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Será o pagode realmente um samba rebaixado? A linhagem Raça Negra e o caso Art Popular

Sobre os processos de invisibilidade na música brasileira

A história da música popular para a cultura brasileira é tão fundamental quanto mal contada. São inúmeros os processos de distorção, exclusão e silenciamento ao qual esse campo é submetido, o que complica muito a vida de quem se dedica a compreende-la.

Em 1999 o antropólogo Hermano Vianna chamava a atenção para o fato de que na versão daquele ano da Enciclopédia da Música Popular Brasileira não havia uma só palavra sobre grupos como É o Tchan, ou Só pra Contrariar. A explicação não poderia ser pelo fato de se tratar de artistas muito recentes, uma vez que outros nome como Pato Fu e Chico César haviam sido incluídos. A única explicação possível era, obviamente, o juízo de valor. Ora, é certo que gostando-se ou não do grupo, o fato é que não se compreende a história da MPB nos anos 1990 sem se falar em É o Tchan. Entretanto, os parâmetros de visibilidade e invisibilidade se sobrepõem à compreensão de fato da complexidade do fenômeno musical, e a própria existência do fenômeno é simplesmente atirada para debaixo do tapete, como se nunca houvesse existido. Evidentemente que não estamos diante de um caso isolado, mas de uma fato estrutural do modelo com que o país se relaciona com sua cultura. Toda riqueza e complexidade da nossa produção em geral são submetidas a critérios “externos” de avaliação (região, tribo, etc.) que acabam funcionando como parâmetros suficientes para definir a visibilidade ou invisibilidade de grupos ou mesmo estilos como um todo. Ou seja, os artistas são enquadrados em modelos de explicação pré-estabelecidos antes mesmo de suas obras passarem por um processo efetivo de análise.

Assim, se um compositor é nordestino (não importa se de Pernambuco, Maranhão ou Ceará, exceção feita a Bahia) e faz uma mistura de sons mais regionais com gêneros urbanos internacionais como o pop e o rock, imediatamente será classificado como manguebeat. Caso não exista mistura, mas apenas rock, será “criativamente” classificado como… segunda ou terceira geração manguebeat. Simples assim. O produto pronto para prateleira certa sem precisar sequer ser ouvido. Se, ao contrário, o artista faz um som próprio para o carnaval baiano, será classificado como axé, independente de ser uma variação psicodélica de frevo como Armandinho, uma variação de samba de roda como Terra Samba, ou uma versão local de pop enlatado americano como Claudia Leite. É claro que tal classificação apressada não cumpre uma função crítica efetiva, cumprindo antes uma função distributiva no campo do dizível e indizível. O que é manguebeat permanece, o que é Axé, desaparece – a menos que alguém da turma da MPB resolva assumir o papel de padrinho.

O caso do pagode romântico paulista é um bom exemplo dessa ausência de rigor na compreensão dos fenômenos da história da música brasileira, que não tem nada de ingênua ou estúpida, desde que entendamos sua função ideológica. Considerado como um gênero inferior desde o início, logo de cara o pagode foi definido por um padrão “explicativo” assumido como modelo geral de interpretação para todo e qualquer grupo – padrão esse que funciona perfeitamente bem justamente pelo seu alto teor de generalização que, rigorosamente, não explica nada. Segundo esse ponto de vista, o pagode romântico paulista e todas suas variações (cariocas, mineiras, etc.), seriam pura e simplesmente um rebaixamento do samba de raiz, aquele feito por verdadeiros sambistas como Fundo de Quintal, Jovelina Pérola Negra e Zeca Pagodinho (não seria melhor Zeca da Raiz?). Diga-se de passagem, todos esses artistas nos anos 1980 também foram considerados sambistas de segunda linha em sua época, em oposição aos verdadeiros sambistas como Cartola, Candeia e Nelson Cavaquinho.

Mas até que ponto podemos considerar o pagode romântico paulista como um rebaixamento desse “modelo ideal” de samba? Será que o fato dos grupos contarem com alguma percussão e serem compostos por pretos pobres de periferia é condição suficiente para traçar essa genealogia em todos os casos? O pagode surgiu, efetivamente, do samba, ou tem algo deliberadamente silenciado nessa passagem? Porque olhando para imagem abaixo identificamos sambistas, mesmo que só estejam presentes o piano e o violão, sem nenhum pandeiro ou cavaco? Ou melhor, falsos sambistas, justamente porque lhes faltam os instrumentos para serem verdadeiros.

