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O fofo naufrágio humano da MPB neo-indie

Em uma série de palestras1 sobre a canção e seu suposto “fim”, José Miguel Wisnik definiu a estrutura de certa música atual como sendo um tipo de “canção expandida”, que tem como modelos paradigmáticos os trabalhos do Radiohead e do Los Hermanos. Segundo o crítico, a característica principal desse tipo de canção é não possuir um “centro” identificável, um núcleo que estruture as diversas camadas de significação, configurando-se quase como canções desestruturadas que se organizam ao redor de impulsos que se multiplicam e se sobrepõem, numa espécie de transposição cancional da lógica da música eletrônica. Creio que no caso do grupo Radiohead é relativamente mais simples reconhecer essa “expansão”, ou “inorganicidade” constitutiva: a sobreposição de elementos soltos indeterminados cujo efeito é levar o ouvinte a acompanhar e perder-se entre os diversos impulsos, muito mais do que organizar uma forma consistente e organicamente articulada. Os elementos da canção ficam meio que à deriva, gerando certa sensação de gratuidade, que pode ou não assumir um sentido mais amplo — o Radiohead muitas vezes usa essa forma expandida e inorgânica para representar uma visão sombria da vacuidade da vida contemporânea, com resultados de grande força estética. 

À primeira vista, segue Wisnik, a opção por temas suaves, vozes em tessitura média ou baixa, um tipo clean de arranjo musical etc. aproximaria essa produção mais indie do modelo de canção proposto pela bossa nova, o grande marco paradigmático da MPB “clássica”. Entretanto, pode-se dizer que estamos diante do exato oposto da proposta estética de João Gilberto, na medida em que nessa canção expandida os elementos ficam como que “soltos”, flanando sem encontrar um centro unificador de sentido. Na dicção de João Gilberto, todos os elementos diminuem de intensidade porque é o próprio sistema de organização do todo que deve brilhar, um núcleo forte e consistente que diminui a intensidade das partes para fazer brilhar o conjunto. Já nesse modelo de “canção expandida”, as partes são hipostasiadas, e sua suavidade decorre de um processo mais geral de indiferenciação, como se o sujeito não tivesse forças para organizar um núcleo que sustente as diversas informações dispostas ao longo da canção. 

 Diga-se de passagem, esse é um conflito bastante caro a uma geração que tem acesso a todo tipo de material sonoro via internet sem, contudo, ter acesso a nenhuma das experiências que tornaram possível tais formas. Uma relação virtualizada com a experiência corresponde a um sujeito que “sabe” de tudo, mas não domina nada. 

É preciso salientar, entretanto, que esse dado, esse sujeito “frágil” que se apresenta na canção expandida, por si só não representa algo de negativo, ou positivo, estando mais para um “espírito de época”, ligado às novas condições de os sujeitos se posicionarem no mundo, e com as quais a arte tem que se haver, com o risco de recair no puramente ideológico. Em linhas gerais, e sem se aprofundar muito, podemos dizer que a emergência desse “sujeito frágil” na canção está diretamente relacionada ao fim da indústria fonográfica, pelo menos tal como constituída até os anos 1990. É nesse momento que desaparece de cena aquele ultrassujeito quase monstruoso que tudo pode (Michael Jackson é um bom exemplo da capacidade de articulação dos diversos campos dessa indústria) para dar lugar a esse outro que mal sustenta seu próprio peso, o ser chafurdado no vazio de sua existência. Uma espécie de normatização da precariedade, que a meu ver atinge inclusive a própria ideia de pop star, reconfigurando-a.   


Diante desse diagnóstico de fragilização perfeitamente expresso pelo modelo de “canções expandidas”, são diversas as atitudes e posicionamentos que a arte pode assumir. Em seus bons momentos, a autoconsciência dessa inconsistência fundamental pode fornecer as bases para construção de obras esteticamente relevantes. Um grupo como o Radiohead, como vimos, usa essa “ausência” de substância musical como meio a partir do qual constrói uma imagem sombria da vacuidade da existência contemporânea. No caso brasileiro, a Filarmônica de Passárgada trata essa ausência de centro gravitacional das canções com distanciamento irônico, assumindo e expondo a fragilidade como condição inescapável da arte contemporânea, enquanto Rômulo Fróes reflete sobre as dificuldades de sustentação de um antiobjeto musical, que é a própria condição do ser na capital paulistana. Juçara Marçal radicaliza as experiências do Metá-Metá em seu trabalho solo (Encarnado), criando um dos discos mais interessantes dos últimos tempos, em que todos os elementos da canção lutam entre si para criar uma consistente e perturbadora desarmonia que sustenta um conjunto complexo de reflexões sobre a morte. Note-se que todos esses exemplos lidam de alguma maneira com as contradições do seu tempo, oferecendo respostas diversas e potentes ao atual estado de coisas, mostrando ser perfeitamente possível produzir obras de qualidade nos dias de hoje.  

