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Obituários 2022: Pelé e Gal Costa

PELÉ

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Quando eu nasci era costume das famílias colocarem uma boneca (ou boneco) na porta do quarto da maternidade, anunciando ao mundo se nascia uma menina ou um menino. O ano era 1981, e não havia muitas bonecas pretas disponíveis, assim como não havia muita representação negra positiva em lugar nenhum.

Não havia representação negra. Mas havia o boneco do Pelé.

E foi esse boneco aí da foto que minha tia Lili escolheu para representar o meu nascimento, desejando-me boa sorte e pedindo aos céus para que eu tivesse um futuro auspicioso.

Quando os negros de qualquer nação periférica sonham um futuro melhor para seus filhos, um futuro brilhante e cercado de glória, é ao Divino que eles se dirigem, mas é sobretudo a imagem de Pelé que eles projetam.

Junto com o futebol, Pelé é o símbolo maior de tudo o que o Brasil sonhou realizar, a concretização de sua potência enquanto nação e a suprema demonstração da força da cultura popular em projetar para o mundo uma sociedade social e racialmente mais justa, capaz de transformar seus conflitos sociais em potência criativa e virtude humana. Pelé foi a encarnação em campo de um país mais decente, a partir do corpo negro afro reluzente.

O mundo seria objetivamente pior para os negros sem Pelé, pois ele deu corpo a um campo novo de possibilidades de ser, um modelo de inscrição dos marginalizados no mundo, pelo seu próprio meio de atuação específica, essencialmente negra.

Existem muitos atletas extraordinários. Mas somente Pelé inventou uma civilização inteira com os pés. Talvez a criatura humana (“humana”?) dotada do corpo mais inteligente de todos os tempos. E o corpo é tudo.

Um corpo negro, a quem o mundo – o mesmo mundo que inventou o negro como ser para morte – foi obrigado a se curvar.

E o verbo se fez carne. Seu nome: Edson Arantes do Nascimento.

Abram caminhos para o rei.

GAL COSTA

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A primeira palavra que me vêm a mente quando penso em Gal Costa é “Liberdade”. Dentre os Bárbaros, creio ser esse seu maior legado. O estado pleno da voz em liberdade, que só poderia ser voz de mulher.

Curiosamente, entretanto, Gal era filha do silêncio, domínio de Obaluaiyê, seu pai. Iniciada por ninguém menos que Mãe Menininha do Gantois. Daí o poder específico de seu canto, pleno dos mistérios do silêncio. Penso em poucos outros com esse dom: o trompete de Miles, a tristeza de Milton e os silêncios de Billie Holiday.

Gal morreu, mas não antes de colocar sua voz contra a ditadura, ontem, e contra o fascismo, hoje. Voz em estado de Liberdade, só se retirou após ver os ratos se encaminhando para o esgoto de onde nunca deveriam ter saído.

Fruto de uma geração de criadores geniais, nos legou uma coisa das mais raras e difíceis de se ver em intérpretes: uma voz que é também uma forma de pensamento.

(Dentre tantas canções, fico com o dueto com Tim Maia. AQUELE dueto. As vezes, tenho a impressão de que todas as canções de amor se reduzem aquele dueto. Brega, despudorada, sexy, potente, soul, black, Wando, como deveriam ser todas as canções de amor quando dotadas de cor, cheiro, suor e vida).

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