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Punitivismo em troca de likes: sobre o caso do menino fantasiado de Abu

Mais do que qualquer outra coisa, o caso da família que fantasiou seu filho negro de macaco Abu revela a complexidade do racismo no Brasil, e as dificuldades de se posicionar para além de binarismos simplistas. Eu, que acabei de acompanhar de perto um caso de linchamento perverso vindo de certa esquerda feminista, imediatamente me posicionei contra mais essa postura de intolerância que tem por objetivo pura e simplesmente a destruição do Outro. Mas, observando as coisas com mais atenção, é preciso reconhecer que o buraco é mais embaixo. E olha que eu nem sou completamente contra o escracho – acho que em certos casos interessa mais fazer o agressor sentir na pele mesmo, como no caso recente do bar Quitandinha, que todo mundo sabe ser frequentado por uma playboyzada bastante escrota, e cuja gerência tomou a pior atitude possível desde o início. Nesse caso, a lógica punitivista que faz sentir no bolso cabe melhor do que um didatismo voltado para quem não está nem um pouco interessado em mudar sua postura.

Entretanto, reconhecer a funcionalidade desse mecanismo em casos específicos é completamente diferente de aceitar a adoção irrefletida desse sistema como método hegemônico de ação. Pois o caso desse pai, casado com uma mulher negra, e que adotou uma criança negra é radicalmente diferente do caso Quitandinha, e saber reconhecer essa diferença é fundamental para se estabelecer um limite claro entre justiça e mera barbárie linchadora. “Não devemos chamar as respostas dos oprimidos de punitivismo. Isso é uma inversão silenciadora”. Mas não existem homens negros agressores de mulheres, como o Netinho de Paula? Não existem mulheres racistas, como a Rachel Shererazade? Não existem homossexuais machistas? Estamos realmente todos no mesmo balaio? Colocar essa pai no mesmo patamar de um nazista declarado e detonar o sujeito a ponto de ameaça-lo de morte foi um gesto bastante cretino, sobretudo da parte de quem viralizou a fotografia, já em tom acusatório, sem direito a defesa. Trata-se de uma postura que ultrapassa as diferenças entre direita e esquerda, mais preocupada em destruir o outro, ganhar likes no facebook e manipular as massas por meio do ódio do que em criar estratégias de transformação da sociedade. Pelo contrário, esse tipo de postura – mais preocupada com a elevação de seus valores à condição de Verdade por meio da violência sumária contra um determinado alvo – é uma prática recorrente do Estado punitivista brasileiro. A maioria dos nossos pre(t)sos sequer foi julgada. Nada de novo no front, portanto.

É impressionante e ao mesmo tempo assustador o grau de miopia necessário para considerar o pai daquela criança um nazista em potencial. Aliás, não por acaso as acusações foram concentradas no pai, tendo sido muito mais poupada a mãe, que até onde eu vejo é tão “culpada” quanto ele: afinal, a mãe é negra, logo, está imediatamente livre das acusações de racismo – apesar de todos nós negros conhecermos uma porrada de pretos racistas, não raro dentro de nossa própria família. É que só assim se sustenta o binarismo das acusações, facilitando a concentração não problemática do ódio. (Cheguei mesmo a ler comentários absurdos sugerindo uma equivalência entre a clássica sentença que diz “eu não sou racista, pois até tenho amigos negros que aceito perfeitamente bem” com “eu não sou racista, pois tenho até um filho negro que aceito perfeitamente bem”. Ora, é impossível não se levar em consideração a diferença gritante no grau de comprometimento ético e subjetivo nas duas afirmações. No primeiro caso, eu “tolero” o outro justamente porque ele está longe de mim – “playboy bom é chinês, australiano. Fala feio e mora longe, não me chama de mano” -, no segundo eu comprometo o outro na minha própria vida).

É claro que isso não significa que o casal – não só o homem cis branco, mas também a mulher negra – não foram no mínimo ingênuos, para não falar alienados, o que é bem típico das nossas classes médias. E nesse sentido são bastante válidas os toques que foram dados pela amiga do casal, Mariana Emiliano, que procura mostrar o peso histórico de sua conduta, que passou desapercebido. Mas não poderia ser maior a diferença entre a mensagem da moça, que pressupõe um interlocutor com o qual se pode dialogar, e cujo objetivo é seu engrandecimento e bem estar, com a barbárie da condenação virtual – que tem impacto bem real – do perverso tribunal do feicibuqui. Novamente, é preciso um considerável grau de miopia, mau caratismo ou distorção ideológica para não considerar o casal inter-racial que adotou uma criança negra como alguém com quem se possa dialogar, alguém pelo menos aberto a pensar nas questões raciais que podem não ter passado por sua cabeça, mas que com certeza os interessa, por amor a seu filho. Afinal, é muito mais “lógico” pensar que o casal adotou uma criança negra para se divertir humilhando-a publicamente. Mas o fato é que no fundo, esse comportamento narcisista da esquerda virtual está muito mais comprometido com o número de likes e compartilhamentos do que com processos reais de transformação do mundo. Agindo nesse sentido como qualquer adolescentx criticadx pela esquerda moralista por objetificar seu corpo em fotos sensuais no espelho, com a diferença que nesse caso objetificam-se conceitos e padrões morais, como uma religião que forma comunidades pela manipulação do ódio travestido de palavras de salvação. Basta pensarmos quais foram os efeitos práticos do escracho: uma família agredida e acuada por movimentos que confundem Justiça com linchamento; um pai ingênuo tomado como descendente do Hitler preocupado com sua integridade física; e mesmo a criança que a partir de agora está associado a essa polêmica – fosse um pouco mais velho e estivesse na escola, reino de profundas perversidades infantis, seu apelido seria macaco Abu para sempre, não por causa da família, mas da viralização da turba ensandecida.

