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O que significa fazer sucesso, hoje? A Precarização do Ídolo Nacional

Resolvi escrever só agora sobre o trágico e ao mesmo tempo interessantíssimo – por sua repercussão – episódio da morte de Cristiano Araújo. Evidentemente que com isso corre-se o risco do texto não interessar mais nem aos próprios fãs do cantor. Tragédias também tem seu prazo de validade, cada vez mais curtos, diga-se de passagem. Mas eu realmente precisava de tempo para processar os vários aspectos do fenômeno, tanto que ao longo desse período mudei de opinião várias vezes, buscando o núcleo ideológico central do episódio que a cada vez acreditava estar em uma das diferentes versões em disputa: no cinismo da Rede Globo, no “realismo” arrogante de Zeca Camargo, na indignação acrítica da comunidade sertaneja.

Pra quem não se lembra, o jovem cantor sertanejo Cristiano Araújo morreu em um acidente de carro no mês de junho desse ano, com apenas 29 anos de idade, ao lado de sua namorada Allana Moraes, de apenas 19 anos. Para além do aspecto mais trágico do episódio – o jovem ídolo em ascensão que morre ao lado da mulher que amava – o caso chamou a atenção, sobretudo pela “curiosa” repercussão que gerou, fugindo ao comum em diversos sentidos, e causando perplexidade em muita gente.

Segundo o pesquisador Gustavo Alonso – obviamente alguém que não pode ser acusado de ter nenhuma espécie de má vontade contra o sertanejo, muito pelo contrário, tenha em vista seu excelente livro sobre o tema – a cobertura sobre a morte do artista foi “desproporcional” e “sem precedentes” recentes. Uma cobertura que tomou conta de toda a programação da Rede Globo, desde as oito da manhã até o fim do dia. Foram apresentadas diversas teorias para essa postura “inusitada” da emissora, desde o fato do artista ter contrato com a Som Livre, gravadora da Globo, até uma certa rendição tardia da emissora a realidade virtual do tweeter, causando uma espécie de miopia que a fez superdimensionar a importância do artista. Seja como for, a percepção de que algo estava deslocado era cada vez mais intensa.

Tamanha repercussão chamou a atenção de Zeca Camargo que fez uma espécie de comentário arrogante e de mal gosto – sobretudo porque foi, no mínimo, indelicado naquele momento – mas que tocava em um aspecto verdadeiro. De fato, parecia que quem havia morrido era Michael Jackson, Lady Di, Airton Senna. Gostando-se ou não dessas figuras, é inegável a diferença de posição simbólica que eles ocupam na história para a de Cristiano Araújo. Para Zeca Camargo e outros críticos, é como se a Rede Globo não entendesse a diferença entre um sucesso localizado em um grupo específico de fãs sertanejos e um artista de projeção nacional\internacional, como foi colocado diversas vezes em textos a favor de Zeca Camargo (que apontam para a diferença óbvia entre o sucesso internacional de Michel Teló e o sucesso bem localizado de Cristiano Araújo). De fato, quem não acompanha o circuito do sertanejo universitário de perto não saberia dizer quem era Cristiano Araújo até a cobertura de sua morte, o que não aconteceria caso o morto fosse um artista como Luan Santana, ou Michel Teló.

Como já era de se esperar, o comentário “deselegante” de Zeca Camargo sobre o fim das referências culturais brasileiras gerou uma série de ataques, partindo especialmente de fãs e outros artistas, bem naquele nível de delicadeza ao qual estamos acostumados na era da internet. Muitos chegaram inclusive a propor uma associação direta entre o desconhecimento de Cristiano Araújo e um preconceito contra tudo o que é popular, como se não conhecer o nome de um cantor que NÃO era nacionalmente conhecido imediatamente fizesse dessa pessoa um burguês elitista que só ouve Chico Buarque. Ou seja, no fundo, trata-se do mesmo mito governista do país dividido entre a elite psdebista e o povão petista (é bom esclarecer: o país é dividido sim, mas não nos termos que o PT adota). Impossível não lembrar aqui das alusões de Safatle à covardia da crítica musical nesse caso em que qualquer coisa que venda deve ser, necessariamente, elogiada. Basta lembrar aqui que a cantora Fafá de Belém, importante para a história recente da música sertaneja por ser uma das primeiras a gravar Zezé de Camargo, tampouco fazia ideia de quem era Cristiano Araújo.

