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O que pode nos dizer a arte para além do seu valor?

I

O valor não é a única coisa que pode ser perguntado a respeito de uma obra artística. Muitas vezes, sequer é a coisa mais interessante a se perguntar.

Contudo, essa é a pergunta que mais nos delicia fazer. E, sobretudo, a que mais ansiamos por responder.

Ao convencermos o outro do valor de um objeto de arte, imploramos – carentes – para que reconheçam nosso próprio valor.

E a carência é a mãe da roubada.

II

Não que esta não seja uma pergunta válida, ou interessante. Sobretudo quando se reconhece o valor a partir de parâmetros que não estão à disposição dos grupos que instauram hegemonias. O gesto de coragem necessário para subverter a língua geral – a língua é fascista – e afirmar uma potência que não se deixa adivinhar facilmente.

Carolina de Jesus forçando a entrada nos brancos salões de mármore crítico.

III

Entretanto, ser boa ou ruim é apenas uma das infinitas coisas que obras de arte podem fazer.

Malala Yousafzai, paquistanesa vencedora do Nobel da paz, disse que sua principal influência artística foi Paulo Coelho.

O que isso nos diz não sobre valor, mas sobre ética literária?

A pergunta pelo valor – quando é menos pergunta que interdição – inviabiliza esse saber por respostas prévias previsíveis e coniventes.

Todas as perguntas podem ser interessantes, mas nem todas são tão narcisistas.

IV

O crítico sempre vai tratar dos objetos que gosta, e tentar convencer o mundo da grandiosidade de seu amor e da beleza do ser amado. Tediosamente monogâmico mesmo na não monogamia, seu objetivo é fazer com que o mundo ame aquilo que ele ama – mas nunca ao ponto do seu objeto de afeição deixar de lhe pertencer.

Nisso compartilha da mesma fragilidade dos artistas.

V

Sempre haverá algo de arbitrário no gesto crítico. Um fundamento a um só tempo subjetivo e material, posto que social e historicamente localizado.

Não que esse gesto seja sempre injustificado: para isso, o aprendizado rigoroso do método, que permite saltar do mero impressionismo em direção ao Verdadeiro.

Nem tudo é arbítrio, portanto, mas o arbítrio nunca sai inteiramente de cena, porque nunca sai inteiramente de cena o gosto. E gosto é a cor da chupeta predileta da primeira infância, da qual sequer nos lembramos, mas que ressurge a cada audição que nos acalenta.

VI

Caetano Veloso não ocupa o lugar máximo no panteão de nossos artistas por puro arbítrio. Ele é, de fato, uma das figuras mais centrais, decisivas e extraordinária da história da cultura brasileira.

Daí a infinidade de livros, discos, filmes, séries a lhe celebrar o gênio.

Mas, se Martinho da Vila não ocupa o mesmo patamar, é porque o arbítrio é instrumento amante do poder: ponto de partida e chegada.

A linguagem do cânone só irá mudar quando novos sujeitos advindos de outros contextos e classe social ocuparem as universidades, subvertendo as regras a seu favor.

Pagodeiros só serão canonizados por outros pagodeiros. Ao vencedor as batatas.

VII

Em contraponto a tendência hegemônica de se olhar para a música popular como quem acompanha um bom livro, jovens pesquisadores têm insistido em colocar o corpo pra jogo.

A canção que não quer se tornar livro, mas organizar o baile.

A música a partir do corpo, tecnologia de subversão dos fiéis parâmetros de autonomia – tecnologia de combate do Ocidente. Criação em estado de guerra: quem fica parado contemplando concerto e moscando, acorda com a boca cheia de formiga.

A história que não acontece nos acordes, gritando no rebolado.

VIII

Tão importante quanto o aprendizado (pessoal) rigoroso dos métodos de análise, é saber abrir mão desses critérios para reconhecer a beleza daquilo que lhes escapa.

Esse movimento é bem mais difícil do que o primeiro, mas é fundamental. Sem cair em um relativismo cultural que equivale a tudo enquanto mercadoria, mas escapando do circuito narcísico que considera errado tudo aquilo que se afasta de parâmetros construídos a duras penas ao longo da vida, e aos quais nos apegamos cada vez mais obsessivamente.

Afinal, tais parâmetros são nossa própria vida. A cada conservador o seu quartel.

Há sabedoria em se estar certo, mas há muito mais em saber certo o que julgamos errado. Um saber de outra magnitude, para o qual não existe linguagem própria. É preciso desentendermo-nos para compreender o que nos é alheio.

O derradeiro aprendizado: saber morrer.

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