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Questões em torno do Nobel do Bob Dylan

Devo confessar que de início essa questão do Nobel do Dylan me interessou bem pouco. Afinal, até o Obama levou um Nobel da paz, e eu não sou propriamente um grande fã de folk music. Assim como para Caetano Veloso, em termos de voz e violão João Gilberto mexe muito mais comigo, e considero que as “versões nacionais” do Bob Dylan – como o Zé Ramalho e o Belchior – já são suficientemente geniais.

Isso não significa que eu não reconheça seus méritos e sua importância no interior da música pop internacional. O crítico e pesquisador argentino Diego Fisherman defende que o que de mais importante ocorreu na música pop a partir dos anos 1960 é o que ele denominou de “Efecto Beethoven”: basicamente, o movimento de migração dos conceitos de complexidade e experimentalismo do campo da música erudita para o da música pop, tornando improdutivas, quando não completamente inúteis, as tentativas de diferenciá-los em determinados casos (como no melhor prog, ou no jazz rock). É relativamente simples perceber que um movimento similar acontece em relação as letras das canções que se aproximam de paradigmas literários (inclusive com poetas que se arriscam pelo campo da canção), e nesse campo a obra de Bob Dylan é incontornável. Como se diz, Dylan é um dos grandes responsáveis por fazer a música pop deixar a adolescência e entrar na “vida adulta” (ou pelo menos em certo tipo de vida adulta, pois a maturidade que se alcança via James Brown é de um tipo completamente diferente, daquele que jamais ganharia Nobel) completando seu circuito rumo a uma autonomia possível dentro de seu próprio campo. Pode-se dizer que o “bardo de Minessota” representou para o pop internacional aquilo que João Gilberto representou para o pop made in Brasil.

De todo modo, conforme avançavam os debates em torno da premiação, meu interesse foi progressivamente aumentando, sobretudo a partir de discussões que não tratavam tanto do prêmio em si (se foi merecido ou não), mas de assuntos tangenciais significativamente mais “densos”: as relações complexas entre literatura e canção; o quanto essa premiação deve ser considerada um gesto progressista de abertura, ou apenas mais um movimento da pós-modernidade liberal para quem diferenças radicais não interessam; a quem interessa manter fronteiras rígidas separando música e literatura, e a quem interessa que elas deixem de existir; o posicionamento blasè do próprio Dylan, em sua mistura de coerência e pose calculada, etc. Em suma, tais discussões e rodas de conversa, mais o texto do Lucius Provase sobre o tema, me animaram a escrever esse texto cheio de perguntas sem resposta.

Um esclarecimento inicial

Antes de apresentar as questões propriamente ditas, creio ser interessante delimitar um pouco o campo do debate em que elas se inserem. Pois em geral as discussões a respeito da premiação de Dylan têm sido marcadas pela polarização: de um lado estariam os “conservadores” contrários a premiação única e exclusivamente pelo desejo retrógrado de preservar o valor da “alta” literatura; de outro, a posição “progressista” daqueles para quem a literatura é essencialmente livre, não cabendo em rótulos e prisões que, para os primeiros, seguem organizando o sistema. Mas será que as tentativas de delimitar as especificidades do campo literário são necessariamente essencialistas e conservadoras? Não seria de se imaginar que uma instituição que outorgue um prêmio literário possua em maior ou menor medida alguns critérios de delimitação de seu objeto? As vezes são as intenções progressistas de ampliação do conceito de literatura que podem conter traços de essencialismo, por melhor que sejam as intenções. Como exemplo gostaria de citar o caso do debate em torno de um artigo clássico de Antônio Candido, “O direito a literatura”, publicado originalmente em 1988.

Em linhas gerais, Antônio Candido nesse texto define a literatura de forma bastante ampla (como “fabulação”), reivindicando a difusão da literatura canônica como direito humano fundamental, por seu “valor educacional e de formação crítica”. Evidentemente, o caráter progressista da proposta consiste no seu pressuposto de ruptura com as condições sociais de um país no qual a maioria da população mal sabe ler e escrever. Trata-se de um posicionamento em defesa do desenvolvimento das instituições democráticas nacionais, a partir dos campos da cultura e da educação. Não por acaso o artigo se tornou “canônico” logo após sua publicação, posto que em grande parte coincide politicamente com alguns ideais basilares das universidades públicas.