(Diga-se de passagem, as reações de Zeca Camargo são um capítulo a parte nessa história, especialmente seu primeiro pedido de desculpa, provavelmente por exigência de seu empregador. Sendo obrigado a se desculpar e fingir que havia se arrependido e mudado sua percepção – em parte correta – Zeca elabora uma farsa em forma de pedido de desculpas em que deliberadamente “confunde” o nome do cantor com o de Cristiano Ronaldo. Aqui a arrogância continua em forma reduplicada, mas ganha potencial ao se organizar como uma pequena reação bastante inteligente voltada contra o seu empregador, bem como contra a série de ofensas pessoais que recebeu, deixando explícito para quem quiser ver o caráter farsesco do episódio).

Mas, e se entre o desconhecimento indignado de Zeca Camargo e de seus defensores que acusaram a emissora de “errar a mão”, e a reação revoltada dos fãs do cantor contra o apresentador, quem o tempo todo tenha compreendido o “real” significado da morte do cantor tenha sido, de fato, a Rede Globo? Desde o início a emissora percebeu uma mudança histórica em curso, aproveitando a oportunidade de forma cínica para capitalizar a seu favor não só ao acidente, mas também toda a polêmica que por assim dizer prolongou a tragédia para além de seu acontecimento concreto. Pois o que a surpresa de Zeca Camargo ou a indignação personalista dos fãs é incapaz de captar é que, de fato, a materialidade da obra de Cristiano Araújo já não interessa aos mecanismos de capitalização da cultura.

Zeca Camargo se surpreende por pensar nos moldes que, nesse contexto específico – que não é o único e está em disputa com outros, daí a confusão – já não funcionam. Para o apresentador, a lógica é a mais simples e direta possível: um determinado artista (X) tem uma obra (Y) que faz sucesso (a questão aqui nem é a qualidade, mas o sucesso mesmo, que independe disso), e com isso ganha projeção midiática, “justificando” a superexposição. Nessa lógica, faz sentido que a morte de Michael Jackson tenha recebido tanta atenção, afinal, sua obra definiu uma época. Podemos dizer que para os fãs, apesar de toda oposição raivosa, a lógica é exatamente a mesma, só que operando em chave inversa. A questão para eles é que o cantor era sim amado em todo Brasil, e que por isso fazia sucesso a nível nacional. E se o apresentador não o conhecia é porque vivia em um mundo deslocado, provavelmente ouvindo Chico Buarque – paradigma de canções de “velho” desde o início de sua carreira. Ambos as interpretações, contudo, erram o alvo, seja por miopia ou astigmatismo, por serem incapazes de perceber que algo se transformou profundamente no significado aparentemente óbvio da própria noção de “fazer sucesso”.

Sucessos de terceira classe

O conceito de “sucesso” na cultura de massas é dessas noções difíceis de lidar justamente porque parecem ser absolutamente auto evidentes e sem maiores complicações. Mas é precisamente esse conceito que tem sofrido alterações profundas no campo cultural nos últimos anos, alterando muitos de seus termos usuais. Segundo Rômulo Fróes, em uma entrevista fundamental para compreender o atual estágio da música feita no Brasil, vivemos um momento inédito em que pela primeira vez é possível um artista sobreviver de música sem precisar fazer sucesso comercial, pelo menos não nos moldes anteriores. Para essa geração, a noção de fazer sucesso desvinculou-se, por exemplo, da sobrevivência material. Um artista de pouco sucesso comercial consegue sobreviver (mal) na medida em que cria meios alternativos, aproveitando-se das redes sociais, etc. Não se enriquece, mas esse “desaparecimento” não significa o “fim da carreira”, como parecia ser até pouco tempo atrás. É possível viver como um subproletário da música, e viver de música, desde que entendida de forma mais ampla – o sujeito tem que entender de produção, escrever, manter bons contatos, dominar os mecanismos de divulgação. Enfim, dominar todos os aspectos que na Indústria Fonográfica costumavam aparecer segmentados. É nesse sentido que as expectativas dessa geração são bem diversas.

