Revista

Por que os negros daqui não se revoltam como os de lá? 

Publicado originalmente na Revista Serrote, em novembro de 2021.

Eu sou irmão do meus truta de batalha 

Eu era a carne, agora sou a própria navalha 

Edi Rock

Dezoito de junho de 1851. Centenas de homens e mulheres livres e pobres, em sua maioria negros e pardos, protagonizariam uma das mais importantes revoltas sociais ocorridas após a proibição do tráfico de africanos em 1850. Um episódio que ficaria conhecido como a Guerra dos Marimbondos1, levante popular cujo foco principal concentrou-se em Pernambuco, mas cujos desdobramentos avançaram também para as províncias da Paraíba, Sergipe, Alagoas e Ceará. 

O principal catalisador do levante foi a publicação do decreto n. 797, que ordenava a execução do Regulamento do Registro dos Nascimentos e Óbitos no Império, e do decreto n. 798, conhecido como “Lei do Censo”. De acordo com os órgãos oficiais do Império, os decretos buscavam modernizar o sistema de coleta de dados da população do país, posto que, até aquele momento, os registros de nascimento e filiação, bem como a classificação dos sujeitos como livres ou escravizados, ficavam a cargo das paróquias locais, que lavravam as informações nas certidões de batismo. Os decretos, logo apelidados de “Leis do Cativeiro”, foram recebidos com extrema desconfiança e indignação, em particular pelos negros livres, que acreditavam se tratar de um possível instrumento de reescravização.  

Razões para tal desconfiança não faltavam. Afinal de contas, tendo o suposto fim do tráfico de escravizados sido decretado em 1831 sem que se houvesse abolido a escravidão (o que só ocorreria cinquenta e seis anos depois, em 1888), onde se iriam adquirir novos escravos, cada vez mais necessários para dar conta da demanda crescente do mercado cafeeiro? Ainda que a solução ‘oficial’ tenha sido fazer vistas grossas à continuidade do tráfico, assumindo a ilegalidade como norma2, os negros livres sabiam ser o próximo alvo – sobretudo porque a instabilidade das condições de cidadania de homens e mulheres livres era a regra num período marcado por inúmeros casos de escravização clandestina. Aos olhos da época, todo homem negro, mesmo quando legalmente livre, era um escravo em potencial; e os riscos de reescravização, independentemente da lei, muito concretos. 

Cientes da precariedade de sua situação e da dimensão arbitrária do poder, a comunidade negra maranhense – os marimbondos – organizou entre 1851 e 1852 diversas formas de mobilização mais ou menos articuladas. Grupos de homens armados invadiram órgãos oficiais, rasgando os editais com as novas leis e impedindo as autoridades locais de as afixar novamente; delegacias foram invadidas; delegados e vigários presos, ameaçados e eventualmente mortos. Engenhos foram ocupados e batalhões do exército sistematicamente derrotados, tendo suas armas apreendidas e vendo-se obrigados a recuar. As autoridades locais, apavoradas, redigiam cartas cobrando atitudes mais efetivas por parte dos presidentes das províncias, temendo que as ideias dos revoltosos ganhassem força e se difundissem ainda mais entre o povo.  

Obviamente, os jornais da época e a historiografia oficial trataram a revolta como um movimento menor e de pouca importância – a boa e velha estratégia de silenciamento que anula o sentido político dos levantes negros. Daí o baixo reconhecimento de seu valor histórico, interpretado como uma sublevação insignificante levada a cabo por uma gentalha ignorante, incapaz de reconhecer no censo um instrumento fundamental para fazer avançar os processos de modernização do país, benéficos a todos. Da perspectiva dos revoltosos, contudo, a história a ser contada era bem diferente: afinal, todos sabiam exatamente para que e a quem serviriam aquele conjunto de leis.  