Em um ensaio de 2006 denominado “Além da Literatura”, o professor Marcos Natali apresenta uma interessante crítica ao artigo em questão. Segundo o autor, o argumento de Candido apresenta certo deslize conceitual que, no limite, problematiza sua concepção universalista do literário. Em alguns momentos a noção de “literatura” parece abarcar de forma praticamente irrestrita a criação poética e ficcional de todo e qualquer grupo social. Em outros ela aparece de forma muito mais fechada e restrita, coincidindo com os limites mais estritos da chamada literatura erudita. De modo que se no inicío do ensaio a “literatura” aparece no primeiro sentido, como algo da ordem das necessidades fundamentais do homem, logo na sequência o tipo de literatura que deve ser difundida para todos é a do segundo tipo. Ou seja, a literatura é o que nos humaniza a todos, mas existem literaturas mais literárias do que outras.

Incluir socialmente coincide, pois, com a integração de todos no âmbito dos valores da chamada cultura erudita. Trata-se, segundo Natali, de uma visão essencialista da literatura, que faz do paradigma europeu um modelo universal, que deveria ser adotado por todos. Note-se que não se trata de uma crítica a certo posicionamento elitista de Candido – a democratização do ensino é uma pauta decisiva –, ou a ideia de que não precisamos de literatura porque a cultura está muito bem, mas uma crítica a certa universalização do ponto de vista europeu sobre o valor da literatura escrita, tornado paradigma incontornável. As reflexões de Natali, mais ligadas ao paradigma pós-colonial, caminham no sentido de questionar se não seria o caso de situar-se para além da literatura, recusando a sua pretensa universalidade:

“Chamar de literatura ou ficção o que é outra coisa seria, portanto, uma forma dessa violência tradutora que abafa a diferença contida naqueles horizontes conceituais que incluem outras formas de entender a relação com os objetos verbais, a representação da realidade e o lugar do sujeito humano na criação e recepção de textos”.

Marcos Natali, 2006, p. 42

No limite, trata-se de reconhecer que talvez literatura e justiça caminhem em campos opostos. Para Natali, portanto, a verdadeira tarefa do campo progressista consiste não em levar valores e instituições europeias para todos os povos, e sim valorizar o que as diferentes linguagens possuem de particular. Nem que para isso seja necessário recusar a própria concepção de literatura.

Por outro lado, a pesquisadora Marília Librandi-Rocha apresenta uma terceira proposta de articulação entre literatura e justiça (ou direito), partindo de uma leitura primorosa da carta de suicídio coletivo dos Guarani Kaiowa. Para a autora, aproximando-se de concepções da antropologia, não se trata nem de adotar o paradigma europeu como modelo literário, nem de recusá-lo em nome de outra coisa. Antes, deve-se incluir essa carta no cânone literário do país como uma espécie de anti-carta de Caminha. Ao fazer isso sua leitura aproxima das concepções de Viveiros de Castro, para quem o índio não é um ser para além (ou aquém) da modernidade, mas se (in)define em relação a ela (ao que Natali poderia responder: não seria justamente esse o lugar para além da literatura?). Nesse sentido não se trata de recusar o cânone em nome de um espaço outro, mas de ressignificar o cânone de modo a fazer emergir a série de vozes silenciadas.

Esse debate a respeito dos significados do literário (nesse caso, a respeito das relações entre literatura e justiça) nos interessa na medida em que demonstra não poder ser reduzido a fórmulas simplistas binárias (progressista x conservador, radical x reacionário, coxinha x petralha). Nesse caso, todas as diferentes concepções de literatura partilham de um horizonte progressista em alguma medida (educação formal para todos, crítica a concepção eurocêntrica de cultura e ressiginificação da própria concepção de literatura brasileira), com seu próprio conjunto de problemas. Para Natali, trata-se (talvez) de abandonar o horizonte democrático que garante a própria literariedade tal como a re-conhecemos, o que provavelmente soaria temerário para Candido, uma vez que a não constituição de instituições é um problema real no país. Já para Librandi-Rocha, o problema dessa instituição é sua forma pouco inclusiva, que deve ser subvertida, mas não abandonada.

Ao invés, portanto, de assumir um ponto de vista absoluto nesse caso, talvez seja interessante seguir a formulação mais cuidadosa do professor e poeta Alcides Vilaça: “numa canção pode haver um poema? Se houver, pode”. Afinal, afirmar que a literatura pode ser muitas coisas não significa necessariamente que muitas coisas possam ser literatura: tais processos implícitos de exclusão são o começo e não o fim do problema. Pois o grau de generalidade contida nessa afirmação também produz seus próprios silenciamentos como, por exemplo, a aparente neutralidade que encobre se o sujeito da enunciação está, no fim das contas, ao lado da “literatura” ou das “muitas coisas”.