Acho que a gente pertence a uma geração que tem uma percepção diferente. E tem que parar com isso. Eu cada vez me ponho mais o desafio: posso ser esse cara pra sempre, do meu tamanho, que gravo meus disquinhos, vendo mil cópias e é isso, acabou. Talvez não exista mais o fenômeno Caetano Veloso, Gilberto Gil, os caras que fizeram música de invenção e ainda assim tiveram apelo popular no Brasil inteiro. Talvez não tenha mais. Estou cada vez mais me forçando a isso: você grava teu disco, tem uma turma que ouve, um povo te chama pra fazer entrevista, que gosta de você e é isso, acabou. Talvez a sua tia nunca vá saber que você grava disco. Tem um monte de parente meu que não sabe que eu gravo.

Rômulo Fróes

Há bem pouco tempo, a relação entre o projeto autoral e a difusão para um grande público que ultrapassasse o limite dos “fãs” no geral dependia intrinsicamente do funcionamento dessa grande máquina (com exceções, evidentemente, sendo a maior delas o caso dos Racionais MC’s). Era por meio do metro da Indústria Fonográfica que autores como Jards Macalé, Luiz Melodia, Itamar Assumpção eram taxados de malditos: tinham uma produção consistente que era suficiente para não desaparecerem por completo, mas não vendiam o suficiente para aparecer no “primeiro esquadrão”. Sua “marginalidade” é, antes de tudo, comercial. É possível compreender a posição dos artistas (mal) classificados como nova MPB como decorrente de uma generalização da condição de malditos: um conjunto de obras consistentes que não encontram espaço de ressonância entre o grande público, mas que não é uma produção restrita aos círculos experimentais. Uma geração para quem essa mediação foi perdida – o que revela o quanto a internet está longe do poder de irradiação da televisão e do rádio, fazendo água das previsões otimistas de que a democracia finalmente chegou para música popular. Não a democratização de fato, se é que ela existe, mas a sua contraparte capitalista inerente que é a precarização generalizada de artistas-proletários que não precisam mais se vender, entre outras coisas porque não tem mais muita gente que compre. A própria ideia de artistas malditos ou marginais perde o sentido quando a marginalidade passa a ser a condição hegemônica.

Contudo, é preciso dizer que essa relativização do sucesso caminha em mão-dupla, pois se por um lado representa o fim do sonho de se ficar milionário por meio de uma arte de qualidade, jogando a nova MPB no lamaçal dos subempregados como outros quaisquer, por outro lado torna-se mais “fácil” contornar destinos trágicos como o de Cartola e tantos outros artistas talentosos obrigados a deixar a música em segundo plano para poder continuar vivos. A música de qualidade pode (sobre)viver sem realizar as concessões de sempre, com todos os custos que isso implica, e sem que o artista seja deslocado para o espaço da marginalidade, pois esta se tornou a condição geral.

Nota-se, portanto, nas reflexões de Rômulo Fróes, um deslocamento importante na ideia de sucesso, e de sua necessidade por parte do artista contemporâneo. Entretanto, no caso de artistas com um projeto “autoral” e “alternativo”, esse redimensionamento do conceito pode ser interpretado em chave heroica, como uma recusa das condições esmagadoras do “Sistema” em nome da verdade artística – uma posição de valorização tão antiga (e ideológica) quanto à própria modernidade. Creio que essa é uma forma equivocada de compreender o que está em jogo nessa mudança de sentido do “sucesso”, que a meu ver indica um movimento bem mais geral. Por isso acredito ser interessante pensar esse deslocamento também em relação aqueles artistas cujo impulso principal de sua obra é precisamente fazer canções de sucesso, destinada a atingir milhões de corações. Se é verdade que o conceito de sucesso sofreu alterações importantes, então o próprio espaço simbólico por onde circulam essas obras também foi modificado. Como afirma o diretor-geral da gravadora Som Livre, Marcelo Soares:

Os artistas se renovam muito rapidamente hoje. A internet faz as camadas de popularidade serem muito mais maleáveis. O efeito no mundo é o mesmo, só exponencialmente maior […] Mais do que super segmentação, a questão dos artistas [dos dias atuais] é de super renovação. No futuro, pode haver uma quantidade muito maior de artistas grandes do que antes, mas nenhum deles há de ser tão grande quanto o Roberto Carlos ou os Rolling Stones.

