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(Des)aprender com o vírus: o bolsonarismo como paródia (mortal) da pandemia

Publicado originalmente no jornal Nexo, em abril de 2021.

Em um breve ensaio do filósofo Paul Preciado chamado Aprender com o vírus, o autor parte de um argumento de Michel Foucault a respeito do biopoder pra fazer a seguinte afirmação: ao contrário do que dita o senso comum, o vírus não é necessariamente a irrupção de algo novo que nos pega de surpresa. De fato, em grande medida o vírus mimetiza aquilo que nós somos enquanto sociedade, atuando à nossa imagem e semelhança ao reproduzir e estender para toda população as formas dominantes de manejo biopolítico já em atuação no tecido social. A maneira como os países lidam com as epidemias são, pois, a mais pura e simples expressão daquilo que eles se tornaram enquanto sociedade.

A partir desse pressuposto, o filósofo vai analisar os dois tipos de resposta à pandemia que ele considera como sendo os principais paradigmas de tecnologia biopolítica contemporânea. O modelo europeu, de países como França, Itália e Espanha, e o modelo dos países asiáticos, sobretudo a China. O modelo Europeu teria aplicado medidas disciplinares que, segundo o autor, não são substancialmente diferentes daquelas usadas desde o início da Era Moderna contra as diversas formas de peste e praga que tomaram de assalto o continente europeu ao longo de sua história. As medidas modernas de gestão da pandemia dos países europeus, baseadas no confinamento doméstico de toda população foram, portanto, basicamente as mesmas utilizadas em séculos anteriores (ainda que não mais geridas por instituições tradicionais como o hospital, a fábrica, a prisão e a escola, e sim pelo próprio espaço doméstico que no neoliberalismo seria espaço privilegiado de produção e controle social), o que para o autor explica em parte o fracasso desses países na contenção da COVID-19.

Já o modelo adotado por países como China, Japão e Coréia do Sul obteve sucesso no controle da pandemia ao aliar técnicas radicais – e por vezes autoritárias – de confinamento, com tecnologias extremas de bio-vigilância, com ênfase na detecção individual do vírus através da multiplicação de testes e vigilância digital constante e rigorosa dos pacientes, por meio de dispositivos móveis de computação que configuram, segundo Byung-Chul Han, uma espécie de Estado Policial Digital.

A despeito das diferenças evidentes em termos de resultado – o capitalismo europeu tomou um verdadeiro baile -, há de se reconhecer que os dois modelos seguem inseridos no interior de uma mesma lógica sistêmica. Por um lado, o neoliberalismo europeu foi incapaz de propor uma solução eficaz para contenção da pandemia justamente porque a cartilha neoliberal desacostumou esses países a pensar politicamente a esfera pública. A saúde deixa de ser pensada como um direito fundamental, o que faz com que a manutenção da vida não seja uma prioridade, a despeito do desejo dos governantes em contexto de crise – tornando as respostas no geral insuficientes e deficitárias. O modelo chinês, por sua vez, ainda que tenha se mostrado muito mais eficaz e produtivo, também segue inserido no mesmo paradigma moderno de controle e vigilância digital compartilhado pelo capitalismo europeu. De todo modo, ambos os modelos se mostram absolutamente incapazes de imaginar alternativas para o estado de coisas que nos conduziu até aqui e que, ao que tudo indica, só tende a piorar nos próximos anos.

Contribuições brasileiras para acelerar o fim do mundo

Durante muito tempo o Brasil acostumou a representar a si mesmo como um vasto repositório de forças civilizatórias alternativas que teriam por missão apresentar uma contribuição original ao mundo. No caso específico da gestão da pandemia, pode-se dizer que tal dever de originalidade vem sendo desempenhado com amplo sucesso – e sem a menor sombra de grandeza -, servindo inclusive de inspiração para outros países do centro.

