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‘Barulho de Preto’, clássico sobre hip-hop, faz mixtape de teorias

Publicado originalmente na Folha na São Paulo, em 18 de jan. de 2022.

É som de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado. 

AMILCKA E CHOCOLATE 

Cerca de 16 anos após os MC’s Amilcka e Chocolate anunciarem a dimensão inexorável da rendição de todo corpo (mesmo os notoriamente entrevados, como os corpos acadêmicos) aos encantamentos rítmicos das quebradas, chega ao Brasil o livro Barulho de Preto, de Tricia Rose, professora da Brown University, em tradução cuidadosamente elaborada por Daniela Vieira e Jaqueline Lima Santos. A obra, considerada um dos marcos fundadores do campo de estudos sobre o Hip Hop, foi publicada originalmente em 1994 – mesmo ano de lançamento de Illmatic, do Nas, e Read to Die, do Notorious Big, e um ano após o surgimento do clássico Raio-X do Brasil, dos Racionais MC’s.  

Lendo o livro, é fácil perceber as qualidades que o levaram a se tornar um clássico. Munida de olhar rigoroso e extrema erudição, Tricia Rose atua como uma espécie de ‘MC acadêmica’, sampleando perspectivas teóricas diversas (análise do discurso, sociologia urbana, teoria da comunicação, história social, feminismo negro, etnomusicologia, etc.) de modo a construir um painel vivo e dinâmico capaz de captar com sucesso a multiplicidade de registros e camadas que compõem seu objeto. Não por acaso o livro se tornará um marco: é possível pensar nele como um rio para onde correm diversos afluentes epistemológicos ou, melhor dizendo, como uma mixtape de peso que fornece matéria prima para a produção de inúmeros samples clássicos. 

A obra se divide em cinco capítulos, organizados a partir de uma série de tensões: marginalização social e sucesso comercial; tradição afrodiaspórica e modernização tecnológica; adesão ao mercado e contestação crítica; discurso de resistência e estratégias de cooptação; misoginia gangsta e a reação\adaptação feminina. O caminho escolhido por Rose, de grande rendimento crítico, é o enfrentamento franco e dialético das contradições, em tudo avesso a soluções fáceis e simplórias. Ainda que se coloque francamente em defesa do rap, confrontando interpretações equivocadas de críticos e entusiastas, em nenhum momento a firmeza de seu compromisso sacrifica a densidade do seu olhar. Contrário a qualquer reducionismo das ideias, e por respeito aos seus irmãos, o livro opta por explorar ao máximo as ambiguidades do gênero que, no limite, são as mesmas da juventude negra estadunidense em contexto de desagregação neoliberal. 

A imagem final, sugerida pela própria estrutura da obra, é a do rap como uma arena de conflito que se organiza em diversas frentes: contra a opinião pública mainstream, contra os mecanismos de cooptação do mercado, contra a arrogância da crítica acadêmica, contra os órgãos de repressão do Estado, além dos conflitos internos de classe e gênero. É nessa arena que MC Rose se movimenta, assumindo múltiplas identidades que servem para sabotar o raciocínio de seus interlocutores. Se em dado momento ela mobiliza o ponto de vista negro para rebater as críticas do feminismo branco – que frequentemente desconsidera a especificidade da vivência das mulheres negras – em outro ela ‘retorna’ a esse mesmo feminismo para se contrapor à misoginia gangsta, apenas para na sequência retornar para a trincheira negra, ao perceber que o elogio aparentemente progressista das mulheres no rap funciona como uma estratégia de fragilização comunitária. Da mesma forma, ela se afasta do campo acadêmico quando este demonstra ser incapaz de dialogar com a complexidade da linguagem periférica, para retornar a ele quando precisa confrontar estratégias de manipulação diversas. Em suma, o livro transita com maestria por sob um campo minado, cercado de riscos por todos os lados, com a sagacidade de quem participa de uma batalha de MC’s. 

Em relação a nosso próprio terreiro, pode-se dizer que a versão em português de Barulho de Preto chega em momento bastante oportuno, quando se observa uma crescente expansão das pesquisas sobre hip hop nas universidades brasileiras. Note-se que o movimento faz parte de um contexto mais geral de ampliação do horizonte de saber das universidades, em busca de novas vozes e perspectivas para além daquelas já há muito conhecidas. Contudo, mais importante do que celebrar essa bem vinda abertura de visão, é saber reconhece-la por aquilo que ela é: o resultado de uma estratégia paciente e sagaz que vem de longe, tomando a cena de assalto ali onde menos se espera. Sabedoria ancestral há tempos compartilhada pelos nossos. 

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