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The Babadook (2014)

Uma grata surpresa em meio a tantos filmes de terror pavorosos (no mal sentido), o filme de estreia da diretora (e roteirista) Jennifer Kurt acerta em cheio ao utilizar o gênero como linguagem para tratar de um dos temas mais delicados do universo feminino: de que forma pode uma mulher – esse ser que ao se tornar mãe está condenada ao amor incondicional – lidar com o ódio (inclusive o justificado) que sente do próprio filho?

Uma das funções que toda resenha acaba assumindo, propositalmente ou não, é direcionar as expectativas do leitor. Todo mundo sabe o quanto é frustrante sair de casa para assistir aquele filme que foi cinco estrelas em vários jornais e, chegando ao cinema se deparar com aquela bomba. Vem daí a má fama dos críticos, que no mínimo são culpados de não deixar claro porque aquele filme é uma obra-prima: tudo bem achar o Godard um gênio, mas custa explicar pra quem assiste que ele vai se deparar com uma espécie de anti-cinema que não é nada fácil de engolir? E dizer isso sem arrogância, sabendo que existem muitas obras-primas no chamado cinema comercial?

É por isso que pode ser mais jogo pra quem vai assistir The Babadook pela primeira vez que não encare o filme como cinema de terror. Digo isso pensando especialmente em algumas críticas que vi, e que se queixavam precisamente da má qualidade na representação do monstro em si, da ausência de sustos do filme, etc. Ora, acredito que a representação nada realista do bicho-papão, quase uma citação do Nosferatu original, é um dentre os vários acertos da obra e que, portanto, se decepcionar com o filme porque ele não apresenta monstros “convincentes” é o mesmo que se decepcionar com O iluminado porque os fantasmas no baile não são assustadores. Trata-se de uma decepção mais com os próprios horizontes de expectativa do que com a obra em si, que não os exigem. Nesse sentido, talvez seja mais interessante assistir Babadook como um drama psicológico familiar: pois trata-se exatamente disso, só que em um nível metafórico próprio ao gênero terror.

Babadook apresenta-nos o progressivo conflito entre Amélia, uma mãe que perdeu recentemente o marido, e seu filho “problemático”, Samuel (diga-se de passagem, grande parte da força da obra está na interpretação fantástica de ambos os protagonistas, algo bastante incomum em filmes de terror). Um tema clássico do gênero, sobretudo em filmes que giram em torno do tema do nascimento do anticristo (como o Bebê de Rosemary), ou do exorcismo de crianças. A grande diferença é que, ao contrário da média geral desses filmes, The Babadook deixa a principal questão em aberto: nele não é possível ao expectador delimitar com certeza absoluta onde é que está a força demoníaca.

O filme não entrega onde está ou quem é, de fato, Babadook. Em alguns momentos sugere ser a própria a mãe, em outros a criança, ou ainda o marido morto. A opção acertadíssima da diretora é por distender a metáfora monstruosa e ampliar sua rede de possibilidades, ao invés de fechar o círculo e fazer os protagonistas “resolverem” o problema. Assim, a metáfora que sintetiza o conflito principal da obra – responsável por romper os limites entre sanidade e loucura – permanece em aberto até o último minuto.

E qual é essa questão metaforizada pelo monstro? Trata-se de uma questão tabu própria ao universo materno, aquele período (que pode ser alguns momentos, fases, meses, ou mesmo anos) em que as mães odeiam os seus filhos, ou melhor, que a relação entre amor e ódio que permeia as relações da criança com a mãe tende a pender mais para o lado negativo da balança. Um dos méritos do filme, que não por acaso é dirigido por uma mulher, é justamente não baratear a complexidade da questão, apresentando saídas fáceis para o expectador. Caso soubéssemos com certeza que Samuel é filho do Capiroto, poderíamos odiá-lo sem culpa, pois é o Tinhoso, e não uma criança. Ao contrário, se a mãe odiasse seu próprio filho que com certeza não é o capiroto, seria ela a possuída, e poderíamos odiar a esse ser condenado ao amor incondicional com toda tranquilidade e prazer.

Pois é precisamente nesse ponto que Babadook acerta ao optar pelo gênero terror. O terror manipula o medo, trabalhando com a perversidade psíquica de forma metafórica, dotando-o de forma e concretude. O exemplo clássico é aquele tipo de filme de monstros, ou sádicos psicopatas, que perseguem baderneiros como forma de punição exemplar. Geralmente um grupo de jovens que esta fazendo tudo o que os adultos gostariam secretamente de fazer (surubas inconsequentes, uso indiscriminado de drogas, etc.) mas não podem por questões éticas, de saúde, ou simplesmente porque os filhos nasceram. Desse modo esse tipo de filme de terror funciona também como um processo catártico para os pais, servindo ao mesmo tempo de alerta para os filhos sobre os perigos de fazer tudo aquilo que faz a vida valer a pena, e permitindo também aos pais gozarem com o sofrimento desses mesmos filhos, que podem fazer tudo aquilo que foi negado aos pais desde que os filhos nasceram. Satisfaz-se duplamente a dimensão ética conservadora e os impulsos sádicos perversos.

Nesse sentido é que Babadook faz uma opção ao mesmo tempo acertada e de grande risco, pois ao invés de lidar de forma analítica com as motivações da mãe e do menino, avaliando criticamente cada aspecto da questão (o que poderia acontecer caso não fosse um filme de gênero), o filme opta por aproximar emocionalmente o espectador das duas perspectivas. A aposta é que ao final da história nós possamos sentir toda complexidade da situação da mãe, que tem todos os motivos para verdadeiramente odiar aquela criança, mas ao mesmo tempo tem sua sanidade consumida por esse sentimento que não se torna menos repulsivo por ser compreendido. Nesse ponto é fundamental a imaterialidade de Babadook, que do início ao fim pode ou não ser real, podendo estar em todos os lugares e em nenhum. Essa indecisão aproxima o ponto de vista do filme da protagonista, criando uma perspectiva que claramente se solidariza com a mulher, ao invés de julgá-la, ao mesmo tempo que não a vitimiza.

Parte do mérito estético consiste em sustentar essa ambiguidade até os limites da insanidade: todo o sentimento negativo crescente é justificável (ninguém está livre de ser Babadook), mas essa consciência não torna menos monstruosa a situação. Ao contrário da maioria dos filmes de terror, que selecionam culpados e inocentes para livrar a cara do espectador, Babadook não oferece respostas. Afinal, quem é o culpado por um surto violento ocasionado pela depressão? Provavelmente, o conjunto da sociedade, mas também o próprio sujeito, mesmo que este seja também a maior vítima. O que resta ao espectador é a agonia de uma tensão que não se resolve em saídas fáceis, oferecendo o culpado em uma bandeja.

Desde as cenas iniciais até o final que oferece uma solução bastante original – e que em termos psicanalíticos talvez seja a única “solução” possível – Babadook é uma grata surpresa. Não por acaso, William Friedkin, o cultuado diretor de O Exorcista, considerou este um dos filmes de terror mais assustadores dos últimos tempos. Não pelos sustos, ou pelo excesso de violência, que são poucos, mas sim porque poucas coisas são mais assustadoras do que a perspectiva de que o amor materno, essa fantasia de pureza fundamental para nossa formação, não passe disso mesmo: uma fantasia.

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