Uma batida diferente (de samba?)

Seguindo o excepcional livro do pesquisador Felipe Trota, podemos dizer que o grupo que deu acabamento definitivo ao pagode romântico paulista foi o Raça Negra, a partir de seu sucesso estratosférico (entre outras marcas, a canção É Tarde Demais entrou para o Guinness como a música mais tocada em um único dia no mundo). O pesquisador traça então uma convincente genealogia da sonoridade do grupo, cuja base é o violão de Luis Carlos, até chegar na gravação original de Ive Brussel, a mais pagodeira das canções de Jorge Ben.

Segundo o pesquisador, uma das características mais marcantes dessa batida é que ela realiza uma espécie de “recalcamento” da batida do samba, eliminando a polirritmia e invertendo a relação entre tempo forte e fraco, aproximando-se mais diretamente de uma sonoridade de música pop. Não é por acaso, portanto, que o primeiro álbum de estúdio do Raça Negra comece com uma gravação pagodeira de “É o amor”, além de incluir outro sucesso do sertanejo moderno, “Desculpa mais eu vou chorar” da dupla Leandro e Leonardo. Também não é por acaso que um dos primeiros sucessos do grupo seja uma versão de “Será”, da Legião Urbana.

O modelo estético desenvolvido pelo grupo, portanto, é muito mais próximo musicalmente da proposta da música sertaneja moderna, bem como de outras variações de música pop, do que da tradição do samba. No mais, é o próprio Luís Carlos, vocalista da banda, quem confirma essa proximidade:

Nós nunca tocamos Fundo de Quintal! Eu sempre dizia que o Raça Negra está mais pra Tim Maia do que pra Fundo de Quintal. Então era essa mistura de samba com essas influências da black music, mais o samba-rock, o swing de Jorge Benjor e a gente misturava um pouco samba, mais pagode e samba. O samba do Fundo de Quintal, do Almir Guineto, do Zeca Pagodinho, da Jovelina Pérola Negra, da Beth Carvalho, esse samba nós nunca tocamos. Eu pessoalmente escutava, até hoje gosto, mas não influenciava na nossa levada, no nosso jeito de tocar (entrevista ao autor, 8/4/2005).

Podemos dizer que a relação do Raça Negra com o samba é, por assim dizer, inorgânica. Isso porque as suas principais linhas de força estão muito mais ligadas a certa vertente de Black Music nacional (em sua linhagem mais pop) e, especialmente, à linha de música romântica moderna inaugurada por Roberto Carlos – uma das linhagens mais influentes da história da música brasileira.

Entender, pois, o estilo do grupo como uma espécie de “samba rebaixado” é distorcer completamente aquilo que ele efetivamente realiza. Tanto nas temáticas das letras, quanto na linguagem harmônica e melódica, é de Roberto Carlos que o Raça Negra mais se aproxima. Uma música pop romântica com “cara” de formação de samba (alguns instrumentos, como pandeiro e surdo) e gafieira, espécie de “marcas” periféricas que não podem ser abandonadas – por diversas razões, inclusive pelo nosso bem conhecido padrão de invisibilidade do racismo brasileiro, o grupo jamais poderia ser uma banda de pop rock como Barão Vermelho, ou Lulu Santos. De todo modo, o Raça Negra atualizava para a juventude da época, e em especial para a periferia negra, o modelo estético consagrado na linhagem romântica brasileira, aliado a certo swing samba rock e levada soul. Ou seja, uma espécie de Jovem Guarda de periferia. Curiosamente, a novíssima geração indie ao recuperar a sonoridade do Raça Negra como estilo cult (cujos resultados estéticos são ainda piores que o original, como podemos conferir no vídeo abaixo) foi quem melhor compreendeu que o Raça Negra nunca foi ou quis ser samba.

Obviamente o Raça Negra se concentra em um campo extremo do espectro do pagode, caso tracemos uma linha imaginária pensada em termos de afastamento ou aproximação com o “samba” (que por si só é também um significante bastante múltiplo e aberto). De fato, o termo “pagode” abarca os mais diversos padrões sonoros, desde artistas mais ligados ao formato tradicional da roda de samba (como Sombrinha, mais partideiro, e Jorge Aragão, espécie de compositor “moderno” de samba-canção) até rock, sertanejo, pop romântico, e música “infantil” de duplo sentido. Como defendi anos atrás em outro artigo, existe um modelo chave de pagode que pode ser definido como espécie de pagode-0 dos anos 1990, cuja base é uma levada de samba ao qual se acrescentam sonoridades diversas (acredito que o grupo que segue esse padrão de forma mais fiel seja o Exaltasamba). A partir desse padrão fictício podemos traçar uma linha também fictícia em relação a proximidade maior ou menor do modelo de samba de mesa, um espectro amplo que engloba de Fundo de Quintal e Almir Guineto até Katinguele e Os Travessos.

