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Léo Santana – Zona de Perigo

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DOSSIÊ 2023 POR SEUS DISCOS

Por mais distante, que o errante navegante…

São diversas as raízes matriciais da música brasileira. Dentre elas, o corpo negro pisando o chão da rua – sua pedra angular. Cedo ou tarde, é para lá que ela se volta, seja para recarregar as baterias, renovar seu repertório, ou simplesmente trazer notícias frescas do front de batalha. E convenhamos: ao falarmos em corpo preto fazendo do chão, terreiro, fica difícil alcançar a Bahia. Não que não haja cultura negra pulsante em todo Brasil; no entanto, é inegável que a percussão baiana, aliada aos corpos retintos que lhe conferem sentido, constitui o epicentro vibrante de uma das tradições musicais mais extraordinárias que emergiram em nosso meio.

Devoto do Carnaval que sou, um dia ainda hei de escrever um texto sobre Psirico. Márcio Vitor e Jadsom são desses gênios que surgem raríssimas vezes em territórios míticos como Estácio e Cacique, capazes de desenvolver um padrão de sonoridade extraordinariamente original que redefine por completo os rumos de todo um gênero. Mas, por enquanto, não me sinto à altura da tarefa. Nessa afirmação não há resquício de modéstia. Apenas a constatação objetiva de uma típica distorção cognitiva periférica: nossa música é preta, mas a tradição a partir da qual a pensamos é eurocêntrica. Por isso é muito mais fácil tratarmos de sistemas harmônicos e melódicos do que de padrões rítmicos sofisticados como os do pagode baiano. Ideias fora do lugar.

2023 consolidou Léo Santana como um grande divulgador de hits. “Zona de Perigo” foi lançada no final de 2022, estourando em 2023 como o grande hit do carnaval. Pouco depois, “Posturado e Calmo”, outro hit, lançado em abril. Em comum a ambas as composições o fato de ter sido determinante para o seu sucesso não apenas a qualidade da música em si, mas sua viralização em plataformas de vídeo. Em particular, GG dominou um ambiente virtual cada vez mais impactante no mercado musical de hoje – o Tik Tok. 

Zona de Perigo até possui um clipe “oficial”, para o qual ninguém deu a menor bola, pois o engajamento de fato foi gerado pela viralização de um vídeo bem mais amador e caseiro no Tik Tok. Quem não se lembra – sem suspirar – de Léo Santana tomando nossas telas de assalto, fazendo jus à alcunha de Gigante ao dançar “gostosinho” e sem camisa “pro pai”? Eu mesmo fui um dos que assinou aquela petição para o vídeo ser derrubado, pela deslealdade da comparação… Decerto que essa dinâmica não é novidade na axé music, desde sempre atravessada por uma relação intrínseca com a dança e a coreografia. No entanto, os discos do “É o Tchan” estão entre os mais vendidos da história do país, ao passo que Zona de Perigo sequer foi lançada em disco. A despeito de ainda se produzirem muitos álbuns, inclusive no (ex)finado formato de vinil, o fato é que a música contemporânea não depende organicamente desse suporte. Estaríamos vivenciando o fim da Era do Disco, como proclamado por Lorenzo Mammi?

Sem recorrer a alarmismos ou declarações de óbito precipitadas, talvez um dos fenômenos mais significativos na história da música popular no século XXI seja esse descolamento entre a forma da canção e sua principal plataforma de difusão. Desde então, todo um campo novo de possibilidades estéticas vem sendo abertas: o canadense Mac de Marco acaba de lançar um “álbum” de nove horas de duração, com 199 faixas; enquanto o baianíssimo Luís Caldas caminha para se tornar o artista com a maior discografia de todos os tempos, com mais de 130 discos lançados (desde 2013 vem mantendo a extraordinária façanha de lançar um álbum de inéditas por mês). Experimentos formais radicais tendem a acompanhar as formas artísticas em período de declínio e transformação.

A esse conjunto de transformações, soma-se o fato de que boa parte do que há de mais pulsante e vivo na música popular brasileira atual passa pelo corpo e pela dança. Sendo assim, devemos nos perguntar até quando serão suficientes ou significativos determinados parâmetros de crítica musical desconectados da performance? Ou melhor: uma vez que tais parâmetros nunca foram, de fato, suficientes – pois favorecem dimensões estéticas orientadas por um projeto específico de modernização que chegou ao fim, vinculado à grande indústria fonográfica – qual seria o melhor caminho para construir um olhar crítico mais adequado à pluralidade dos fenômenos artísticos de nosso tempo?

Léo Santana frequentemente expressa um claro desejo de “pacificação” no pagode baiano, visando torná-lo mais acessível e menos agressivo. No entanto, este é um movimento bem complexo. Quem já acompanhou um trio de pagode sentindo as metralhadas constantes da bacurinha no juízo entende logo se tratar de uma convocatória para a batalha. Som de preto periférico em permanente estado de Guerra Civil. Não existe definição mais precisa para uma música como “Cole na corda” do que “canção de guerra”: nela Márcio Vitor convoca a pipoca para “colar na corda”, i.e., chegar junto da galera dos abadás customizados para mostrar que, no Carnaval, é a favela que manda.

A difícil arte negra de ocupar as ruas de um país inventado para retirar corpos negros de circulação. Nesse movimento, nós negros inventamos o verdadeiro significado de espaço público no Brasil. Daí também as conexões entre instrumental militar e música brasileira, presente em estilos como marchinha, samba, pagode e swingueira. Não é que a música seja violenta. Quem anda de boca aberta leva soco da PM, e por isso a bacurinha nos alerta: “levanta essa guarda, negão”. Note-se a complexidade do projeto de “pacificação” do pagode baiano, pois é particularmente difícil aliviar o nível de testosterona de uma música que convoca o corpo preto masculino para disputar as ruas na base da porrada, sem com isso descaracterizar a matriz de sua força.

O pagode baiano é predominantemente negro, periférico e heterotop. Pacificar o estilo significa se afastar desses espaços em alguma medida, o que tem contrapartes positivas (tornar menos misógino) e negativas (embranquecimento). Não se trata de uma equação fácil, pois perder demais o chão da rua é caminho seguro para a morte lenta. A perspectiva de Léo Santana não oferece saída consistente porque sua aposta é tornar o pagodão mais comercial e genérico, podando sua potência, que vem da rua. No entanto, para a esquerda, essa é uma questão política crucial: direcionar o ódio da juventude negra periférica para os alvos certos (branquitude burguesa dos camarotes) evitando que se volte contra os próprios pretos e, sobretudo, suas companheiras.

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