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Luísa Sonza – Escândalo Íntimo

Luisasonza

DOSSIÊ ESPECIAL: 2023 POR SEUS DISCOS

O universo musical mais afirmativamente empoderado hoje certamente é o da música pop (“Ah, eu tô exausta/até feia eu sou bonita”). Empoderamento feminino (Luíza Sonza), identidade negra (Ludmila), celebração da beleza dos corpos e vidas LGBTQIA+ (Pablo Vittar), masculinidades desconstruídas (Jão). Identidades diversas e plurais que se tornam parte decisiva da cultura mainstream.

Essa presença é tão marcante que tanto Jão quanto Luísa Sonza foram convidados para participar do especial de fim de ano de Roberto Carlos – brigadeiro de maconha servido como sobremesa na ceia de Natal da família brasileira.

Amores e corpos livres funcionam como a contraparte progressista, supostamente mais responsável, da celebração da vida de solteiro que se manifesta em gêneros como o sertanejo e o trap. Sintomas de um movimento mais geral de crise e reconfiguração de antigos parâmetros de organização social – o neoliberalismo como modo de vida. Tanto em espectros políticos progressistas quanto conservadores, observa-se um aumento do hedonismo, alimentado pela convicção de que relacionamentos afetivos são necessariamente fugazes, tão carentes de futuro quanto a noção de estabilidade profissional. Esquemas pontuais que devem ser vividos com maior (progressista) ou menor (conservador) “responsabilidade afetiva” por sujeitos empoderados, i.e., que sabem vender seu próprio peixe mesmo na situação da mais completa e miserável barbárie.

O cantor e compositor Jão emerge como uma figura sintomática nesse contexto, com sua performance simultaneamente mais sexualmente livre (bi) e melancólica. Ao multiplicar significativamente o número de possibilidades de encontros afetivos, relacionando-se tanto com meninos quanto com meninas, Jão amplia não apenas seu horizonte de liberdade, mas também o de tristeza e desilusão. Um movimento bastante lógico, por sinal: afinal, quanto mais seres humanos envolvidos em quaisquer processos, maiores as probabilidades de se quebrar a cara, pouco importando o quão “livres” julgamos ser.

Dentre outras coisas, Jão nos apresenta uma singular representação artística de uma geração que vivencia uma bem-vinda crise ética dos diversos mecanismos de castração mono – monogamia, monoteísmo e monocultura como efeitos do colonialismo (Nego Bispo) – cuja resposta, contudo, consiste em instalar simultaneamente o Tinder e o Grindr. Menos solução do que sintoma, multiplicando-se as formas de esvaziamento da experiência.

No limite, esse movimento integra as dinâmicas de rearticulação da vida social como um todo, marcado por aquilo que Paulo Arantes definiu como “redução do horizonte geral de expectativas”. Redução esta que afeta todas as áreas da existência, a começar pelo mundo do trabalho. A “flexibilização” do mercado de trabalho (i.e., desregulamentação e precariedade) corresponde a uma maior “flexibilidade” no âmbito das relações afetivas, o que abre novas possibilidades de organização contratual das relações (não-monogamia não-binária) ao mesmo tempo que intensifica as demandas subjetivas próprias ao neoliberalismo, pautadas pela lógica exterminista de eliminação da concorrência e insatisfação permanente dos consumidores. 

Dos discos pop lançados esse ano, o de Luísa Sonza apresenta um excelente poder de síntese das múltiplas tendências estéticas e ideológicas que informam a cena contemporânea. Desejo explicito de internacionalização, mas com olhar atento para as dinâmicas locais; amores fluídos e muita putaria, mas também relações tradicionais, com direito a roedeira clássica pelo bom e velho chifre; balada pop eletrônica moderna, mas com uma boa dose de nostalgia bossa nova.

Te quero só por uma noite, mas te quero para sempre.

Eu vou comer você

Eu vou lamber você 

E quando eu me satisfazer

Eu vou largar você 

O sujeito que canta a positividade dessa postura empoderada – outrora, babaca – é o mesmo que cobra maior responsabilidade afetiva, cuidado e permanência. Preso entre duas demandas paradoxais, torna ambas impossíveis. Angústia e neurose, obviamente. E ainda espera-se que acreditemos que a resposta adequada é “manter a terapia em dia”.

Diziam pra mim
Que essa moda passou
Que monogamia é papo de doido
Mas pra mim é uma honra
Ser uma cafona
Pra esse povo

O disco de Luísa promete intimidade e escândalo desde o título (Escândalo Íntimo), espécie de Onlyfans em forma musical. Contudo, entrega um conjunto de performances codificadas e mecânicas (onlyfans, de fato). Mesmo a decepção amorosa real serve sobretudo para gerar engajamento, likes e publicidade, assim como a morte de uma jovem vítima de fake news é excelente publicidade para Choquei. Todos saem ganhando: Luísa, publicidade; Chico, seguidores; o público, entretenimento. Mesmo a dor real da separação não tem tempo ou espaço para acontecer, capturada de saída por Rede Globo e Netflix. Uma experiência de perda em que nada, efetivamente, se perde – ideal de um mundo que morre por dentro antes de ser aniquilado por fora. 

Beyoncé não faz show, mas grava stories na Roma Negra. Um acontecimento mais relevante e grandioso do que a passagem de Taylor Swift pelo Brasil que, no entanto, causou a morte de Ana Clara Benevides Machado. Não há ironia nessa afirmação: daí seu teor de pesadelo.

Pautas de esquerda liberal convertidas em positividade coach a serviço da eliminação da concorrência.   Quem de nós é mais preto? Quem de nós mais mulher? E a pergunta subjacente, a única verdadeira (e, por isso, jamais enunciada): quem de nós seguirá ladeira abaixo?

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