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Birdman, ou a inesperada virtude da ignorância

Birdman é um filme que quer – e (quase) consegue – agradar todo mundo. Os críticos do vazio do cinema mainstream, os jovens cinéfilos apaixonados por referências cults dos anos noventa, os culturalistas pós-modernos que detonam a arrogância crítica da velha escola, os fãs do bom e velho drama familiar, os amantes de técnicas virtuosísticas de montagem cinematográfica e ousadias formais. Em suma, o filme pisca de leve tanto para os que criticam a superficialidade do cinema quanto para aqueles que a adoram, pois avaliza aqueles que desejam detonar a vacuidade da personagem principal – Keaton em atuação brilhante – e de todos que o cercam, e aqueles que criticam a não menos vazia arrogância da cultura dita séria. Isso só se torna possível porque o filme reconhece que no conflito entre a arte de alta exigência estética e o entretenimento leve que fatura alto existe uma exigência anterior do próprio meio que determina e direciona as intenções: é preciso viralizar. Apesar da narrativa (um falso plano sequência que condensa duas semanas em pouco mais de duas horas) acompanhar a tormentosa perspectiva de Riggan, creio não ser exagerado dizer que o ponto de fuga mais importante da história seja a figura de Emma, sua filha, símbolo maior do meio contemporâneo que dá sentido para todas as vaidades e anseios das personagens ao longo da trama.

Desde o cartaz do filme, em formato pop, o jogo entre realidade e ilusão está colocado. Nele vemos em destaque o título que remete ao universo dos super-heróis da cultura de massas (Birdman) e o subtítulo (a inesperada virtude da ignorância) de ares mais sérios e reflexivos, quase ensaísticos. A sobreposição não chega perto de causar o mesmo impacto de tempos atrás, se comparado com a mesmíssima estratégia utilizada pelas vanguardas modernas, reatualizadas nos anos sessenta e setenta no âmbito da cultura popular. O diretor, aliás, tem plena consciência disso, alinhando despudoradamente publicidade, tramas tradicionais e experimentos estéticos. Por outro lado, rouba a cena a piada interna que sobrepõe a “carreira real” do ator Michael Keaton – que viveu Batman nos anos noventa – a carreira de seu personagem Riggan Thompson, também “eternizado” na pele de um personagem mascarado. Note-se que será precisamente essa sobreposição entre arte e vida, próprio da sociedade virtualizada contemporânea, o espaço de manipulação supremo: segundo o próprio Keaton, ele nunca interpretou um personagem tão diferente de si próprio. Ou seja, não se trata de optar entre arte e entretenimento, mas de fazer desaparecer a distinção arte e vida, não em favor de uma vida verdadeira (a experiência benjaminiana), e sim da captura da imagem perfeita.

[O risco do filme, sempre presente, é a equivalência de tudo com coisa nenhuma, um grande espetáculo ruidoso e vazio, cheio de som e fúria, num riso cínico que agrada aos pares. Um espetáculo mais pretencioso que interessante, como A Origem, de Nolam, ou A Viagem (Cloud Atlas), dos irmãos Wachowski, filmes com amplo domínio técnico e de repertório aliado a uma escassez de conteúdo – uma caricatura perfeita da geração Y, a propósito. Contudo, Birdman é sobre isso e goza d(n)esse impasse. A peça (e o filme que assistimos) é a (re)consagração de Keaton e de seu personagem? Pouco irá importar sem milhões de views, conseguidos graças a um constrangimento público involuntário. Mas então arte e publicidade não são mais distinguíveis e tudo é uma questão de uma forma que assuma sua esquizofrenia? Se assim for, o que se há pra dizer? Aliás, esse é um dos problemas que encontramos em BoyHood – da Infância à Juventude. A proposta estética (e o mérito) do filme é evidente: ele pretende subverter a lógica da imediaticidade da sociedade contemporânea que exige continuamente novos produtos seguindo a vida do protagonista por onze anos seguintes. A proposta funciona, e a vida desdramatiza a arte, adaptando-lhe a seu ritmo. A identificação é perfeitamente garantida e o expectador se sente como da família. Entretanto, o que o filme não problematiza – e esse é o ponto em que Birdman deita e rola – é precisamente o efeito oposto. Afinal, nada mais próximo da lógica da espetacularização do cotidiano do que uma vida tornada, literalmente, um filme.]

Uma das primeiras relações que me veio a cabeça assistindo a Birdman foi com o Show de Truman, uma das primeiras críticas a onda dos reality show, em que ainda aparece a ideia algo ingênua de que a liberdade está do lado de fora, do outro lado do aparelho de televisão. O filme é todo bonitinho com seu tom de conto de fadas anti-mainstream, em que a liberdade de Truman remete a nossa própria liberdade fora do espaço de manipulação do Big Brother, nos enchendo de satisfação. Em sua resolução o filme resvala na mesma ingenuidade de seu protagonista – a ideia de que existe um horizonte real a que se pode alcançar nos livrando da ilusão virtual, quando na verdade a saída de Truman para o “nosso lado”, conduzido pelo desejo que torna o “humano” a chave da liberdade, é o verdadeiro aprisionamento. Por isso, como em qualquer comédia romântica, o filme termina exatamente no ponto em que a construção real – “cotidiana” – da liberdade se apresenta. Birdman parte de um contexto posterior, quando o cinema e a televisão se rendem a lógica da ficcionalização da vida cotidiana promovida pela internet. Estamos todos no mundo de Truman, ao mesmo tempo protagonistas e expectadores, e a questão é aparecer no melhor ângulo possível. A questão, que não é simples, é se Birdman consegue ser mais do que isso ao tirar daí sua matéria.