A internet fez mais do que mudar as formas de produção e distribuição das obras, pois o próprio tamanho e sentido do sucesso foram radicalmente modificados.

Um ídolo pra chamar de seu

Leandro Lopes, Marcus Vinicius, Thiago Silva, Israel Lucero, Henrique Lemes. O que esses nomes têm em comum? Todos emocionaram milhões de brasileiros ao vencer o programa Ídolos, reality show musical exibido pela Rede Record e pelo SBT. O Brasil inteiro acompanhou suas trajetórias, sofreu com eles e se emocionou, como em uma variação musical do Big Brother. Todos os passos da produção do artista foram acompanhados de perto, seu aperfeiçoamento e dedicação, até o fim do programa.

Terminado o programa, chega o momento tão aguardado pelo artista, aquilo pelo que ele tanto batalhou pra conseguir, quando enfim deixa a condição de amador – que é o foco do programa – para assumir a posição de profissional com uma obra produzida para ser levada ao grande público. A perversidade no caso está em que é precisamente nesse ponto que sua trajetória deixa de interessar. Os discos podem até vender e garantir certa permanência temporária, mas nada sequer comparável à audiência conquistada no programa, que coroa não a obra, que ainda não existe, mas o processo. Invariavelmente, depois de poucos meses, esses artistas desaparecem. Mesmo exceções como as de Tiaguinho confirmam a regra: o cantor só se firmou no cenário musical porque antes de sair em uma carreira solo de sucesso ganhou visibilidade como vocalista do Exaltasamba, grupo que tem uma história de grande sucesso em âmbito nacional, em um gênero que continua muito popular, ainda que não mais hegemônico. O que interessa a esses programas é justamente a dimensão amadora, o cantor antes de se tornar artista, aquela voz que ainda não está pronta. O que é capitalizado não é a obra pronta e amadurecida dos artistas, mas sua condição pré artística.

Trata-se nesse caso de um exemplo extremo e, por isso, interessante, de um sucesso musical que se desvincula de uma obra propriamente dita ou, para ficarmos no campo mais mercadológico, de uma imagem que produz valor mesmo não estando associada diretamente a produtos específicos. Nesse caso, não interessa qual o cantor que ocupa aquele espaço – por isso é fundamental, inclusive, que ele não seja um profissional, ao menos não completamente – pois o que se vende são os produtos relacionados ao formato, do qual o cantor é parte integrante, mas não determinante ou exclusiva. O sucesso independe da imagem e do nome do artista, que só se sustenta na medida em que permanece diante dos holofotes da TV, como “aquele cantor do Ídolos”, em breve substituído por outros. O lucro se dá diretamente a partir dessa dissociação originária.

Voltando ao caso Cristiano Araújo, ainda que não tenha diretamente a ver com o programa, podemos sustentar que existe uma mesma lógica em operação, que não se limita ao sertanejo universitário (é comum também a outros estilos como o funk, ou o arrocha). E foi precisamente esse o aspecto espertamente percebido pela Rede Globo: nesses estilos o sucesso não precisa se vincular de forma direta e imediata a imagem de um artista, o que permite ao mercado fonográfico lucrar diretamente sobre outras instâncias. Assim como os participantes do programa Ídolos geram mais lucro antes de ter uma obra, a morte de Cristiano Araújo oferece maiores oportunidades de lucro fácil para mídia do que sua obra propriamente dita. Pois ainda que a canção “Bará Bará” fosse conhecida fora do circuito universitário por ser tema de novela, a associação do produto com a imagem do cantor não se fazia de forma imediata. Mesmo porque, o maior sucesso de Cristiano Araújo já tinha uma história de sucesso anterior a seu encontro com o cantor: Bará Bará foi um grande sucesso no ano de 2012, na França, gravada em ritmo eletrônico por Alex Ferrari, e virou motivo de briga entre Michel Teló e Leo Rodriguez, quando da escolha da canção para virar tema de novela, uma vez que ambos possuiam suas próprias versões da música. O sucesso da canção independe do intérprete.