A despeito de seu quase completo apagamento histórico, é importante salientar que, nesse caso, a guerra dos negros e brancos pobres contra o Império foi vencida pelos marimbondos, que deixaram as autoridades locais absolutamente apavoradas, forçando o adiamento da aplicação do Registro de Nascimento e Óbitos por mais de quarenta anos –  e do censo por pelo menos duas décadas3

Dezessete de novembro de 1889. Cerca de duas mil pessoas pertencentes aos mais diversos extratos sociais, em sua maioria negras (libertos do 13 de maio, alforriados, nascidos livres, nascidos no Brasil e nascidos em África), tomaram as ruas de São Luís do Maranhão em protesto contra a recém proclamada República – um fato particularmente explosivo em uma cidade onde a população negra era quase duas vezes maior do que a branca4. Na visão desses sujeitos, as promessas civilizatórias da República não pareciam lá muito convincentes, assumindo, antes, feições de claro retrocesso, seja pela articulação real dos republicanos com os interesses dos grandes latifundiários, seja porque a monarquia havia alcançado grande popularidade após a abolição5 –  como atesta a formação, poucos meses após a assinatura da Lei Áurea, da Guarda Negra no Rio de Janeiro, associação de libertos “em defesa dos direitos conquistados no 13 de Maio, por meio do apoio ao Terceiro Reinado da Princesa Isabel”6

Também nesse caso, havia razões de sobra para se acreditar que a mudança de regime seria uma forma de barrar os avanços conquistados com a abolição. Motivados por essa desconfiança, os manifestantes se dirigiram ao centro de São Luiz rumo a uma reunião republicana que aconteceria no jornal O Globo, único órgão da imprensa local a noticiar a mudança de regime – por meio de uma nota bastante discreta, diga-se de passagem –, ameaçando “depredar o edifício e atacar seus dirigentes”7. A pedido dos republicanos, forças militares foram convocadas para “proteger” a sede do jornal e suas respectivas vidraças e, em pouco tempo, realizaram uma descarga de fuzil contra a multidão cujo saldo, segundo números oficiais, foram quatro mortos e vários feridos. Nos dias subsequentes, dezenas de manifestantes foram duramente perseguidos, sendo alvo de prisões arbitrárias, torturas e mutilações que pouco diferiam do tratamento dispensado aos negros antes do treze de maio. A resposta imediata e violenta do novo regime confirmava o acerto da percepção dos manifestantes: a República era, de fato, “coisa de gente branca”. 

Tal evento ficou conhecido como O Massacre dos Libertos. Ou melhor, o evento não ficou conhecido de forma alguma, pois como bem demonstra o historiador Matheus Gato no excelente O massacre dos libertos, houve um esforço sistemático por parte da historiografia oficial para transformar o episódio em um não-acontecimento, bloqueando por décadas o acesso a sua memória. Desde o início as elites locais buscaram diminuir seu valor histórico, enquadrando o protesto na lógica da ignorância e do atraso – afinal, a República representava um grande salto modernizador rumo a uma sociedade de classes à qual o negro deveria se adaptar, em benefício da nação.8 Uma vez mais, o processo de apagamento histórico foi muito bem-sucedido. 

Para a comunidade negra, entretanto, as promessas de modernização soavam antes como armadilhas. Percebia-se de imediato que os processos políticos e sociais que viriam a se configurar após a abolição, rumo àquilo que progressivamente viríamos a reconhecer como nossa futura democracia, eram já de saída articulados pelas elites locais de modo a barrar as reais possibilidades emancipatórias inscritas no processo de abolição. O que então se apresentava pelos republicanos como avanços indeléveis do processo civilizatório era todo um sistema de negação contínua e permanente de avanços reais, por meio da elaboração de mecanismos de perpetuação do sistema de exclusão baseados em processos de racialização que consolidariam o racismo como o principal mecanismo regulador das instituições nacionais. O massacre de 17 de novembro em São Luiz demonstrava claramente que a ascensão do negro à condição de liberto condicionava-se à sua subordinação a uma espécie de subcidadania de segunda classe, cuja especificidade se dava por meio da criminalização do corpo negro.  