Essa lógica é representada pela figura central de Anne, filha de Riggan. Para o polo da arte “séria” – Edward Northon e a crítica teatral amargurada – a arte é o (único) lugar da verdade. Para Riggan\Birdman, ela é o lugar da mentira por excelência, espécie de prolongamento da falsidade da existência, que ele pretende mudar. É sua filha que, no fundo, sabe que essa diferença não faz sentido, não interessa, a não ser em seu caráter de jogo de cena. A briga no bar entre Riggan e a crítica teatral que não viu e não gostou – e isso, sim, existe no mundo real: “não li e não gostei” foi a resposta que Davi Arrigucci deu quando a Veja perguntou sobre Paulo Coelho – que pende a favor da cultura de entretenimento (seria essa a portadora da tal virtude da ignorância?), é pura encenação. O que importa no fim das contas é que a explosão sincera (mas será, de fato, sincera? Afinal, pode bem ser que Riggan estivesse encenando o tempo todo, afinal, nem ele mesmo sabe o que é real) dará a deixa para a crítica criar mais um rótulo para enquadrar – positivamente – a peça. O que interessa, pois, é a vida viralizada. O show de Truman, outrora uma prisão, é na verdade um privilégio, afinal, a quantidade de câmeras de alta qualidade a seu dispor é um sonho de consumo, e a naturalidade exigida pelo meio é perfeitamente construída pela mão hábil do diretor\deus Ed Harris. Nessa lógica a única imoralidade é Truman não receber dinheiro pelo que faz, uma vez que sua vida foi tornada valor de troca desde o nascimento. Ainda assim, não é um absurdo supor que o que Truman faria com o dinheiro que recebesse seria “comprar” um estilo de vida exatamente igual ao que já possuía e que, portanto, ele não tinha do que reclamar. O que no início dos reality show era críticado e visto com desconfiança se torna progressivamente objeto de desejo.

Caso a lógica esteja correta, o ciclo natural do filme deve ser sua completa consagração de crítica e público no Oscar 2015. Grande prêmio para Michael Keaton, exatamente como previsto pelo roteiro que, no entanto, desde o início forjou esse paralelo com a realidade – não com a vida vivida, mas com a carreira de ator. Nesse sentido, o paralelo existe ou não? Afinal, o filme trata do vazio e da falsidade das relações virais que permeiam toda a arte, mas também sobre as possibilidades de se tirar vantagem da encenação – e, nesse sentido, é preciso considerar Emma como uma grande manipuladora: não é por outra razão que ela alimenta o twitter do pai com fotos dele no hospital, ou seduz Edward Northon transformando a cena amorosa em um jogo explícitamente encenado para que o ator se sinta à vontade. Michael Keaton finge interpretar a si mesmo no papel de sua vida para tirar dessa indistinção entre real\imagem uma merecida indicação ao Oscar pelo papel de sua vida. Por isso o final do filme permanece em aberto: a rigor, não interessa optar pela fantasia ou pela realidade – conflito básico das personagens. O que interessa é precisamente a conversão de uma na outra até a indistinção. Keaton\Riggan ou Batman\Birdman, público sério ou massificado, o que interessa é o jogo de cena. Resta saber se o filme adere a esse contexto, critica, ou critica aderindo.

O filme oscila, ou melhor, sobrepõe dois tons narrativos, acompanhando a esquizofrenia de seu protagonista. De um lado um cinismo melancólico resumido pela bronca de Anne no pai: sim, sim, é tudo vazio e sem sentido mas, bora ganhar dinheiro, seu miséra? Todas as personagens serão focadas em suas imperfeições e o meio artístico será criticado o tempo todo. Contudo, essa ilusão pode ser o que de melhor existe na vida, desde que se consiga viraliza-la. Talvez por isso os conflitos das personagens em sua busca pela verdade sejam contemplados também com certa nostalgia, que determina o segundo tom narrativo. Os valores estéticos não são mais pautados nem pela autonomia artística, nem pelo hiper fetichismo hollywoodiano, mas pelo número de compartilhamentos no facebook e views no youtube, que altera radicalmente tanto a noção de valor da arte séria quanto dos blockbusters hollywoodianos (um gato tocando flauta pode dar mais retorno do que um filme com investimento de bilhões). O conflito do protagonista é ultrapassado porque ele deseja curar-se da sua cisão de personalidade, quando a “solução” consiste desde o início em assumir sua patologia como a norma da sociedade contemporânea.

Essa mistura de cinismo e nostalgia, é claro, não é exclusiva de Birdman. Muitos filmes contemporâneos de herói exploram essa ambiguidade, tirando daí suas melhores piadas e sacadas. Isso não significa, contudo, alguma espécie de abandono da ilusão em um mundo pós-ideológico, e sim uma incapacidade crônica de se fixar objetivamente a essa ideologia, de modo que o apego se dá todo no campo da fantasia. Por exemplo, ninguém acredita ou mesmo gosta da imagem do Papai Noel da Coca Cola, mas não podemos desfazer a ilusão das crianças que, no entanto, sobreviveriam muito bem sem o Papai Noel caso os adultos efetivamente não quisessem guardar algo da própria infância nessa projeção cínica. O mesmo vale para o Capitão América, Homem de Ferro e afins. Ninguém os leva a sério, mas não são outros os heróis que nos representam. Desfeitas as ilusões, nos apegamos a elas mesmo assim. A lição de Emma, a única no filme que verdadeiramente sofreu um confronto com o vazio do real ao ser internada em uma clínica de reabilitação, é que só a virtualidade existe.

Inconformado ou não – pois a viralização pode ser tanto o caminho para a arte independente de qualidade atingir o grande público quando para a banalização geral – é inegável que Alejandro González Iñárritu adora todo esse jogo de cena, que manipula a seu favor para fazer um grande filme.

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