É claro que esse mesmíssimo movimento que aqui descrevemos de certo modo sempre existiu. Todo mundo conhece alguém que já contou uma história triste sobre ter visto “fulano de tal” que cantava o sucesso X em uma festa Y onde ninguém sabia que ele era o compositor. Mas é justamente nesse ponto que está a diferença: participar de uma festa assim outrora era associado a uma condição de “fracasso” do artista, algo a ser lamentado como decadência deste e ignorância do povo. Entretanto, no atual momento da música brasileira, esse “fracasso” cada vez mais aparece como sua condição estrutural, o próprio modo de ser no interior do mercado musical. Estamos vivendo uma espécie de proliferação de ídolos fracassados, ou que são ídolos por meio do fracasso. É nesse ponto que tanto os fãs de Cristiano Araújo quanto os defensores de Zeca Camargo erraram o alvo, focando o debate no “sucesso” ou na ausência dele: a rigor, nas condições atuais da música popular brasileira, o sucesso do cantor se faz por meio de seu fracasso. Como sustenta o ex-produtor Pena Schimidt, vivemos um momento pós-cultura de massa em que há lugar para todos, desde que nas condições de subproletariado:

Na cultura de massa, só há lugar para o vencedor. Por isso o espanto que ainda causam todos estes segundos, terceiros e quartos lugares que estão em evidência mas que não são ‘unanimidades’. É pirante para quem acredita em marketing como era antigamente, aquela coisa de ‘satisfazer os desejos do consumidor’. Não são mais ‘consumidores’, nem ‘segmento’ e nem ‘alvo’. Somos apenas público e artistas, uma velha amizade colorida.

Essa despersonalização produz uma infinidade de “obras sem autor” que são a própria forma atual do sucesso. A lógica é a mesma do youtube, e não diz respeito a qualidade das obras, pois é uma condição que precariza(liberta?) a todos: por melhor que sejam os vídeos do Portas dos Fundos, por exemplo, e ali existem obras de grande valor estético, eles precisam produzir conteúdo semanalmente, pois é só essa repetição incessante que faz com que não o percamos de vista em nenhum momento, que torna possível a associação entre os produtos e a marca Porta dos Fundos. A ideia de produzir seis ou sete vídeos por ano e se tornar um grande nome do universo virtual é obviamente absurda, tão distante quanto parecia ser possível para o universo literário, ou cinematográfico.

Mesmo aqueles casos dentro do sertanejo universitário que não seguem completamente essa regra – diferente daqueles que criticaram fortemente Zeca Camargo, em sua maioria ilustres desconhecidos fora de seus respectivos circuitos – são na verdade inversões de uma mesma lógica. Pois o oposto complementar de produtos sem imagem são aquelas imagens sem produto. É por isso que sustento que aquele que talvez seja o principal nome do meio – Michel Teló, ao lado de Luan Santana – é também representante, em outro nível (uma vez que se trata nesse caso de um artista conhecido para além de seus nichos específicos), dessa mesma precarização.

O caso de Michel Teló é consideravelmente mais complexo, por apresentar interessantes aspectos que marcam uma espécie de “transição”. Concordo com o que sustenta Gustavo Alonso, para quem o sucesso de Michel Teló representa o amadurecimento – ou a formação – do sertanejo universitário, agora devidamente graduado. Depois da febre de Ai se eu te pego, o adjetivo universitário desapareceu, ainda que a sonoridade permaneça a mesma, marcando um novo estágio de legitimidade, sem dúvida. Mas será que esse new-sertanejo possui o mesmo estatuto do anterior, marcado pelo sucesso de nomes como Leandro e Leonardo e Chitãozinho e Xororó? A própria posição de Teló é marcada pela ambiguidade.

Por um lado, ele é autor de uma série considerável de hits que, ao contrário dos casos que acompanhamos, são sim associados a sua imagem (“Fugidinha”, “humilde Residência”), que tem assim certa consistência – maior do que a de Luan Santana, que para muitos é apenas uma imagem dissociada de canções – sendo um dos poucos a ultrapassar a esfera de influência do gênero. É fato que Teló possui uma “densidade” maior do que outros ídolos precários, e não é por acaso que ele é o atual representante sertanejo no programa The Voice, ocupando o lugar que era de Daniel como figura de autoridade. De fato, parte de seu trabalho consiste em realizar as mediações entre o sertanejo ex-universitário e o universo da música sertaneja graduada. Seja por meio de programas televisivos, ou livros, Michel Teló vem assumindo para si esse papel de mediador.