 Nos piores casos, entretanto, como é o da MPB neo-indie, a atitude principal parece ser a de um gozo perverso tirado do vazio, uma espécie de satisfação perversa com a nulidade, um prazer sádico em se fazer uma música irrelevante, que nesse caso podem ser também qualificados em suas dimensões de classe. Nos gêneros mais comerciais da cultura de massas, como os pagodes ruins dos anos 1990 ou o pop de baixa qualidade dos anos 1980 (é preciso dizer que existem pagodes bons e pop de qualidade?), a irrelevância era um “efeito colateral”, por assim dizer, do compromisso dos artistas com os valores da cultura de massas. No caso desses artistas indies da “nova” MPB — classificação por sua vez também problemática em termos de conteúdo —, a irrelevância é deliberadamente defendida como o ideal da música. Não como crítica, mas como espaço de autossatisfação. 

 Fazer musiquinhas irrelevantes pelo simples prazer que se sente ao acordar (“eu tenho acordado cedo e me sinto ótima”). Afinal, qual o grande problema disso? E digamos de uma vez, da maneira mais clara possível: a rigor, nenhum. A arte vive também do prazer hedonista, do desejo de ser e estar no mundo, pura e simplesmente. Cantar e cantar e cantar. O problemático, como sempre, é o sentido mais amplo desse gozo que, a despeito do que se diga, não se dá no vazio. O que esse tipo de canção, que criou um nicho específico, diz a respeito de certa condição do ser. Afinal, o que torna possível que esse estado de coisas seja, para ela, objeto de satisfação hedonista, e para outros, a imagem do horror, do tédio, do descentramento etc.? O que torna possível seu gozo

 Nas primeiras audições, a impressão que essas canções transmitem é a de que tudo vai bem, pois ainda que os sujeitos se sintam “deslocados” e como que estranhos no mundo, tudo não passa de uma questão de mais amor, por favor. Palavra de ordem que se por si só não é necessariamente ideológica nesse caso, marca a garantia de privilégios óbvios: para quem toma porrada da polícia, o que não é o caso dessa galera indie que não perturba a ordem em nenhuma instância, pedir mais amor soa ridículo na melhor das hipóteses, quando não conivente, pois o que se pode precisar no caso é de mais armas ou, pelo menos, de mais pernas para correr.  

Pior que isso, é possível reconhecer relações de complementariedade entre esse modelo fofo de ser e nossa barbárie cotidiana. Em uma dessas intervenções por mais amor em São Paulo, um coletivo realizou um movimento de “ocupação” de uma praça do centro, com shows de bandas “alternativas”, oficinas de malabares, feira orgânica etc. Novamente, o gesto não é problemático em si, mas como um determinado significado ideológico nunca se realiza no vazio, pode-se dizer que o principal problema dessa proposta de “ocupação” é o pressuposto de que a praça estava “desocupada” antes. Não por acaso, no dia da tal intervenção, não era possível encontrar nenhum dos seus habitantes “tradicionais”: moradores de rua, usuários de crack, prostitutas etc. A ocupação com amor implica uma desocupação prévia que é lida como saldo positivo, repondo à barbárie a qual procurou se opor ao realizar, com amor, o mesmo gesto de desocupação violenta proposto pela gestão do governo do Estado. 

Mas acredito que o verdadeiro conteúdo ideológico dessa turminha neo-indie não esteja na afirmação de que tudo vai bem e somos felizes nesse contexto atual de desagregação. Antes, ele está na busca deliberada da irrelevância como verdadeira marca de privilégio e distinção, a sensação de que as coisas não estão nada bem, mas tudo bem mesmo assim. Essa é a verdadeira perversidade: não se trata de sujeitos incapazes de reconhecer que o mundo está desmoronando a seu redor — o fracasso e a derrota do sujeito são muitas vezes o tema dessas canções —, mas, por terem a possibilidade de assistir a tudo de um lugar seguro, decidem “continuar tocando”, como aqueles músicos do Titanic que seguiram em seu trabalho enquanto o barco afundava. 