Na sequência, vejamos alguns dos argumentos mais comuns em relação ao prêmio.

“O Nobel conferido a Bob Dylan foi um gesto radical da academia Sueca”

A despeito de toda polêmica em torno da questão, a escolha de Dylan para receber o prêmio não deixa de ser, até certo ponto, bastante óbvia. Dentre todas as alternativas possíveis para “ampliar” o já consideravelmente amplo conceito de literatura de modo a incluir a canção popular, poucos nomes poderiam ser tão convencionais. Seria mais ou menos como se escolhessem o Chico Buarque no caso de uma premiação brasileira (e aqui entraríamos em outra questão bem interessante, pois em certo sentido Chico Buarque facilitou a vida dos críticos quando resolveu publicar romances, demarcando claramente uma separação entre sua carreira como cancionista e como escritor. Assim o espetáculo se mantém em plena ilusão de “normalidade”, pois ninguém precisa explicitar o desejo já antigo de premiar literariamente suas canções – basta conferir o prêmio para o escritor, que o cancionista é contemplado de tabela. As fronteiras, artificiais ou não, são assim mantidas sem maiores discussões). A eleição de Bob Dylan causa burburinho, mas não propriamente espanto, pois há séculos ouvimos dizer que o artista “é um verdadeiro poeta”, e sua indicação há muito era cogitada em tom de brincadeira. Como foi dito por uma crítica norte-americana no The Guardian, a vitória da escritora negra Toni Morrison nesse sentido é muito mais radical do que o mainstream pop representado pelo Dylan (“apenas mais um autor macho e branco”). Ou, como disse Breno Longhi, o prêmio para Dylan é evidentemente também um prêmio geracional, que coroa a ex-juventude radical, agora mainstream – mais ou menos como aconteceu com o Tropicalismo, coroado com o ministério de cultura. Para a canção, pode representar mais uma das tantas formas de monumentalização.

“A literatura tem algo a perder com a atribuição do prêmio a um cancionista”

Não deixa de ser interessante que boa parte dos comentários favoráveis ou contrários a premiação se posicionasse “ao lado” do literário: os que eram contrários ao prêmio pensavam no que a literatura (e os escritores “de verdade”) poderia vir a perder com essa abertura, independentemente da qualidade do Dylan, e os que eram favoráveis exaltavam as qualidades literárias de suas composições. É verdade que em se tratando de um prêmio de literatura seja natural que se assuma essa perspectiva. Mas não deixa de ser um exercício interessante inverter temporariamente o ponto de vista, posicionando-se “ao lado” da música popular, posto que esse movimento permite que se apresente um conjunto novo de questões. Ao invés de nos perguntarmos pelo que perde a literatura com tal aproximação, poderíamos nos questionar se a música popular também perde algo ao ser generalizada enquanto mera variação do literário.

Talvez seja interessante lembrar outros momentos em que esse debate já antigo sobre relações entre literatura e canção esteve na ordem do dia. Em meados dos anos 1970 a revista Homem organizou um debate com alguns dos grandes nomes da MPB de então – Chico Buarque, Aldir Blanc, Edu Lobo, Caetano Veloso, entre outros. Músicos em alguma medida ligados ao ambiente universitário e para quem as relações entre cultura popular, erudita e de massas estava na ordem do dia (para José Miguel Wisnik uma das conquistas dessa área da música popular foi justamente a criação de uma zona de múltiplas inflexões em que as delimitações rígidas entre erudito e popular deixam de fazer sentido). Em dado momento da entrevista, apresentou-se precisamente a questão das relações entre letra de música e poesia, com alguns defendendo a validade da aproximação, sobretudo em termos de qualidade, e outros (como Chico Buarque) defendendo a diferença com relação ao modo de organização de cada campo.

É nesse momento que Caetano Veloso faz uma intervenção que inverte a equação de maneira abrupta e muito interessante: afinal de contas, porque é que quando fulano é um letrista excepcional, os discursos de atribuição de valor imediatamente o deslocam para o campo literário? Um letrista excepcional não pode continuar sendo “apenas” um letrista? Quando essa condição passa a ser insuficiente? Nessa lógica parece não ser possível que existam canções com letras de grande complexidade, pois estas imediatamente passam a ser vistas como “literárias”. Em certo sentido, considerar que seja um elogio a classificação de Dylan como um grande poeta é ainda uma forma de considerar a literatura enquanto lugar de superioridade, como se a música popular precisasse das bênçãos da Alta Cultura.