Contudo, o sucesso de Teló não foi fruto de uma construção consistente da indústria fonográfica, como seria o caso tempos atrás. Além de todo trabalho duro do artista no Brasil, seja ele de massa ou não, o fato é que Teló estourou, por assim dizer, por acaso, como já discuti em outro texto sobre as relações de complementariedade entre a crítica “à esquerda” ao sucesso de Ai se eu te pego no exterior, e o apoio popular “à direita” a atuação violenta da polícia militar no interior das universidade públicas:

O mais curioso, interessante ou assustador, a depender da perspectiva, é que seu sucesso não foi fruto de uma estratégia de lançamento internacional minuciosamente planejada (creio que sua produtora ou gravadora sequer teriam forças para esse empreendimento). No que pude averiguar – e aqui posso estar enganado – o movimento foi mais ou menos aleatório (é claro que no interior de um sistema altamente gerenciado, ou administrado, para ressuscitar uma expressão algo “fora de moda” dos frankfurtianos) e se deu para além das determinações diretas da Indústria Fonográfica. Neymar, mais novo xodó arrepiado dos brasileiros, craque de bola e fã declarado do artista, comemorou alguns gols fazendo a coreografia da canção. “Delícia… Delícia… Assim você me mata”. Na sequência, alguns jogadores brasileiros também fizeram a dancinha na Europa e, sobretudo, ensinaram para alguns craques consagrados do futebol europeu, como Cristiano Ronaldo. Depois disso, a moda foi se espalhando e versões da canção com a dança começaram a circular na rede (algumas inclusive muito interessantes, como a que mostra soldados israelenses fazendo a coreografia, o que acaba conferindo uma dimensão inusitadamente sombria para os versos “Aí se eu te pego”), chegando a assombrosos números de acessos na rede. E o verão mundial nesse ano foi verde-amarelo.

Não fosse a dancinha feita por Neymar, que agradou a outros jogadores milionários, Ai se eu te pego jamais se tornaria o fenômeno que é. Digamos que faz parte da precarização do sistema fonográfico esse vínculo estrutural inorgânico com outras áreas da indústria de entretenimento que geram os lucros de sempre, mas cujas relações são mais arbitrárias do que um sistema rigorosamente controlado. O que, aliás, é próprio do modelo de organização “liquida” da pós-modernidade. Isso faz com que mesmo no programa The Voice, a imagem do cantor seja menos “consistente” – e isso não diz respeito apenas ao tempo de carreira, mas também ao modo como essa carreira se constitui. Teló está ali porque canta, produz, toca, rebola e apresenta um bom programa de música sertaneja. Alguém que está sempre a vista, trabalhando simultaneamente em diversos campos para se fixar na mente cada vez mais volúvel do grande público. Ou seja, ele faz basicamente o mesmo que Rômulo Fróes, mas no campo mais diretamente massivo, com muito mais grana, mostrando que a precarização é antes um dado geracional, algo da ordem das novas formas de organização do sistema musical.

Ordinária!

Acredito estarmos diante de uma possível saída encontrada pela indústria fonográfica, que se reconfigura para continuar abocanhando a maior fatia do bolo, como sempre. Evidentemente que afirmar um processo mais intenso de precarização nos termos aqui colocados não significa que as obras massivas dos anos noventa eram mais “consistentes” em comparação com as de agora – a percepção nostálgica de que bom mesmo era o ruim de antigamente. Simplesmente o mercado musical, que tem os vencedores de sempre, encontrou um meio de descentralizar-se para continuar lucrando em novas frentes mais fragmentárias, em que não é mais necessário associar um produto a uma imagem específica, o que é mais adequado aos tempos atuais.

