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De Easy Rider ao Lobo de Wall Street ou, do que acontece quando sonhos se realizam.

Assisti ontem ao Easy Rider, de Denis Hooper (Sem Destino, 1969), clássico da geração hippie. É bonito de se ver, sobretudo quando se pensa na beleza comovente das utopias que se foram. Mas além dessa nostalgia pelo tempo perdido, o filme também interessa na medida em que nos permite o reconhecimento da miséria presente naquilo que restou: por exemplo, ainda hoje podemos encontrar as mesmas intervenções artísticas horrorosas que os dois protagonistas assistem em uma comunidade hippie namastê\gratidão. Essas migalhas restantes que aparecem ora ou outra no filme, somente atestam o tamanho da nossa miséria.

Entretanto, não é correto dizer que foram só esses resíduos abjetos que permaneceram. Algo daquele estado de espírito da geração beat segue vivo, ainda que com sinal radicalmente trocado. Acredito que o filme que melhor retrata o destino final dessa geração que parecia sem destino algum é o brilhante Lobo de Wall Street (Scorcese, 2013). Os ingredientes da receita contracultural estão todos ali: muito sexo, todas as drogas, rock n’roll e demais ícones da cultura pop, tudo aliado a capacidade empreendedora dos yuppies. Aliás, descontadas as ilusões, é perfeitamente possível imaginar os dois lobos solitários adequados ao mesmo esquema (afinal, a moto estava o tempo todo cheia de dinheiro).

O novo arranjo ainda oferece outras vantagens que as utopias dessa esquerda, tal como relidas hoje, não poderiam suportar. Por exemplo, faz parte da diversão dos funcionários promover concursos de arremesso de anão. Dentro da empresa, como não poderia deixar de ser. O ideal de popstar subversivo, que vive todos os dias como se fosse o último, parece ter migrado de campo (talvez quando o capitalismo assumiu de vez que representa o fim do mundo, e que não temos mais pra onde correr).

Segundo Pablo Ortelado, em algum momento dos anos 1980 ou 1990 os valores dos então novos movimentos sociais (o movimento negro, o movimento de mulheres e o movimento gay antes de ser LGBT) viraram o novo establishment. A partir de então ser de direita e conservador passou a ser um ato de rebeldia, não importa se de fato ou apenas imaginariamente (assim como usar figurino alternativo meio intelectual meio de esquerda torna a pessoa mais progressista, não importa se real ou imaginariamente). Aliás, um dos membros da “alt-right”, ou direita alternativa norte-americana (e que no Brasil podemos identificar com o campo da direita transante), propõe um diagnóstico bastante lúcido dessa passagem:

“Ironicamente, afirma Yannopoulos, esses jovens são seduzidos pela alt-right pelos mesmos motivos que os jovens dos 1960 eram atraídos pela nova esquerda: “porque ela promete diversão, transgressão e o desafio a normas sociais que eles simplesmente não entendem”.

Em certa medida, o projeto expresso em Easy Rider conseguiu chegar ao centro do poder. Bob Dylan ganhou Nobel, o tropicalismo ganhou um ministério e até um negro chegou a presidência dos EUA. Contudo, se parte dos ingredientes seguem os mesmos (agora com farinha integral), é inegável que a receita desandou. Basta compararmos o tom discursivo presente em Easy Rider com o que vemos na esquerda hoje. A esquerda contracultural era basicamente articulada ao redor de um grande SIM, com um discurso fortemente afirmativo. Sim para o corpo, faça o que quiser, sem leis e sem destino. Liberdade de ser, cabelo ao vento, velhas roupas coloridas. Obviamente que se tratava de afirmações guiadas por um grande Não contra o “sistema”, mas estamos falando aqui do tom desses discursos. Esse apelo ao sim foi em grande medida responsável por atrair a juventude, inclusive a mais careta.

Em algum momento difícil de identificar, a esquerda parece se mobilizar mais pelo discurso do não, das restrições, daquilo que não pode e que não deve. Normatizar, categorizar, buscando definições mais e mais específicas – um movimento natural, na medida em que se torna necessário definir quem são os sujeitos de direito (não mais identificados como um bloco homogêneo). Quem pode falar o que pra quem. E não se trata apenas do modelo de esquerda mais ligada a militância: é possível perceber o mesmo movimento em diversos espaços, como na passagem do rap para o funk enquanto expressão estética privilegiada na periferia. O rap em geral é marcado pela articulação de grandes narrativas do NÃO, pela delimitação daquilo que não se pode e não se deve fazer (“não mate e não morra”). Ao passo que o funk marca terreno por meio da glorificação de breves momentos afirmativos (“vai começar a putaria”).

De todo modo, no imaginário geral o campo da esquerda passa a ser identificado com o lado do não, e as eternas tretas bem pouco produtivas – por exemplo, o uso do X como marca de neutralidade de gênero – bem como certa tendência real para cagação de regra (saudada como “lacração”) ajudam pouco a desfazer essa não tão infundada assim impressão geral.

Nesse recorte imaginário, não deixa de ser um exercício interessante pensar em quem estaria mais próximo da esquerda em O Lobo de Wall Street, não importa se real ou imaginariamente. Mantendo a simetria da inversão com Easy Rider, é justo pensar que o que melhor a representa no filme são justamente aqueles personagens que buscam refrear os impulsos libertários\devastadores da direita transante: ou seja, a polícia.

É claro que a saída desse impasse não é simples, pois o campo oposto está bem armado e sabe bem como lidar com uma esquerda mais festiva. Talvez a resposta esteja no caminho oposto (ainda assim sem nenhuma certeza), em um endurecimento de fato, fora da falsa inclusão do liberalismo multicultural. Mas é bom estarmos prepararmos para enfrentar a direita zuêra.

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