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Prince e o triunvirato do POP

Confesso que conhecia muito pouco da obra do Prince. Nada muito além daquele básico de sempre. Kiss, Purple Rain e afins. Como tantos outros, comecei a me aprofundar um pouco mais em sue trabalho ao saber de sua morte. E tive uma grata surpresa com a extrema qualidade de sua obra, mantida ao longo das décadas, mesmo enquanto permanecia fora dos holofotes. Sua versatilidade é absolutamente impressionante e se apresenta nos mais diversos níveis. Extremamente habilidoso com os mais diversos instrumentos – era comum gravar todos eles em seus discos – podia tocar\cantar\dançar ao lado tanto de Madonna quanto de Miles Davis. Além disso, era capaz de produzir grandes canções nos mais diversos estilos: pop, rock, soul, funk, rap, romântico\brega, experimental, jazz. Como afirmou o jornal francês “Liberation”, o músico era a improvável soma dos trinta anos anteriores de música: a pegada violentíssima de Little Richard, o soul inter-racial do Family Stone, o groove cósmico de George Clinton, as distorções de Hendrix, o talento vocal de Marvin Gaye e Curtis Mayfield o domínio pop dos Beatles. É comum inclusive que em uma mesma canção encontremos vários estilos misturados, conectados ou sobrepostos.

Acredito ser bastante esclarecedor traçar comparações entre a trajetória de Prince e a de Michael Jackson e Madonna, os outros dois “grandes” que ajudaram a definiram os rumos da cultura pop a partir dos anos 1980, e cujos impactos sentimos até hoje. Cada um deles, com suas qualidades e defeitos, ajuda a montar uma visão mais complexa desse sistema. Em relação aos três, Madonna é sem dúvida a menos provida de dotes propriamente musicais, e por isso mesmo fez do palco seu grande trunfo cênico. Dessa forma, a baixa qualidade estética de suas canções é compensada pelo simbolismo de sua imagem. Em certo sentido, ela é a mais “racionalista” dos três, apresentando uma noção bastante segura do significado comercial de sua arte. Em termos de compreensão do significado geral de sua obra no interior de um contexto específico, e pelo grau de manipulação e controle da própria imagem, podemos compará-la ao George Lucas (que até hoje vive do gerenciamento dos lucros de sua única grande criação).

Michael Jackson também possuía um senso de apurado para os negócios, ao contrário daqueles que apontam para suas maluquices e irresponsabilidade – não foi mero acaso ou golpe de sorte que ele comprou o direito dos Beatles. Mas Michael é muito mais esteticamente relevante que Madonna, ditando os rumos do que seria a arte pop até os dias atuais. Como afirma Lorenzo Mammi:

“Madonna talvez tenha sido a primeira a orientar o sistema produtivo inaugurado por Michael Jackson para um privilégio absoluto da imagem performática sobre o conteúdo musical (em Michael Jackson, ao contrário, música, imagem e dança eram todas igualmente significativas)”.

A grande realização de Michael Jackson (e sua tragédia) foi tornar-se a própria encarnação da indústria cultural em tempos globalizados. Sua obra era pensada simultaneamente em todas as frentes, de modo a conectar-se em suas múltiplas vertentes. Trilher, por exemplo, é uma canção composta para só fazer sentido junto com a coreografia e, simultaneamente, enquanto clip. É uma obra aberta que só se completa na interação dessas diferentes fontes. Hoje em dia isso se tornou norma no pop, realizando-se, sobretudo, enquanto defeito, inorganicidade. Toda canção pop hoje é para ser vista, ouvida e dançada, mas com um grande desnível entre essas esferas que, no conjunto, formam uma experiência estética barateada, a despeito (ou por conta) de sua produção caríssima. Em Michael Jackson, essas facetas independentes tem grande força por si: é inacreditável vê-lo dançando, seu talento como cantor é inegável, seus discos são incrivelmente bem produzidos, as canções tem força, os clipes causam frison. Quer dizer, todos os aspectos de sua obra tem força consideradas separadamente, mas a genialidade está em sua articulação, que triplica o impacto. Nos grandes momentos de seu trabalho pouca coisa é barateada, gostando-se ou não do resultado. Na produção da Madonna, muitas vezes a música é quase sempre mero pretexto para as imagens, com a qual ela joga de forma caprichada (o clipe de “Like a Prayer” é subversivo até hoje). Em Michal música e imagem formam um conjunto complexo e rico, organicamente estruturado e organizado literalmente por seu corpo, por seu talento absoluto como dançarino e intérprete. É seu corpo, sua benção e sua maldição, que articula imagem, música e indústria cultural, e o preço pago por ele foi aquele que todos conhecemos: ao fazer de seu corpo o lugar por excelência da Indústria Cultural, Michael se torna uma espécie de ser “monstruoso”, que quanto mais se revela mais é rejeitado pela própria indústria que o fomentou. O corpo desfigurado de Michael ao final de todos os processo de transformação é a própria imagem em negativo do sistema estético global. Daí seu caráter assustador e polêmico.

