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Alcione – 50 anos ao vivo

Alcionealbumcapa

DOSSIÊ 2023 POR SEUS DISCOS

Em comemoração aos 50 anos de carreira, Alcione gravou um show belíssimo no teatro Municipal do Rio de Janeiro, acompanhada da orquestra Maré do Amanhã. Verdadeira pós-graduação em Alcione, nele acompanhamos cerca de 60 composições representativas de diversas fases de sua carreira. O resultado nos proporciona o deslumbramento de acompanhar, maravilhados, uma das maiores intérpretes da história do Brasil. Se a voz já não sustenta os longos graves e agudos de outrora, sua técnica e sensibilidade criativa, de quem sabe como ninguém equilibrar swing jazzístico malandreado com romantismo desenfreado, estão mais afiadas do que nunca.

O repertório do show, cuidadosamente planejado, tem o poder de desvelar todo  potencial artístico da Marrom, que está longe de se limitar ao samba. Ou melhor, o samba, nesse contexto, emerge como o epítome de uma fonte inesgotável de conhecimentos afrodiaspóricos, onde se entrelaçam influências de bolero, jazz, forró, blues, soul e diversas outras matrizes afro que Alcione entoa em português, espanhol e francês. Nela, o samba revela ser, íntegro, o que sempre foi: índice de uma identidade brasileira que, além de afro, é também profundamente latino-americana.

Alcione promove um corte radical na “linha evolutiva” da música popular. Seu estilo vocal é extremamente moderno, puro jazz, porém sem pagar tributo ao trilho bossa novista. Ou melhor, digamos que ela até chega a pegar a rabeira desse bonde, mas subindo antes do ponto pra descer bem depois. Nela nos deparamos com a  supostamente superada tradição de Dalva de Oliveira, Nora Ney e, sobretudo, da extraordinária Ângela Maria. Tradição dada como morta, mas que segue viva, vivíssima, com inquestionável apelo popular.

Como o guarda-chuva MPB não a comportasse, Alcione se tornou a voz do samba. E este, que de bobo não tem nada, acolheu seu gênio com orgulho.

Contra o ramerrão contemporâneo, ávido por signos de empoderamento a cada verso, Alcione oferece outra experiência social, menos glamourosa e, atualmente, menos rentável.

Ver você me humilhar

E eu num canto qualquer

Dependente total

do teu jeito de ser

Alcione é a cantora de um mundo dolorosamente real que o progressismo coach despreza.

Em um mundo em que todos se tornaram empreendedores de si – i.e., desempregados estruturais compulsoriamente dependentes de autopropaganda – quem se arriscaria a se expor sob as lentes do fracasso? Quando todos se empoderam, fazem terapia e cuidam de seus corpos, quem oferece acolhimento a vasta legião de fracassados sedentários barrigudos? Note-se que acolhimento não é sinônimo de terapia – é sempre bom lembrar que existem coisas mais baratas e, consequentemente, mais difíceis de conquistar, como amizade e colo, que para alguns parece não cumprir mais função social. Bom, as igrejas estão aí pra dizer que as coisas não são bem assim. E Alcione também.

Discursos ávidos por histórias de vencedores frequentemente se sentem desconfortáveis no universo onde Alcione reina como entidade suprema. “Romantização de relações abusivas”, dirão os mais afoitos. Tolos… Alcione é mestra em extrair o senso exato de tragicidade de experiências profundamente violentas que marcam a trajetória de inúmeras mulheres em contexto de extrema precarização e vulnerabilidade.

“Meu vício é você”. Existe melhor e mais bem definida imagem da dimensão trágica de uma vida incapaz de se desvencilhar de um relacionamento abusivo? Só interpretamos esses versos em chave romântica (letristas homens a normalizar o horror) porque o capitalismo patriarcal nos condiciona a nomear como amor e afeto formas múltiplas de violência e abuso.

A mesma tragicidade profunda alimenta alguns versos clássicos de Chico Buarque – só que, nesse caso, de forma distanciada, como estudo de personagem. Afinal, suas personagens são mulheres-tipo, entre mito e cotidiano. No caso de Alcione, o senso vivo da experiência dota suas interpretações de um elemento a mais, que falta a Chico: a transmissão sinuosa da sabedoria que, entre outras coisas, trouxe as nossas matriarcas negras, vivas e sábias, até aqui.

Alcione reside nessa esfera em que o corpo transcende a ideologia, extraindo tragicidade e beleza dos múltiplos estágios de sofrimento a que apelidamos de amor. Se a força dessa potência-mulher não se deixa capturar pelo esvaziamento liberal do conceito de empoderamento, cabe-nos indagar: qual é a sua origem? Pois é desse lugar de violência, fragilidade e submissão extremas – as dimensões modernas do cativeiro de que nos fala Saidiya Hartman – que emerge a força alucinatória e contraintuitiva da Loba, capaz de “cortar o mal pela raiz”. Da mesma cena da plantation emergem escravas e Dandaras, e compreender o funcionamento desse poder é essencial para todos os que se interessam e confiam no potencial disruptivo das classes populares.

Para uma sociedade infectada pelo senso de utilitarismo neoliberal, a arte precisa cumprir alguma função. Precisamos mostrar que estamos prontos e dispostos para o trabalho 24 horas por dia. Sobretudo quando estamos desempregados: a concorrência infernal não nos permite o luxo do tempo livre. Por isso a arte precisa ser funcional em alguma medida: tem que nos ensinar, empoderar, engrandecer. Sua função é acrescentar algumas páginas a mais em nosso currículo.

Não contem com Alcione para isso. Nela, ouvimos o clamor por justiça dos desempoderados, que para nada servem. Afinal, viver é além…

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