Invertendo o juízo, podemos assumir que o Nobel conferido a Dylan é problemático não porque a literatura perderia algo de sua essência (como sugerido em algumas críticas), e sim porque a literatura estaria apropriando-se das qualidades de um grande compositor de canções, como se tudo o que fosse bom no reino das palavras tivesse de ser, necessariamente, literário. Nesse sentido, a música popular teria muito mais a perder com essa aliança do que a literatura (evidentemente que o movimento é ambivalente, pois esse gesto de abertura oculta um forte traço de fragilidade de certa literatura contemporânea). Pois ainda que atualmente a canção tenha adquirido grande prestígio, de modo que praticamente ninguém negue sua capacidade de produzir grande arte, para certa parcela do pensamento intelectual (ligado sobretudo ao ambiente institucional universitário) esse gênero ainda ocupa uma posição “subalterna”, ou amadora. Para ficarmos apenas no caso brasileiro, é ainda muito difícil encontrar cursos ou mesmo cadeiras voltadas para o estudo da canção popular, sobretudo se compararmos com a presença maciça dos cursos de Letras. Nesse sentido, afirmar que aquilo que artistas como Caetano Veloso ou Chico Buarque fazem é “literário” não deixa de ser uma forma de prolongar o desconhecimento crítico a respeito da especificidade da música popular. Não se trata, pois, de ampliar os horizontes da literatura, mas de estreitá-los enquanto espaço de desconhecimento.

Ainda partindo dessa perspectiva tendenciosamente “ao lado” da canção, poderíamos nos perguntar não por aquilo pelo que a literatura “perde”, mas por aquilo que ela tem a ganhar com essa aproximação (nada é de graça nesse mundo, muito menos premiações de visibilidade internacional). Ou, para sermos mais precisos, pois é disso que se trata: o que o Nobel tem a ganhar colocando Bob Dylan em seu balaio? Façamos um teste rápido: quantas pessoas saberiam dizer quem é Svetlana Aleksandrovna? Ou Patrick Modiano? Quem saberia mencionar o título de pelo menos um de seus livros? A maioria das pessoas, inclusive esse que vos escreve, é incapaz de responder a essa pergunta sem a ajuda dos universitários, que provavelmente ajudariam pouco. Contudo, esses autores estão longe de serem ilustres desconhecidos. Na verdade, são os dois últimos vencedores do prêmio, o que demonstra o quanto a popularidade deste, mais do que dos escritores – que nunca dependeram de prêmios literários – anda em baixa. O Nobel de 2016, por outro lado, será facilmente lembrado por muita gente, inclusive por aqueles tantos que “não gostam de ler”. O evento volta assim a ter relevância e visibilidade, likes e memes. Ao que tudo indica, não é Dylan que precisa do Nobel, e sim o Nobel que precisa de Dylan. Confete para tempos de hegemonia pop, quando se torna cada vez mais difícil marcar qualquer separação radical entre a literatura e outras mídias, o que não deixa de ser problemático por sua vez.

Nesse sentido, o Nobel para Dylan não é uma espécie de sinal de que as coisas estão mudando para um modelo mais igualitário que tende progressivamente a abolir antigas hierarquias. Dificilmente pode-se sustentar que o prêmio possui qualquer caráter progressista (não custa lembrar que o Nobel da Paz já foi para o chefe de Estado do país mais belicista do planeta), e se foi conferido a um nome “menos convencional” como o de Dylan, há que se desconfiar que as antigas distinções há tempos vêm sendo substituídas por outras. Nesse sentido pode ser interessante pensar sobre as formas como a ampliação liberal das fronteiras literárias convive pacificamente com velhas e novas formas de exclusão.

“Defender a diferença entre canção e literatura é um gesto conservador”

Em geral, aqueles que defendem que a canção possui tantas qualidades quanto a literatura (entre os quais me incluo) e que reconhecem que Dylan “merece” o Nobel tanto quanto qualquer outro escritor (se é de merecimento que se trata), tendem a desconsiderar muito rapidamente os argumentos contrários, que nem sempre estão falando em nome de uma pretensa supremacia do campo da alta cultura sobre a cultura de massas – argumento utilizado por círculos cada vez menores, diga-se de passagem.