No interior desse amplo conjunto de variações, talvez o grupo que mais tenha arriscado, com resultados por vezes bem surpreendentes e interessantes (apesar dos diversos problemas), seja o Art Popular, responsável por algumas das canções que melhor sobreviveram no interior do gênero. Desses, talvez os discos mais interessantes sejam, por razões distintas, o Canto da Razão – primeiro trabalho do grupo – e o Samba Pop Brasil I.

O pagode tropicalista do Art Popular

1993 – O Canto da Razão (RDS/Kaskata’s)

O primeiro álbum do Art popular é o Canto da Razão, de 1993. Nele ainda prevalecem os arranjos ligados ao formato de samba de mesa, em cujo centro está uma pegada extraordinária de cavaco e banjo, além do canto coletivo típico de roda. Para quem gosta de pagode mais próximo da formação clássica difundida em disco por grupos como Fundo de Quintal e Beth Carvalho, esse é um dos discos mais interessante do estilo nos anos 1990 – cujo modelo será recuperado no trabalho de grupos como Revelação, anos depois. O disco traz desde partidos clássicos (Canto da Razão, Zé do Caroço) até pagodes românticos mais polidos (Oa Oa, Utopia), sem os exageros típicos do gênero, no qual o próprio Art Popular irá recair por diversas vezes) passando por grooves interessantes (O Beco). A centralidade da formação “clássica” da roda de samba (sem a presença massificadora do teclado, como no Raça Negra) deixa o disco com uma pegada mais enxuta, que faz muito bem para o conjunto. Em termos de sonoridade, as canções alternam entre a pegada partideira e o romantismo pagodeiro, como alguns momentos um pouco mais fora do convencional. O álbum encerra com duas canções excelentes: “Teu Cheiro”, que lembra muito as canções do Grupo Raça (cuja sonoridade é bem marcante nesse disco) e a excepcional “Zé do Caroço”, composta por Leci Brandão e que mais recentemente ganhou uma versão intimista feita pelo Seu Jorge. Trata-se de um excelente disco de pagode ligado ao formato de roda de samba, já com momentos importantes de variação na sonoridade.

1995 – Nova Era (EMI)
1996 – Temporal (EMI)

Mas será a partir do trabalho seguinte, Nova Era, que o grupo começa a apostar em sonoridades diversas, experimentando com o formato do estilo. Desde a primeira canção (“Levada da Onda”), o disco já apresenta uma mudança clara de direcionamento (no caso, pela pegada do banjo), apesar de serem mantidas as características gerais de formação de roda de samba. O resultado contudo soa bastante desigual, como um típico disco de transição entre o padrão do primeiro e o modelo (mais ousado) que os consagrariam nos anos 1990.

A partir de Temporal, de 1996, o Art Popular inicia verdadeiramente a sua jornada por uma Nova Era do pagode, rumo ao estrelato, que insatura um modelo até certo ponto “tropicalista” no pagode de São Paulo, com altos e baixos. “Vestida de Doida” se destaca pela mistura muito bem realizada – surpreendente até hoje pela organicidade – de pagode romântico com música flamenca, assim como a boa versão de “Manoel”, do Ed Motta. A brincadeira infantil-maliciosa de “Pimpolho” tocou até os limites do suportável, mas pode ser ouvida hoje com mais interesse, com seu violão que remete a batidas tradicionais do interior de São Paulo (como a Catira), reforçado pela interpretação que acentua o sotaque “caipira”. Também se destaca a interessante mistura de pagode com uma batida que remete as toadas de boi (em formato pop, como as canções do grupo Carrapicho) proposta em “Vermelhão”. Mas o grande sucesso do disco foi “Temporal”, um dos maiores hits-chiclete dos anos 1990 e uma das canções mais passionais do estilo, com sua chuva de vogais prolongando-se por quatro (longuíssimos) compassos. O disco, contudo, apresenta diversas canções de baixo nível e soluções excessivamente clichês, como o soul açucarado de “Um Auê com você” ou a desnecessária “Papai do Céu”, entre outras.