Em termos de talento, Prince rivaliza de perto com Michael Jackson, e em alguns pontos – enquanto instrumentista, por exemplo – o supera. Prince dançava muito também, mas não se preocupava como Michael em buscar aquela organicidade entre corpo e espetáculo. Sua dança era mais livre, menos coreográfica. Prince se aproxima de Madonna na medida em que explora a exaustão a imagem de grande ícone sexual, no sentido mais subversivo possível. Aliás, no campo da subversão, Prince estava um passo a frente dos outros, daí que a grande marca de sua trajetória seja a mudança do nome para um símbolo impronunciável, que deve ser compreendido em sua ambiguidade (sem o que a complexidade do artista se perde) como um gesto de excentricidade de superastro, mas também como um gesto radical de ruptura. Seu objetivo principal no caso foi retirar o poder da gravadora sobre seu nome, abrindo mão dele em nome de sua integridade artística. Integridade essa que é fácil de se perceber ao longo de sua obra, que mantém um alto grau de independência sem deixar de ser pop na maior parte do tempo (com algumas exceções). Prince quer liberdade (termo chave) para jogar com as regras do pop em sua face mais industrializada, e por isso mesmo não se presta tanto a ser sinônimo dessa própria indústria. Madonna manteve o tempo todo a desarticulação entre imagem e qualidade musical que está na base da Indústria Fonográfica contemporânea, enquanto Michael Jackson tornou-se a própria encarnação das possibilidades desse padrão, seu espírito encarnado. Prince por sua vez traz todo esse universo dentro de si, para desloca-lo, testar seus limites, levando-o para todos os lados, por vezes em uma mesma canção. Sem questionar seus pressupostos, Prince faz uma análise detida das possibilidades desse ambiente sonoro, explorando todos os seus campos – daí talvez o interesse de Miles Davis pelo músico.

No supremo triunvirato do pop com poder de fogo global, cada um deles marca sua presença de forma específica. Louise Verônica criou a imagem mítica de Madonna, a qual oferece em sacrifício ao mercado para melhor gerenciá-lo, com o mais absoluto sucesso (é a cantora que mais vendeu discos no mundo, além de ser considerada a mais rica). Sua identidade é precisamente a ausência de identidade, trocada a cada época como quem troca de figurino. Michael Jackson transformou seu próprio corpo na encarnação das possibilidades estéticas dessa indústria, tornando-se uma espécie de Cidadão Kane do período áureo da Indústria Fonográfica, encarnando todas as suas contradições que resultaram em uma imagem “monstruosa” que por fim o consumiu. Vivia, literalmente, em um conto de fadas esquizoide, sem o saudável distanciamento proporcionado pela personagem de Madonna. Prince, por sua vez, recusou-se a se tornar um símbolo da Indústria Fonográfica, ao mesmo tempo em que alimentou-se profundamente dela. Madonna aceita tranquilamente vender sua alma em troca do controle sobre os royallites do capiroto. Michael Jackson repete a tragicidade fáustica: faz o pacto em troca de autoconhecimento, invertendo realidade e ilusão, fazendo de sua vida uma grande encenação infantil – Neverland – que jamais supera a interdição paterna.

Prince fez do pop seu grande objeto de investigação. O sucesso, obviamente, faz parte dos resultados da análise, uma vez que música pop é caracterizada também pelo apelo junto ao público. Mas o sucesso é muito mais consequência do processo do que sua razão de ser, como é para a Indústria fonográfica. Prince se aproxima assim de um Djavan, ou Gilberto Gil. Fazer sucesso comercial, vender, faz parte do projeto estético desses artistas, mas não é de forma alguma sua finalidade última. É por isso que quando sente as amarras sendo reforçadas, no ápice de seu sucesso, Prince irá abdicar de seu nome, tornando-se ironicamente uma marca impronunciável que simplesmente não se presta para divulgação. Ele não faz um pacto com o diabo, mas se tranca no inferno, controlando as chaves de acesso.

Fechemos com Prince fazendo esse cover fantástico de Jimi Hendrix no festival de Montreux. pra quem pode.

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