Dezoito de junho de 1978. O feirante Robson Silveira da Luz, 27 anos, casado com Sueli da Luz, grávida de seu segundo filho, voltava de um baile black com amigos quando foi violentamente abordado pela Polícia Militar, acusado de roubar um cacho de bananas em seu local de trabalho9. Robson foi levado ao 44º Distrito Policial de Guaianazes, onde foi torturado e morto pelos policiais a mando do delegado Luiz Alberto Abdalla. Na mesma época, o operário Newton Lourenço foi executado pela polícia militar no bairro da Lapa, e quatro garotos foram barrados do time infantil de vôlei do Clube de Regatas Tietê pelo fato de serem negros10

O acúmulo crescente de casos de violência racial ocorridos em meio às discussões em torno dos 90 anos da abolição causou grande impacto entre os militantes negros do país. Enquanto os órgãos de comunicação hegemônicos assumiam sua costumeira indiferença perante o racismo, a imprensa negra e jornalistas como Hamilton Cardoso publicaram diversas matérias denunciando os episódios.  

As repercussões dos assassinatos de Robson e Newton, bem como o racismo flagrante no caso dos jovens atletas motivaram a reunião promovida por diversos grupos e entidades negras em junho de 1978, data de fundação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, que na sequência mudaria o nome para Movimento Negro Unificado (MNU). Decidiu-se então que uma das primeiras ações do MNU seria a organização de um grande ato público em protesto contra os diversos casos de violência direcionados à população negra do país. E em 7 de julho de 1978, nas escadarias do teatro Municipal de São Paulo, foi realizada uma manifestação histórica que reuniu cerca de duas mil pessoas, com a presença maciça de representantes de entidades negras das mais diversas partes do país, em plena ditadura. 

O Movimento Negro Unificado foi uma peça-chave no combate ao regime militar a partir dos interesses da comunidade negra e obteve inúmeras conquistas ao longo desses mais de quarenta anos de mobilização antirracista. Se hoje contamos com a presença da história africana e afrobrasileira nas escolas, a demarcação de terras quilombolas, o crescimento do número de pessoas negras nas universidades, o fortalecimento geral da consciência racial no país, a ruptura quase completa com o mito da democracia racial e a percepção generalizada de que o racismo no Brasil é uma realidade estrutural, muito se deve à coragem, força e sabedoria de todos os que fizeram e fazem parte desse movimento. 

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Distantes entre si histórica e geograficamente, esses três acontecimentos permitem reconhecer traços de continuidade que capturam algo da experiência negra no país: a normalização da violência branca como mecanismo regulador das relações raciais; as promessas de modernização como armadilha para os mais pobres; os dispositivos de apagamento da agência negra; o arbítrio das relações de poder; o gozo com a subserviência do socialmente marginalizado; o prazer sádico em promover a dor; a produção objetiva e contínua do corpo negro como matéria descartável. Mas também revelam a insubmissão da existência negra;; a potência emancipatória advinda de sua capacidade de resistência; o levante de formas epistêmicas alternativas; e a consciência mais aguçada das classes subalternas, capaz de captar o real sentido dos acontecimentos em contraposição aos processos de manipulação ideológica por parte da elite intelectual branca

É essa percepção aguda, produzida fora da cadeia discursiva oficial, que nos leva a questionar as versões que enfatizam certa passividade “bestializada” do povo negro diante dos acontecimentos históricos que se desenrolavam à sua frente, ou melhor, sobre suas cabeças. Tal juízo revela antes a miopia própria à leitura hegemonicamente branca da história, que por seu modo de articulação social e discursiva quase sempre apresenta como totalidade o que é mero reflexo de si. O fato é que, de uma perspectiva popular, sempre houve revolta e embate, além de uma visão bastante clara de que as coisas não são como se apresentam.  

O que até aqui tem garantido a “normalidade” das coisas não é uma pretensa passividade dos sujeitos, mas um estado permanente de violência, tratado por Abdias Nascimento em termos de genocídio negro11. Em linhas gerais, o que se entende por democracia no Brasil é o refinamento das formas de genocídio e de seus processos de normalização. O povo negro por aqui tem se mobilizado desde muito antes de suas elites apelidarem de democracia o aperfeiçoamento de suas técnicas de extermínio12. O que nos leva de volta a uma pergunta que insiste em reaparecer de modo recorrente e significativamente incômodo, quase sempre em momentos chave de violência racial:  

Por que os negros daqui não se revoltam como os de lá? 