 (Existe dignidade nesse gesto? No caso da morte inevitável do Titanic, é inegável que existe dignidade na escolha deliberada de como morrer — a dignidade daqueles que dirigem seu próprio destino sabendo que esse não mais lhes pertence, mesmo que essa escolha seja algo rebaixado como “seguir trabalhando”: a dignidade está na escolha, e não na tarefa escolhida. Mas no caso do mundo contemporâneo em que se inscreve o neo-indie-MPB, apenas ideologicamente se pode afirmar que estamos no caminho da morte certa, pois ela é perfeitamente evitável caso mudemos os rumos dos acontecimentos no planeta. Nesse caso, “seguir tocando” pode ser apenas mais um gesto banal de adequação).   

No limite, a proposta ideológica desses grupos é tratar o terror que vivemos como um dado inevitável que é preciso aceitar, para o bem de todos. O que acontece nesse caso, portanto, é o oposto da dignidade diante do destino irrevogável: defrontando-se com o caos e a barbárie, o artista se recolhe covardemente em sua própria irrelevância, para então tratar isso como um gesto supremo de coragem, um sujeito ousado que canta o amor onde só existe ódio etc. Podemos dizer que o núcleo problemático dessa forma consiste em seu grau de adequação e realização da barbárie, ali mesmo onde se apresenta sua face mais descompromissada. Digamos que se trata de algo pior do que simplesmente afirmar que as coisas estão cor-de-rosa, e que vai tudo bem (a alienação em seu sentido “clássico”): trata-se de afirmar que aquilo que é reconhecidamente o mais profundo terror é, na verdade, cor-de-rosa. Tudo o que precisamos para encontrar a felicidade é de mais cores.    

É importante ressaltar que a questão aqui não é a falta de engajamento, ou de conteúdo diretamente crítico dessas obras. O lirismo desvairado muitas vezes é mais progressista que uma militância chapada. Para voltar outra vez ao exemplo clássico da bossa nova, o que esse movimento realizou foi precisamente um processo de dessemantização dos conteúdos das letras,2 trazendo ao primeiro plano as relações harmônicas e melódicas que podiam então ser tratadas em conjunto pelo artista. Tal gesto de desengajamento tornou possível uma das mais radicais transformações na história da música brasileira. Contudo, esse movimento em nada tem a ver com uma busca pela irrelevância como padrão estético. Ao contrário, seu objetivo é tornar todos os aspectos da canção igualmente relevantes, de modo que, ao final do processo, o movimento acaba por dizer algo de fundamental sobre o mundo. Evidentemente, a MPB neo-indie também diz algo sobre o mundo, agora com sinal trocado: conforme-se, pois é melhor assim (pelo menos para alguns).   

Nesse ponto, tais artistas acabam por se parecer muito com uma figura com a qual eles pouco se identificam: Romero Britto. Com uma diferença importante, pois Romero Britto não se incomoda nem um pouco em se assumir como perfeitamente integrado a um sistema ao qual é dever do artista, no máximo, colorir, ao passo que a MPB neo-indie realiza essa mesma adequação conformista por meio da imagem do deslocamento, do alternativo, do sujeito que não se integra etc.   

Evidentemente que tal postura — a busca deliberada por uma posição de insignificância tratada como esclarecimento bem-intencionado e fofo — não se deve meramente a um posicionamento existencial, mas é também uma tomada de posição dentro de um mercado cada dia mais incerto. Para ficar no caso brasileiro, digamos que a linha estética a qual nos acostumamos a classificar como MPB, ligada ao movimento que fez artistas e intelectuais de classe média aproximarem os valores da alta cultura com a canção popular, desde o início foi dependente dos altos investimentos da indústria fonográfica, tanto em termos de produção (a produção dos discos de artistas de MPB sempre foi mais “cuidadosa” e cara do que dos cancionistas ligados à música romântica e brega, com exceções óbvias, como Roberto Carlos3) quanto em estratégias de divulgação e distribuição. Esses artistas sempre foram produtos mais caros que, como tal, dependiam de altos investimentos de mercado para manter sua integridade artística. Com o fim desse vínculo umbilical, provavelmente por falência múltipla de órgãos, diversas estratégias foram adotadas. As periferias, por exemplo, tentaram forjar novos vínculos comunitários que sustentassem movimentos estéticos originais, menos verticalizados, em que enfim pudessem se reconhecer. Já o neo-indie optou deliberadamente por reduzir sua produção ao modelo de canção de elevador. Uma música com espírito de agregado, como o paradigmático José Dias, de Dom Casmurro, tipo que não desagrada ninguém, não faz escolhas. Compositores que são a favor da natureza, a favor da vida, das mulheres, dos gays, do livre mercado, das escolhas individuais, desde que defendidas pelas pessoas certas, e nos momentos adequados. Compositoras que defendem o empoderamento feminino e criticam a gordofobia dos machos cisgênero, enquanto expõem, orgulhosas (sem nunca ter pegado um cara gordo), o seu namorado branco, forte, bonito e cult.   