1997 – Sambapopbrasil (EMI)

Com Samba Pop Brasil I, de 1997 o grupo apresenta seu resultado esteticamente mais consistente , assumindo definitivamente que o samba não é sua base, mas apenas uma entre tantas outras possibilidades de linguagens sonoras. Trata-se sem dúvidas de um dos trabalhos mais ousados e interessantes no campo do pagode romântico paulista, que apresenta uma evidente melhora na produção das canções, deixando mais claro as propostas de mistura sonora (o que se explica talvez pelo sucesso de vendas de grupos bem produzidos como Só Pra Contrariar, cujo disco de 1997 havia vendido mais de três milhões de cópias, e onde mal se sente a influência do samba). O disco começa com uma bem realizada mistura de pagode com sertanejo (“Fricote”) com a participação da dupla sertaneja João Paulo e Daniel, então em alta. Na sequência “Requebrabum” apresenta um modelo nada convencional de samba rock (eletrônico?), com acompanhamento (centralidade no dedilhado do cavaco), letra e, principalmente, vocais em tudo destoante do mainstream. Uma canção interessantíssima e de qualidade, cujos precedentes são difíceis de reconhecer. “Encontro” é uma canção romântica típica pagodeira que não compromete. Já em “Pétalas de Rosa”, a forma como o acompanhamento é disposto pela canção, sobreposto ao coral – primeiro com o violão e na segunda parte com o piano – funciona muito bem até a boa transição para a levada pagodeira mais tradicional. Cabe também destacar o trabalho vocal do disco, influenciado pelo soul americano (ainda é preciso fazer um levantamento sério sobre a influência de Earth, Wind and Fire na música brasileira).

Mesmo as canções que seguem o modelo de “pagode de mesa engraçadinho” apresentam inovações interessantes em termos de arranjo como a guitarra em “Bota a Calça” ou a linguagem de “Tomateira”, que certamente teria base eletrônica se fosse gravada hoje. Canções mais clichês como “Meu anjo” são sustentadas por arranjos que funcionam muito melhor nesse disco, sobretudo por serem mais adequados às exigências das próprias canções do que aos clichês do estilo. O disco inclusive se dá ao luxo de revisitar modelos de pagode mais antigos, estilo Agepê, (“Mensagem de Revista”) e sucessos da própria carreira com convidados de peso (Jorge Aragão, Leci Brandão, e Alcione) em um dos melhores e mais ambiciosos pout pourris de pagodes gravados nessa década – justamente em um disco onde a presença do samba de mesa se faz mais distante, para bem da sonoridade geral da obra. Contudo, convém esquecer completamente a fraquíssima tentativa de flerte com o rap (“Noite Fria”), com participação do Thaíde, e que vale mais pelas boas intenções do que pelo resultado, e outros momentos ruins, como “Sol e Chuva”. De todo modo, Sampa Pop Brasil é um dos discos de pagode dos anos 1990 que melhor sobrevivem a audição nos dias de hoje. Em grande parte por ter se afastado da linguagem do samba, em busca de um caminho próprio.

1999 – Samba Pop Brasil II (EMI)

Na trajetória do grupo nos anos 1990 cabe ainda destacar alguns momentos do disco seguinte, o mal resolvido Samba Pop Brasil II, que propõe uma mistura pouco cuidadosa de gravações ao vivo e de estúdio que não funciona tão bem, além de não aprofundar nos caminhos mais interessantes propostos pelo trabalho anterior. De todo modo, destacam-se a ousadia da mistura das baterias do Salgueiro com a do Olodum em “Mata o Papai” – cujo resultado mataria Caetano Veloso de inveja – e um espetacular pagode gospel (“Aleluia”), gravado ao vivo em uma igreja do Harlem, com a participação apuradíssima de um coral gospel.

Infelizmente o trabalho do grupo não criou escola digna de menção, e nem o próprio Art Popular seguiu sua interessante linha de investigação sonora, provavelmente porque o dinheiro acabou, juntamente com as grandes gravadoras. De todo modo esses trabalhos – sobretudo Canto da Razão e Samba Pop Brasil – são muito bem realizados e destacam-se em meio as fórmulas padrões que se repetem no universos do pagode romântico paulista. Mais uma prova de que vale a pena repensar a sonoridade dessa época, de modo a recontar essa parte da nossa história de uma maneira mais apropriada.

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