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Sobre o mito da passividade do povo negro, gostaria de contar uma parábola narrada por um jovem mestre cantador, a respeito da Igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos da Penha de França. Localizado na Zona Leste de São Paulo, o santuário foi construído por membros da Irmandade dos Homens Pretos, uma das centenas de organizações destinadas a defender os direitos básicos dos sujeitos sequestrados em África13. 

Eis a história. 

Por determinação superior do Vaticano, todas as igrejas deveriam, por obrigação, ter a fachada voltada para sua sede administrativa, no caso, a catedral da Sé. A Igreja da Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, contudo, foi construída de costas para a Sé.  É a única igreja de São Paulo nessa situação. 

A interpretação mais imediata obviamente reforça o peso do simbolismo político deste gesto arquitetônico. Uma organização que defende os interesses dos descendentes de africanos, recusando o autoritarismo cristão e todas as suas malezas, marca simbolicamente sua posição ao virar de costas para a instituição que ajudou a legitimar a escravidão. 

Por mais simpática que nos pareça, essa visão é enviesada e parcial. A verdadeira explicação não está no que fica às costas da irmandade, mas no horizonte que se desdobra à sua frente. Aqueles homens e mulheres sábios, pretos velhos e griots, cultivavam um conhecimento profundo a respeito da natureza e de sua relação com a vida. Eles não construíram uma igreja virada de costas para a catedral da Sé. Eles construíram uma igreja de frente para o sol. Não é o ódio reativo que organiza a resistência ancestral, mas a conexão com a terra, axé e matriz vital. Uma ode à vida e ao próprio corpo, que promove um outro sentido existencial. “O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção”14: eis a verdadeira agência emancipatória. 

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Por que os negros daqui não se revoltam como os de lá?  

A pergunta ressoou pelo Brasil uma vez mais logo após a morte de George Floyd, homem negro covardemente assassinado pelo policial Derek Chauvin no dia 25 de maio de 2020, em Minneapolis. Sua morte foi o  estopim para uma série de manifestações antirracistas ao redor do planeta15.  

A motivação inicial da pergunta estaria na constatação, só em aparência realista e moralmente indignada, do caráter particularmente perverso que as relações sociais assumem por aqui. Afinal, estamos falando de um país em que, apenas um dia após a morte de George Floyd, o menino Miguel Otávio foi morto em Recife por conta da displicência homicida de uma patroa branca; onde pouco depois um policial militar de São Paulo imitaria o gesto do assassino de Floyd em atitude claramente provocativa, pisando no pescoço de uma mulher negra de 51 anos que implorava por sua vida. E onde, na véspera das comemorações do 20 de novembro, um homem negro foi espancado até a morte dentro de um supermercado Carrefour em Porto Alegre, enquanto muitos dos que aderiram ao protestos globais antirracistas com hashtags no twitter e telas pretas no Instagram, lamentavam pelas prateleiras vandalizadas em protesto pelo assassinato.  

A lógica que, em aparência, preside a pergunta seria, pois, a percepção de uma falta fundamental dos negros brasileiros em comparação com os de ‘lá’: afinal, se a morte de um único negro nos EUA foi capaz de gerar uma movimentação tão intensa por todo planeta, o caráter sistemático das mortes que acontecem por aqui deveria multiplicar os termos da indignação, conduzindo, no mínimo, a uma bem-vinda revolução.  

É evidente que o fundamento da questão é bem outro, de caráter, digamos, bem menos nobre –  a começar pela desimplicação subjetiva de quem a enuncia. Ao submeter o problema da violência racial a uma equação na qual está indicada a aparente passividade dos negros brasileiros diante do próprio horror, naturalmente se desloca (quando não se absolve por completo) a passividade afinada com o poder daqueles que se beneficiam com a barbárie, permitindo que assumam uma mal disfarçada posição de superioridade moral, como se no fundo desejassem aquilo que interromperia seu circuito de vantagens sociais – isto é, o fim do racimo. Mas como os negros daqui pouco ou nada fazem, paciência: por ora, sigamos, a “contragosto”, no interior do mesmo sistema de privilégios.  