Dito isso, creio que não está rigorosamente correto julgar essas músicas em termos de alienação, pois elas estão no geral bem antenadas com tudo o que acontece, e a alienação no sentido marxista clássico diz respeito a uma espécie de desconhecimento essencial. Aqui funciona a variação fetichista da ideologia, tal como definida por Zizek: não o clássico “eles não sabem o que fazem”, mas o “eles bem o sabem, mas fazem mesmo assim”. A irrelevância é uma opção estética, a escolha por não escolher, o desejo deliberado de ser música de elevador. Sem o apadrinhamento direto do grande capital, que garantia sua produção e a difusão, essa nova geração indie MPB escolhe a irrelevância para única e exclusivamente continuar tocando, sem desagradar a ninguém, como aqueles programas infantis que toleramos porque são coloridos.   


Talvez o exemplo recente mais acabado desse tipo de música que deliberadamente busca a irrelevância seja a Banda do Mar (“eu tenho acordado cedo e me sinto ótima” — postagem inútil de Facebook celebrada enquanto letra de canção), espécie de John e Yoko com mais ursinhos de pelúcia. Aliás, se é verdade que esse tipo de som pode ser classificado como uma procura deliberada pela nulidade, é preciso reconhecer que os próprios artistas têm consciência daquilo que fazem. É por isso que a imagem do “mar” se aplica bem nesse caso. Não se trata evidentemente do mesmo mar de Dorival Caymmi, em que a ideia de fluxo e transitoriedade contém centelhas de vida e morte que portam o mistério da existência em experiências simples e cotidianas de pescadores no litoral baiano. Mas sim, da imagem mais clichê do sujeito no mar a navegar indefinidamente sem encontrar pouso, tirando toda a satisfação possível desse estado de deriva. Espécie de Aventuras de Pi sem o detalhe fundamental da presença mortal do tigre, o que poderia ser a imagem do tédio absoluto — como por vezes acontece no Radiohead —, mas que aqui se torna a mais perfeita imagem de autossatisfação narcísica. Aliás, creio que outra imagem cinematográfica pertinente aqui é a dos humanos em Wally-E: aquele estado vegetativo de absoluta futilidade (e que para existir depende diretamente do trabalho de robôs sub-remunerados) é o que a Banda do Mar nos vende como ideal de existência feliz. 

 Um belo exemplo desse não estado de coisas é essa letra da Clarice Falcão, artista que capta bem esse espírito de irrelevância, ao qual acrescenta, contudo, toques (suaves) de distanciamento irônico que funcionam menos como elemento de força estética e mais como um alerta — o que já é interessante. Pois é essa posição do eu-lírico da canção que esse nicho da produção musical contemporânea pretende ocupar enquanto posição ideal, dessa vez sem ironia. Uma música que aceita ser qualquer coisa pra não desagradar ao sinhozinho mais perverso que existe: o público fiel. Trilha sonora da integração conformista, vendida como alternativa a outros padrões também adesistas, como o sertanejo universitário. Muitas vezes interpretados como opostos, representam, na verdade, diferentes formas de se integrar a um mesmo universo em desintegração. 

 Mas pra assinalar que nem tudo está perdido, é interessante assistir ao clipe da música “Mais ninguém”, da Banda do Mar. Tudo nele confirma o que se disse: a irrelevância da letra, a pouca criatividade de arranjos, o clima de felicidade fake na dancinha sem graça dos integrantes do grupo. Poderia ser um comercial de margarina qualquer, não fosse pelo detalhe do passinho do romano construído pelo funkeiro Fezinho Patatyy, o único momento de verdadeira preocupação com alguma construção estética efetiva. Por isso, muitos dos fãs não entenderam a presença do passinho no clipe: em um contexto em que tudo tende para a irrelevância, os momentos que apresentam algum senso de preocupação estética causam, de fato, estranhamento. 

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Acauam

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