O modelo brasileiro de gestão da pandemia é inovador na medida em que não representa simplesmente uma terceira possibilidade de combate ao vírus. Ao contrário, o que vemos é uma inversão profunda da premissa dos dois modelos anteriores. Enquanto Europa e Ásia bem ou mal procuravam por meios alternativos de conter o vírus e salvar vidas, o Brasil desenvolveu uma bem sucedida estratégia de salvar o vírus e eliminar vidas humanas. Ao invés de enfrentar a pandemia, Bolsonaro e seus seguidores optaram deliberadamente por piorar a situação. Se é verdade que a pandemia é um fato essencialmente político que revela aquilo que nós escolhemos ser enquanto sociedade, foi sobretudo no Brasil que o Estado assumiu da maneira mais realista e cínica sua vocação histórica para a desumanização e para o genocídio.

Alguns aspectos sociais, históricos e políticos ajudam a explicar esse modelo tão inovador quanto abjeto de atuação. O mais óbvio e evidente é o de que o projeto bolsonarista é anticivilizatório e fascista e, portanto, destrutivo por natureza. Ainda que seja um fascismo de tipo novo, sua razão de ser é o mesmo desejo de destruição dos marcos civilizatórios mais elementares, que a pandemia só fez radicalizar. Na contramão do restante do planeta, que em linhas gerais buscou por formas mais ou menos eficientes de autopreservação, a máquina de morte por aqui aproveitou a pandemia para radicalizar seus métodos. A polícia matou mais, a pandemia matou mais, soluções sérias foram encaradas como piada, e piadas – como a cloroquina – foram levadas a sério, como se por aqui as coisas estivessem todas viradas de cabeça pra baixo. Spoiler: não estão, pois é disso mesmo que se trata.

O segundo aspecto é o caráter propriamente paródico do bolsonarismo, que fez com que ele optasse por parodiar o vírus, ao invés de enfrenta-lo. Bolsonaro, ele mesmo uma espécie de paródia fake de chefe de Estado, criou um jeito bizarro e assustador de parodiar o vírus. Paródia tanto no sentido de encarar a crise como uma piada, diminuindo a gravidade da situação e se comportando como uma criança birrenta, quanto no sentido de produzir uma imitação rebaixada do próprio vírus. Se o objetivo existencial de um vírus é multiplicar a si próprio indefinidamente até matar seu hospedeiro e continuar seu ciclo mortal, Bolsonaro decidiu atuar ele próprio como um vírus, assumindo diante da COVID sua já conhecida postura subserviente, covarde e mortal.

Um terceiro aspecto fundamental para se compreender o sucesso do bolsonarismo em radicalizar a política de morte do país é a matriz escravista brasileira, que nos educou enquanto sociedade para a indiferença total diante da dor do outro – além, é claro, do sadismo próprio às classes proprietárias. É sempre bom lembrar que o fascismo brasileiro tem uma matriz colonial que se mantém a partir da produção contínua e crescente de vidas precárias marcadas para a morte, por conta da tecnologia do racismo estrutural forjada com o fim da escravidão. Ou seja, Bolsonaro só fez reduplicar, de forma despudorada, a vocação genocida do país, confirmando a tese de que o vírus nada mais é do que a expressão condensada daquilo que nós somos. No caso, uma máquina de extermínio da população preta e pobre do país. Eis, portanto, a grandiosa contribuição brasileira para o mundo: indiferença absoluta diante da morte, sentimento generalizado de salve-se quem puder, um Estado criminoso que se dirige contra os mais pobres em benefício do topo da pirâmide, e uma barbárie progressiva que emerge da certeza de que algumas vidas simplesmente não tem o direito de existir. Diante de tudo isso é perfeitamente possível dizer – já que vivemos uma espécie de inferno kafkiano filmado pelo Zé do Caixão – que enquanto a escravidão fizer parte do DNA da sociedade brasileira, existe esperança, esperança infinita. Mas não para nós.

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