“Que os negros daqui nos tornem brancos melhores”: esse parece ser o horizonte final do antirracismo de diversos de nossos ‘melhores’ progressistas. 

A única pergunta verdadeira a ser feita nesse momento diz respeito, obviamente,  a como e porque o Brasil segue em seu ciclo de mortes, como o país é capaz de intensificar um projeto de extermínio racista não só num contexto de comoção global, mas também num período em diversos sentidos catastrófico. Entretanto, as lentes do racismo brasileiro são tão bem polidas que a pergunta recorrente não diz respeito às condições do genocídio, mas à curiosa tendência das vítimas à finitude: “Por que diabos os negros continuam morrendo tanto? Será que eles não deveriam parar de fazer isso?” Essa maneira de (des)ver o racismo brasileiro permite um duplo movimento de desimplicação: por um lado, uma desimplicação objetiva –  pois o racismo é uma questão exclusiva dos negros, que devem encontrar formas mais eficientes de parar de morrer; por outro, uma desimplicação subjetiva, que livra os sujeitos do ônus psíquico de um mecanismo que torce pelo sucesso do opressor. Afinal, o sujeito eticamente antirracista torce para que o negro encontre a melhor maneira de evitar as consequências do racismo, estando prontamente disposto a ajudar tão logo esse caminho seja encontrado, desenvolvido e protocolado em três vias. 

“Se os negros daqui se mobilizassem mais e melhor nós estaríamos do lado deles, afinal, com a motivação certa nós usamos inclusive hashtags antirracistas”: é assim que o branco brasileiro mobiliza um aparato bastante complexo que o leva a acreditar, muitas vezes de forma sincera, que deseja o exato oposto daquilo que efetivamente quer. O gozo pelo extermínio aparece para esse sujeito como afeição, tal como o marido que acredita verdadeiramente amar a mulher a quem sistematicamente agride. O racismo é, assim, vivenciado como um mundo sem culpa, ainda que violento, em que todos são, a seu modo, vitimados. 

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Escrever sobre esse tema é algo particularmente difícil. Não só por lidar diretamente com o projeto de extermínio dos nossos, mas porque o racismo é, conceitualmente falando, um dos temas mais complexos da sociedade brasileira, em grande medida constitutivo do seu próprio DNA. É difícil não só porque dói, mas também por não se deixar capturar conceitualmente de maneira simples. Essa é uma de suas propriedades.  

Comecemos, pois, do início: a sentença “os negros daqui não se revoltam como os de lá” não corresponde sequer minimamente à realidade objetiva – como os exemplos iniciais puderam nos mostrar. Ou seja, não descreve um estado de coisas, expressando antes o filtro ideológico por meio do qual essa realidade é organizada. A frase não ilumina uma dada situação real: ela enquadra a “realidade” em uma determinada perspectiva que a inventa como base do enunciado. O efeito performativo da linguagem: não a descrição da realidade em si, mas a realização objetiva de uma fantasia16

No momento em que a sentença é enunciada, tudo aparece de forma clara e evidente. Todo mundo “sabe” imediatamente o que ela quer dizer. No entanto, nada poderia ser mais obscuro do que essa aparente obviedade, que faz do “saber” o esteio último da ideologia. Ou seja, a frase é uma excelente amostra de como funciona um dispositivo ideológico17.  

Dessa perspectiva, podemos dizer que um dos dispositivos de maior sucesso no mercado ideológico brasileiro é o racismo estrutural, que por aqui funciona por meio de um duplo processo de hiperracialização do corpo negro – cuja função é torná-lo descartável – e desracialização simbólica – que recusa a enunciação dessa corporeidade enquanto negra. Ou seja, o negro enquanto pura exterioridade jamais coincide consigo mesmo, sendo a negritude continuamente produzida como excesso ou como falta18.  

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Acredito que uma maneira bastante honesta de se descrever o Brasil é como um experimento social destinado a perpetuar a condição dos corpos não-brancos como matéria descartável. Um empreendimento de ódio, socialmente localizado, como bem define Luiz Antonio Simas19. As poucas vezes em que o país se torna um lugar minimamente decente é quando esse projeto fracassa, e as comunidades negra e indígena conseguem se contrapor ao Brasil institucional. Na maior parte do tempo, contudo, o que observamos é a normalização cotidiana do racismo.  