De todo modo espera-se, caso levado a sério, que uma instituição que concede um prêmio literário para um compositor de canções ao menos leve em consideração estudos densos como os de Luiz Tatit (e tantos outros), que há anos desenvolve um rigoroso método de análise baseado justamente no princípio de que letra de canção não é poesia, pois as regras de organização harmônicas e melódicas, em consonância com o padrão entoativo da linguagem, criam necessidades próprias. Para Tatit, um compositor como Vinicius de Moraes teve de “desaprender” a fazer poesia para conseguir fazer letra de música direito. E nisso não está nenhum demérito para a canção, muito pelo contrário: apenas se trata de um artesanato diferente que não pode ser julgado a partir dos mesmos termos (e mesmo os defensores mais ferrenhos do prêmio concordam ao menos em parte com essa ideia, afinal, a simples imagem de um poeta recebendo um Grammy como grande cancionista – “Drummond letrista do ano” – soa absurda, sinal de que existe algo de irredutível nessa linguagem). Diga-se de passagem, o semioticista oferece um excelente exemplo de como a delimitação de fronteiras entre canção e literatura pode assumir dimensões mais progressistas que o movimento contrário, mesmo porque no caso brasileiro o movimento mais comum em pesquisas acadêmicas – que vem gradualmente mudando – é ainda subordinar a linguagem cancional a outros campos, como a música e a literatura, tornados assim parâmetros de qualidade. O método analítico de Tatit obriga-nos a sair dessas zonas de valorização pertencentes ao campo da alta cultura, chegando a resultados extraordinários em termos de reconhecimento da especificidade da canção.

Note-se que a questão não se resolve apenas com a justificativa apresentada pelo próprio Nobel, ao evocar como antecedentes de Bob Dylan modelos literários vinculados a tradição oral, como a epopeia homérica ou o cantar dos trovadores. Pois como foi bem dito por Lucius Provase – para quem a posição da voz é um aspecto decisivo para demarcar diferenças entre canção e literatura – em um excelente texto sobre o tema, não se deve desconsiderar a historicidade própria ao conceito de literatura:

“Dito de outra forma, falta ao argumento [de que a poesia teria sua origem nos trovadores] justamente a historicidade que ele diz possuir. Desconsidera-se, por exemplo, que a literatura, tal como a entendemos é uma instituição do século XVIII. Dessa maneira, o que chamamos de poesia descolou-se de suas origens e passou a ter um funcionamento autônomo, em um campo simbólico autônomo, deslocado de suas práticas “originais”. Dizer, como argumento histórico, que a canção é uma volta aos trovadores, também é deslocar para uma completa ahistoricidade a própria canção. Isso porque seu funcionamento, da canção, também é distinto, simbolicamente, do que era o dos trovadores”.

LUCIUS PROVASE

Acredito ser um posicionamento importante, sobretudo para aqueles que celebraram o prêmio por aquilo que representa em termos de velhas hierarquizações, questionar-se sobre as razões de uma premiação conservadora como o Nobel não encontrar grandes problemas em romper com tais distinções. Para ficar em território nacional, é possível dizer que já faz um bom tempo que no campo da musica popular a elite econômica deixou de pautar seu gosto por meio de critérios de distinção (tirando a “esquerda Aquarius”, ainda ligada em alguma medida a esferas mais humanistas de capital cultural). Playboy faz balada com funk, sertanejo e forró, que são bem melhor pra “putaria”. Ou seja, já faz tempo que não é o jazz, ou a MPB dos anos 1970 que animam festas de elite. Cabe, pois, perguntar seriamente sobre as oportunidades perdidas nessa passagem de certo “elitismo popular” para o “imperativo do gozo” contemporâneo, que provavelmente não se deu da maneira imaginada pelo inconformismo da geração de Bob Dylan.

“O que Dylan faz pertence exclusivamente a esfera da canção”

Mesmo levando-se em consideração esse conjunto de fatores, dentre os inúmeros outros possíveis, a questão sobre os limites do literário está anos luz de se resolver de maneira simples. Sabe-se bem que não foi por falta de tentativa que os esforços por uma definição precisa da literariedade fizeram água ao longo das décadas. Os russos passaram perto, mas logo perceberam que o estranhamento era vanguardista demais para dar conta da multiplicidade da coisa. E mesmo que fiquemos com a definição de literatura tal como delimitada no século XVIII, será que podemos sustentar com segurança que ainda estamos sob os mesmos princípios? Ou as chamadas estéticas pós-modernas se especializaram em criar formas de romper com distinções rigorosas, de tal modo que insistir por aí é levar a um buraco sem fundo? Afinal, parte das discussões literárias mais interessantes que temos hoje em dia trata precisamente daqueles gêneros híbridos em que as fronteiras entre literatura e outros campos não estão claras, como os relatos de testemunhos de catástrofes históricas. Ora, se os caminhos da crítica e da própria arte parecem questionar seus limites estritos, não seria legitimo premiar esses esforços? Essas perguntas estão longe de ser meramente retóricas, pois fazem parte do conjunto de questões em aberto a partir de toda essa discussão.