Por essas razões posicionei-me imediatamente contra o escracho nesse caso. Mas é óbvio que o quadro se complica quando começamos a prestar atenção ao outro lado, o dos defensores da família, que também surgiram aos montes desde o primeiro momento, prontos pra defender que o racismo é uma invenção do movimento negro, revelando assim o quanto é ainda necessário avançar no debate sobre o racismo no Brasil – e avançar significa reconhecer a sua especificidade, o que implica a meu ver em mudar muito do que tem sido dito sobre ele, inclusive de forma estratégica pelos movimentos negros. De um lado temos aqueles que enfatizam o quanto que a adoção de uma criança negra órfã é um gesto de extrema bondade e caridade que basta por si para comprovar que ali, e quiça no país inteiro, não existe racismo – a nossa bem conhecida síndrome de princesa Isabel, aquela moçoila que “libertou” os escravos por um gesto de piedade cristã e amor. Um tipo de “defesa” que recoloca o negro como aquele que é objeto passivo da ação do branco, nada que o programa do Luciano Hulk não nos tenha naturalizado. Por outro lado, e de forma mais pronunciada, vimos diversas afirmações absurdas enfatizando que o racismo, na verdade, está nos olhos de quem vê. Um absurdo que, contudo, não é desprovido de sentido, pois no Brasil as diferenças raciais são construídas sim pelos olhos de quem vê, e confirmadas pelas mãos de quem atira. Ninguém é negro até que alguém define quem tem pele escura como negro – a partir daí, ele se torna negro – e culpado – desde o início. Um tipo de identidade que é construída pela ausência, mas que nos impregna até o fundo de nossa alma – se é que ela existe. Faz parte da dinâmica do racismo à brasileira essa incapacidade crônica de conseguir identificar o racismo. De todo modo, essas posturas revelam o quanto que precisamos avançar na questão racial brasileira, e o quanto que esse debate ainda precisa ser ampliado. Certamente isso faria com que o casal pensasse um pouco melhor nas implicações da fantasia de macaco.

(E ainda teve um outro caso de um comentário super pertinente de um rapaz envolvido com a militância LGBT (creio eu) que afirmou desde o início que o verdadeiro canalha da história não era o pai, e sim o primeiro sujeito que viralizou a foto descontextualizada, atirando a família aos leões enquanto gozava sua fama de justiceiro virtual. Entretanto, no dia seguinte esse mesmo rapaz postou um texto completamente equivocado sustentando que a violência contra homossexuais é mais grave do que contra os negros – algo do tipo “é muito pior ser gay do que ser negro”. E eu que já conheci pessoalmente negros e homossexuais que foram assassinados por racismo e por homofobia, fiquei enojado com essa tentativa de ranqueamento que busca hierarquizar as mortes de pessoas queridas por seu grau de (des)importância social).

Ou seja, nesse caso, até quem acertou estava errado. De todo modo, o que chama atenção nessa história é o quanto é perniciosa essa postura punitivista que é moda entre a esquerda atual, muito mais preocupada em declarar inimigos imaginários do que em construir mecanismos de emancipação e transformação social. Para dar nome aos bois, relembro dos discursos violentos das feministas contra o Gregório Duduvier, da esquerda pró-palestina contra o Jean Willys, e o do movimento negro contra essa família e contra o Porta dos Fundos no caso do excelente vídeo deles sobre o racismo (link). A busca narcisista por atenção, e o desejo de instituir um único ponto de vista como lugar moral da Verdade fala mais alto do que a capacidade de discernir entre inimigos declarados como Bolsonaro e aqueles que estão do nosso lado apesar das divergências. Trata-se de destruir a todos, numa postura de fundamentalismo narcisista amplamente favorecida pela dinâmica de interação do facebook, que ao contrário do que pode parecer a primeira vista, é bastante avessa ao diálogo – o modo padrão de interação social no face são os comentários de ódio, cujo objetivo é suprimir o outro. Portanto, nada mais natural do que essa esquerda supressiva.

Contudo, mesmo essa dinâmica, atualizada pelas redes sociais, não é de hoje. A esquerda tem um longo histórico de mobilizar paixões pelo binarismo e pelo ressentimento. O caso que me vem imediatamente a cabeça é a condenação sumária de Wilson Simonal a partir de uma muito mal contada relação com a ditadura. Naquela época em que a esquerda pouco se preocupava com o racismo, unir o público da MPB contra o crioulo “vendido” foi fácil – muito mais fácil do que atacar o rei branco Roberto Carlos. A definição desses inimigos da vez mobiliza afetos de grupos a direita e a esquerda, e fortalece grupos mais preocupados com a manutenção do próprio status do que com alguma forma efetiva de transformação social.

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