Ou seja, a realidade brasileira é fundamentalmente marcada por processos de violência racial, que produzem a própria percepção do que é o ser brasileiro. Entretanto, a apreensão ideológica e simbólica dessa realidade passa por um processo geral de desracialização de seus próprios termos, por meio de uma série de mecanismos que têm por característica tornar “fluída”, ainda que não inexistente, a percepção racial da realidade. Os efeitos práticos são inúmeros, inclusive em termos de construção de formas de resistência, mas dentre os mais perversos está o misterioso “desaparecimento” dos racistas. Negros são mortos por motivação racial o tempo todo, mas os efeitos não são captados nesses termos, porque a simbolização está, por assim dizer, borrada. O racista vive seu próprio conjunto de ideias como se alheias lhe fossem, desimplicando-se de seus próprios princípios. Por meio desse dispositivo desaparecem não apenas os racistas, mas o sentido mais geral da agência negra.  

Percebe-se, portanto, que as coisas não ocorrem exatamente da maneira como estão colocadas pelo enunciado da pergunta. Este constrói sua própria ‘realidade’ no interior das coordenadas que o dispositivo organiza para o sujeito enquanto é por ele organizado. Um sistema simbólico que inevitavelmente organiza o Real, ao qual, segundo Lacan, não temos acesso. Parece confuso, mas significa que a forma do enunciado revela antes de qualquer coisa os limites da própria percepção do enunciador, que é o que o constitui enquanto sujeito, a partir de uma falta elementar. Nesse caso em particular, isso significa que os negros “daqui” não se revoltam a partir dos códigos que tais sujeitos estão preparados para reconhecer enquanto uma revolta legitimamente racializada, pois não reconhece-la enquanto tal é a condição mesma de existência de sua própria identidade. Quando essas revoltas tomam forma, entra em funcionamento o dispositivo ideológico em suas múltiplas funções, que ora as fazem desaparecer, ora as ressignificam a partir de outros códigos (nação, mestiçagem, etc.). 

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Primeiro de junho de 2020. O jornal estampa a seguintes manchete e chamada: “Ônibus são incendiados durante protesto em São Paulo. O caso aconteceu na Cidade Tiradentes, na zona lesta da capital paulista. Nenhuma pessoa foi presa”20. O protesto foi motivado pelo assassinato de um adolescente negro pela polícia militar na noite anterior. Os manifestantes, revoltados, atearam fogo em dois ônibus. Uma revolta popular contra a morte de um jovem negro, tudo bem similar ao que acontece nos EUA. Mas aqui, periferia da periferia, movimentos negros antirracistas não são cognitivamente apreendidos enquanto tal. O que prevalece é a versão padrão da polícia: bandidos entraram nos ônibus, obrigaram passageiros, motoristas e cobradores a descer e, depois, atearam fogo nos veículos. Não se trata de protesto negro antirracista, mas da ação ilegítima de criminosos. Não percebem que todo protesto comprometido com a Verdade é, em alguma medida, ilegítimo. 

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Por que os negros daqui não se revoltam como os de lá? 

Suponhamos que a pergunta não seja exatamente essa, que tende a colocar a conta da violência uma vez mais sob os ombros da comunidade negra, de uma maneira um tanto quanto irresponsável. Talvez o que se queira saber, afinal, seja as razões pelas quais as revoltas negras no Brasil não ganham a mesma proporção que as norte-americanas. 

Aí a coisa começa a ficar mais interessante, porque implica a branquitude no processo. 

Emilly, 4 anos, e Rebeca, 7, mortas a tiros enquanto brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias (RJ). João Pedro, 14 anos, morto dentro de casa enquanto brincava com seus primos. Ágatha Felix, 8 anos, morta enquanto passeava com a família. Marcos Vinícius, 14 anos, morto a caminho da escola. Davi, 7 anos, presenciou a morte do pai, alvejado com 80 tiros, de dentro do carro da família. O filho por vir de Kathlen de Oliveira Romeu, morto antes mesmo de nascer. 

