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Onde está a utopia de Lalaland?

La La Land foi indicado para cerca de trezentos Oscars e deve ser responsável por uma avalanche insuportável de musicais bem piores do que ele. Diante do filme, talvez o primeiro impulso (viciado, é bom que se diga) seja reconhecer um processo ideológico clássico de “fuga do real”: os EUA de Trump são um pesadelo tão horrível (mesmo pra quem votou nele porque gosta da carnificina) que o “sistema” de massas decidiu louvar um filme criado para “ocultar” essa realidade, voltando-se para a época de ouro do cinema hollywoodiano. Contudo, as coisas não são assim tão simples, pois o próprio filme em diversos momentos assume certo tom de distanciamento, reconhecendo para si que existe algo fake nesse movimento de retorno ao passado (que, no mais, nem o mais fanático hipster engole de fato), o que não o torna necessariamente mais crítico, mas certamente mais cínico. Acredito que o conteúdo ideológico do filme esteja em outro lugar.

Um primeiro aspecto importante desse distanciamento pode ser interpretado a partir do fato de La La Land ser um musical em que os protagonistas mal sabem cantar nem dançar. É sério: nem pra final da dança dos famosos eles iriam. E isso isso não é um problema para o filme, ao contrário, faz parte do seu charme. Esse ponto já o coloca distante dos clássicos de Gene Kelly e Fred Astaire (e mesmo daqueles em que os protagonistas não dançavam, mas o corpo de bailarinos sim) e nos oferece uma pista de que o ponto principal do filme não é o musical em si, e sim a possibilidade de reproduzir digitalmente um musical. Por isso a técnica é tão ostensiva (e os prêmios nessas categorias serão merecidos). É menos o passado glorioso que se celebra, e mais as possibilidades presentes de recriá-lo digitalmente. Uma celebração da tecnologia, o que de fato dispensa o talento humano. Volta-se para o passado, mas com pleno orgulho de si no presente, louvando a superioridade da computação gráfica frente a época gloriosa – e dispendiosamente exagerada – dos grandes estúdios. A nostalgia é sincera, mas o gostinho de vitória também. É claro que não se trata de nenhuma novidade, pois já tem algum tempo que esse é um dos padrões ideológicos hegemônicos: bandas que soam como antigamente, seriados que parecem os de antigamente, instalações que recuperam técnicas de antigamente… Sem perspectivas para o futuro, fundamental para a manutenção do mesmo, o discurso volta-se para o passado, que para ser melhor consumido deve ser devidamente esvaziado de conteúdo. Vemos isso em obras boas e ruins.

Outro distanciamento importante, que demonstra o quanto que a coisa esta´feia, é que ainda que seja uma clássica comédia romântica (com todos os defeitos que isso implica), a utopia principal do filme não é o amor. A verdeira utopia sustentada aqui, e que ao mesmo tempo é o ponto mais irreal do filme (mais irreal do que pessoas voando e dançando do nada), é a possibilidade de se conseguir um bom trabalho e ser feliz com ele. Nesse ponto o filme sustenta uma ambiguidade ideológica fundamental (lembrando que o papel de toda ideologia é realizar suturas em sentidos contrastantes e ambivalentes). De uma lado, ele é absolutamente irrealista, pois mesmo ideologicamente sabe-se que essa possibilidade é cada vez mais inexistente. Como sustenta Silvia Vianna em seu livro sobre reality shows, a nova ética do trabalho remete aos campos de concentração, e consiste em se entregar de corpo e alma aquilo que se detesta e nos amesquinha. Ou seja, trabalho nada tem a ver com felicidade, e ninguém mais defende isso a sério (tirando talvez, empresas com motivações à esquerda, como escolas construtivistas, que sugam seu sangue por um bem maior). Felicidade é dinheiro no bolso. Por outro lado, o filme é também realisticamente cínico, pois assume de vez que entre a possibilidade do amor eterno e a estabilidade no emprego, a única felicidade real encontra-se na segunda opção, o que todos nós sabemos ser verdade, ainda que esse conhecimento não torne nossa condição menos miserável. Nesse sentido o filme assume que o sucesso na carreira depende de sacrifícios, e é dessa forma que o diagnóstico realista (o sucesso no trabalho fará você perder seu grande amor) funciona como ideologia (existe “sucesso” possível no trabalho nas condições atuais, e isso é uma coisa necessariamente boa).

O filme, portanto, não é meramente uma utopia escapista, ainda que forneça elementos para ser lido dessa forma. Existe retorno ao passado, mas o que se celebra de fato são as condições tecnológicas presentes que permitem retomar esse passado (da mesma forma que existe um louvor honesto ao antigo jazz negro, mas sua salvação depende do sucesso empresarial do protagonista branco). E existe o amor, mas este funciona no máximo como um tempero a mais na vida, pois um bom trabalho é muito mais importante. A boa e velha trajetória de ascensão social, assumindo “realisticamente” que o sucesso depende de sacrifícios. Aliás, o filme é todo marcado por sacrifícios estruturais: sacrifica-se o amor em uma comédia romântica, e sacrifica-se o talento de bailarinos e cantores em um musical. Ficamos com a casca, consumível, e a mensagem principal de sacrifício em nome da estabilidade. Não são, pois, em seus momentos mais fantasiosos que o filme “foge” do real, mas principalmente nos momentos em que assume uma postura mais “realista”.

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