de sua música pró-vacina, o livro deixa passar o fato de que existe uma mesma base higienista a articular as duas atitudes, contraditórias, portanto, apenas em aparência: a celebração de um funk higienizado, pró-sistema e, de preferência, branco, de um lado; e a criminalização dos bailes de periferia, de outro.

De todo modo, tais momentos de em nada prejudicam a clareza no desenvolvimento dos  argumentos principais da obra, e o leitor sai convencido de que as relações entre o funk e o poder público são muito mais complexas do que a simples recusa incondicional; de que o punitivismo é uma estratégia fadada ao fracasso (e, por isso mesmo, adotada à exaustão); de que o modo de (r)existência cultural periférica é marcado por uma série de ambiguidades que formam uma espécie de modelo subversivo de adesão; e de que o funk talvez seja o gênero contemporâneo com maior capacidade em captar esteticamente as principais contradições do país, sobretudo as que se deseja ocultar.

No fim das contas, sobressai-se o principal mérito do livro: a coragem necessária para encarar de frente as contradições do funk e do sistema jurídico brasileiro, cujo saldo – marcadamente violento – diz respeito a todos nós.

COTAÇÃO: 4 ESTRELAS

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