Por que esses casos não provocam uma comoção nacional, um fenômeno que abranja todo território, paralisando todos os serviços e irrompendo em fúria revolucionária? 

Para tratar de desejos convém sair das limitações do campo sociológico e aprender algo com o espaço do desejo por excelência que é a literatura. Há um conto fabuloso de Clarice Lispector, “A quinta história”, narrativa a princípio banal sobre uma dona de casa que decide matar as baratas que infestam seu apartamento. A história começa de forma bem objetiva: a narradora reclama das baratas, a vizinha passa uma receita de veneno caseiro, ela prepara o composto de farinha e gesso que espalha pela casa e os insetos morrem durante a noite, da forma mais eficaz possível. A narradora não acompanha o momento da morte dos insetos, tomando ciência apenas do resultado. Problema resolvido, tudo voltaria ao normal, não fosse a autora Clarice Lispector, que na segunda parte da história opta, brilhantemente, por chamar as coisas por aquilo que elas são, nomeando a mesmíssima história como “O assassinato”.  

A partir daí o conto nega justamente o mecanismo principal de organização dos sentidos da primeira parte, que é a terceirização da morte – matar como quem segue a uma receita e medir as mortes a partir de parâmetros de eficiência, ou seja, a partir da ética do trabalho. Da segunda parte em diante o extermínio do Outro abjeto e indesejável passa a ser responsabilidade da própria narradora. Ela reconhece sua implicação naquelas mortes e a narrativa passa a investigar o que, dentro dela, permitiu se tornar uma assassina fria e sem culpa, eliminando vidas como quem segue um mero receituário. “A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas, que nem minhas eram: pertenciam ao andar térreo e escalavam os canos do edifício até o nosso lar. Só na hora de preparar a mistura é que elas se tornaram minhas também. Em nosso nome, então, comecei a medir e pesar ingredientes numa concentração um pouco mais intensa. Um vago rancor me tomara, um senso de ultraje”. É ela quem mata. Não a receita. Não a polícia. 

Quando a polícia brasileira mata um jovem negro, ela está realizando um desejo perverso da própria sociedade que a constitui para isso. Donas de casa homicidas. Cidadãos de bem: “Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam”. 

‘Nada’ acontece quando um negro morre por aqui (ou melhor dizendo, nada de branco acontece) porque o Brasil é recorrentemente inventado por meio do extermínio de negros e indígenas. É isso que ele faz, é nisso que ele sente prazer. Para além da polícia, para além dos criminosos violentos. É o que faz com que uma patroa considere normal deixar uma criança de cinco anos, sozinha, em um elevador, enquanto faz as unhas. Uma criança negra, filha de sua empregada, que passeava com seu cachorro. Sua propriedade, portanto.  

Por que nossas mortes não comovem? A resposta é simples e perturbadora: porque elas excitam. 

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Além da desumanização generalizada, a percepção geral da identidade negra como falta também faz parte dos nossos dispositivos de racialização21

Durante algum tempo, parte considerável da intelectualidade brasileira e artistas ligados a paradigmas mais nacionalistas interpretaram o rap como mera imitação acrítica de negros norte-americanos. Nesta visão, tratava-se de mero consumo alienado de modismos da Indústria Cultural, como já haviam sido a Jovem Guarda e a Disco Music, desprovido do interesse artístico ou político do movimento hip hop do Norte, desdobramento legítimo dos movimentos de luta pelos direitos civis.  

A comparação tem em vista o rebaixamento. Negros americanos são mais organizados, mais politizados, mais inteligentes – afinal, falam inglês fluente. Em suma, são mais negros. Tão superiores que fazem inclusive o favor de permanecer em outro hemisfério. Toda movimentação política e cultural e os esforços dos rappers brasileiros para compreender a especificidade do ser negro como forma de resistência periférica é reduzida a um gesto de subserviência alienada. Para deslegitimar essa voz vale qualquer coisa, inclusive reciclar a velha crítica do imperialismo cultural em que nem mesmo a militância de esquerda mais old school ainda acredita. 