Evidentemente que tal mudança obriga-nos a rever as críticas por demais apressadas da produção em massa dos ídolos dos anos noventa, por exemplo. Uma crítica bastante comum é a que sustenta que um grupo como É o Tchan poderia ser substituído por qualquer outro, pois tudo o que importava no fim das contas era o lucro da gravadora e a produção da mesmice sonora. Essa leitura evidentemente peca pelo excesso de generalização, que faz perder de vista os aspectos mais sutis do processo. Não se trata de afirmar a qualidade estética do grupo – ainda que existam questões estéticas a se compreender – mas de reconhecer que parte do segredo da coisa estava na articulação publicitária entre imagem e produto, e nas relações de necessidade artificialmente estabelecidas entre ambas. Era precisamente a realização bem sucedida dessa articulação que costumávamos chamar de “sucesso”, a criação de uma articulação imaginária que estabelecia um vínculo de necessidade entre a imagem do grupo e um conjunto de canções mais ou menos descartáveis. Não por acaso, um dos principais atrativos do grupo e que ainda hoje é nostalgicamente lembrado por quem era adolescente na época são as famosas coreografias, cuja função era estabelecer uma conexão não apenas entre a banda e seu público, mas entre sua imagem e a música. Como nos exemplos clássicos da publicidade – e a Coca Cola é o modelo paradigmático – o que estava em jogo era a articulação imaginária entre aquele sabor (cuja fórmula é um grande “mistério”, menos por desconhecimento do que pelas proteções violentas de patente) e aquela marca específica.

Se compararmos o sucesso do grupo É o Tchan com o fenômeno Calcinha Preta nesse ponto, a diferença salta aos olhos: o Calcinha Preta é visivelmente uma franquia com diversas núcleos descentralizados – a quantidade de formações da banda é maior do que seus anos de existência – podendo inclusive realizar simultaneamente dois ou três shows em diferentes pontos do país. A articulação imaginária entre forma e conteúdo não é mais necessária e não causa escândalo, ainda que o público possa preferir um ou outro artista. No auge do É o Tchan, esse grau de permissividade não seria possível. E quando ocorria de haver uma mudança – como a saída de Carla Perez – isso se transformava em um evento midiático de grandes proporções, com concursos televisivos que duravam meses em busca da “Nova Loira\Morena do Tchan”, cuja função era aproximar o público dessa nova personagem de forma não traumática, e de quebra ganhar pontos nada desprezíveis de audiência. Nesse caso o cuidado justificava-se pela necessidade de garantir para o público que, apesar da mudança radical, o grupo permanecia o mesmo em essência. No caso do Calcinha Preta, ao contrário, as mudanças estão estruturalmente assimiladas a própria constituição do grupo, de modo que é possível substituir tranquilamente o conceito de grupo pelo de franquia sem causar nenhum trauma, pois trata-se mais de uma marca que organiza diversos eventos diferentes, sendo a música e a banda apenas um dentre eles. Digamos que aquela crítica que afirmava que o É o Tchan poderia ter qualquer forma dado o caráter pasteurizado do som – que fazia perder de vista outras maneiras de se estabelecer vínculo entre forma e conteúdo, ou imagem e produto – é assumida pelo Calcinha Preta enquanto princípio de organização.

Podemos dizer que em seus momentos mais radicais não existe mais um grupo associado a uma obra específica, mas um modelo de gerenciamento descentralizado que capitaliza todas as esferas, rebaixando ora o artista em detrimento do sucesso, ora a obra em detrimento da imagem. Ambos os movimentos partem de uma mesma impossibilidade de se reproduzir o mesmo esquema de sucesso vigente até então, seja para MPB, seja para a canção mais diretamente comercial, que buscava associar certa imagem a um determinado conteúdo, seja este pasteurizado ou não. Caso a associação não vingasse, o artista simplesmente desaparecia, pois a ideia de um produto materializado se fazia fundamental para a lógica industrial. A atual descentralização faz com que haja uma proliferação de artistas sem obra e obras sem artistas, e mesmo franquias no lugar de grupos. Tal lógica sempre existiu de certo modo, mas agora como que se torna o padrão hegemônico, aparecendo para alguns como o fim da música, e para outros como um horizonte de sobrevivência de tipo novo. De todo modo, uma concepção aparentemente simples como a de “fazer sucesso” definitivamente não significa mais a mesma coisa.

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