Obviamente, mesmo entre os mais radicais defensores da necessidade de se estabelecer critérios específicos para cada campo (pois não reconhecer a especificidade da música popular conduz necessariamente a atribuições de valor a partir de outros campos, posto que critérios de valor jamais deixarão de existir), sabe-se que não existe pureza possível. São muitos os exemplos de intersecção entre as artes, e no campo da música popular não é diferente. Ainda assim cabe perguntarmos se Bob Dylan é um artista que pensa criticamente as várias formas de intersecção entre literatura e canção, organizando formalmente sua obra para promover esse diálogo. Ou seja, será que essa questão da inter-relação entre os gêneros é pensada esteticamente pelo compositor, de modo que possamos dizer que a busca pela literariedade na canção é um dado estrutural de sua estética? Sobre essa perspectiva, creio ser necessário levar em consideração alguns aspectos importantes.

O primeiro ponto é a aproximação de Dylan dos ideais da geração beat – uma espécie de punks (ou hippies) literários. Um dos efeitos almejados por artistas como Jack Kerouac e Allen Ginsberg foi retirar a literatura de seu pedestal, podendo-se daí presumir que um talvez um dos resultados desse gesto tenha sido a difusão de características literárias para outros meios, como a canção. Nesse sentido talvez possamos considerar as letras de Dylan como um momento máximo de realização desse ideal de rompimento com gêneros e, portanto, um coroamento dos ideais dessa geração (ainda assim, a institucionalização via Nobel seria mais um problema que algo positivo).

Em segundo lugar, retorno a questão da obviedade do prêmio levantada no início. Uma das percepções de Luiz Tatit em relação a canção é que, em geral, o que rege a sua lógica é o equilíbrio. Portanto, canções que são mais entoativas (ou seja, mais próximas à fala), tendem a chamar mais atenção sobre o conteúdo do que é dito\cantado – diferente daquelas que são mais melódicas, que chamam atenção para os estados subjetivos do sujeito (alegria, tristeza, etc). Portanto a opção de Dylan por um padrão mais entoativo de canto pode implicar em uma escolha que talvez revele (aqui seria necessário investigar melhor) uma subordinação das relações melódicas e harmônicas ao modo de estruturação da letra, o que por sua vez poderia indicar uma percepção mais “literária” do modo de composição. Contudo é importante reconhecer que mesmo nesse caso existe um trabalho melódico bem evidente em suas composições, que colabora de maneira incontornável com a construção dos sentidos de suas canções. Além disso, como foi dito por certa reportagem americana, não é possível desconsiderar o uso do timbre feito pelo cantor (e o mesmo acontece com Zé Ramalho, Belchior e, em sentido diverso, Chico Buarque e João Gilberto). É quase como se o timbre “esquisito” do cantor forçasse o ouvinte a esperar pelo conteúdo das letras, o que é uma estratégia deliberadamente pensada para fazer sobressair os conteúdos das letras.

Contudo, podemos pensar que essa é também uma característica marcante da literatura de tradição oral, ainda praticada atualmente – pois os critérios literários construídos a partir do século XVIII para se pensar a tradição escrita não fizeram com que formas mais antigas de literatura oral deixassem de existir, o que leva a um último questionamento: se de fato parece possível (e mesmo desejável) estabelecer distinções mais ou menos claras entre canção e poesia escrita, o mesmo talvez não se possa dizer das distinções entre canção e literatura, um campo bem menos restrito, incluindo suas inúmeras subdivisões (literatura oral, popular, marginal, feminina, negra, etc). O Nobel poderia (ou deveria) premiar literatura oral, onde a voz é um componente decisivo, ou algum representande da literatura popular (cordel, por exemplo)? Nesse caso, porque não premiar canções? Sendo assim, talvez possamos considerar que um gesto muito mais radical seria a premiação de um cordelista, ao invés de um Bob Dylan já cansado de tanta badalação.

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