Note-se a engenhosidade do movimento. Quando se trata de desqualificar a mobilização negra no país, elogia-se os americanos como representantes mais legítimos da causa. Principalmente quando se trata do “pacífico” Doctor King (que na realidade estava longe de ser um mero ‘pacifista’). Malcom X e os Panteras Negras eram violentos demais,  James Baldwin atentava contra a moral e Angela Davis, bom, Angela Davis é mulher. Mas tão logo os negros brasileiros assumem o caráter internacionalista e diaspórico de sua identidade, na esteira do que há tempos vinha realizando o MNU, são acusados de subserviência aos Estados Unidos. O mesmo gesto, reconhecido enquanto crítico e racional quando enunciado pelo branco, é adesista e ignorante quando realizado pelo negro.  

Para o poder branco, o negro nunca é o que afirma ser. A legitimação de sua versão parcial da história é a base do seu poder. O rap é o “negro errado” porque é ao branco que cabe definir o que é o “negro certo”; o que é ser negro no Brasil; quais são os “problemas do negro”; o que lhe falta para se integrar plenamente a uma sociedade moderna de classes. Ao reduzir a agência negra a mero equívoco, ou falseamento, a branquitude assume-se enquanto a possibilidade de reduzir o outro a seus próprios parâmetros enunciativos. Mais do que corpos particulares, branquitude é o nome desse poder. 

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De fato, é preciso mudar em definitivo a pergunta. 

Por que somos incapazes de enxergar o negro no Brasil? 

Assumamos: a pergunta toca, sim, em algo “real”. Quando o hip hop insiste na necessidade de se criar uma comunidade negra periférica com valores em comum, o ponto decisivo é a ideia de que ela não está dada a priori –  e essa desarticulação é usada pelo sistema como forma de opressão. Negro matando negro. Irmão matando irmão. Boa parte do rap dos anos 1990 gira em torno dessa questão. Só que esse real não passa pela insuficiência do corpo negro, aquele algo que supostamente lhe faltaria e que é responsável por fazer com que o branco não se identifique com as reivindicações da negritude. Existe um deslocamento ideológico fundamental na forma como a pergunta é colocada. 

A verdadeira questão não é porque os negros daqui não se revoltam, porque nós nos revoltamos ao longo de toda história, o tempo todo, a despeito das diversas formas de violência e silenciamento. A questão é saber como e porque essas revoltas não são compreendidas enquanto negras, por vezes sequer por aqueles que estão efetivamente se levantando contra o racismo. Precisamos reconhecer e enfrentar a funcionalidade perversa do dispositivo racial brasileiro como ideia fora do lugar22, isto é, mecanismo disjuntivo de regulação que permite a polícia matar negros sistematicamente sem que esse projeto seja taxado com todas as letras (sobretudo as jurídicas) de política de apartheid.  

É aí que entram em cena as formas de resistência marcadas a um só tempo pela sagacidade e pela precariedade: a resistência negra que, mesmo ao não se projetar imediatamente enquanto tal, organiza-se a partir dessa impossibilidade constitutiva. O movimento negro enquanto negro em movimento. As vezes a verdadeira malandragem é viver. Essa é, aliás, toda genialidade dos álbuns Mulher do fim do mundo, de Elza Soares, e Encarnado, de Juçara Marçal, duas obras-primas contemporâneas. Fazer a voz da mulher negra soar a partir da aparente “impossibilidade” de sua constituição: o ponto de vista da morte. Essa voz que emerge enquanto impossibilidade em movimento é o som que se organiza aos fundos do experimento genocida do país. É a potência dessa voz negra, feminina e encantada, que deve orientar nossos caminhos. 

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Por que os negros daqui não se revoltam como os de lá? 

Por aqui ninguém é bobo, doutor.  

Vocês não querem a nossa revolta.  

Vocês querem o nosso sangue. 

Acauam Oliveira é professor da pós-graduação em letras da Universidade de Pernambuco, onde desenvolve pesquisa sobre literatura, música, afrodescendência e relações étnico-raciais. É autor da introdução a Sobrevivendo no inferno, livro que reproduz letras e documentos em torno do histórico disco dos Racionais MC’s.  

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