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TOTONHO E OS CABRA (2001)

Totonho é natural de Monteiro, cidade do Cariri paraibano. Segundo relatos, seu contato com a música vem de muito cedo, desde a época em que, ainda criança, convivia com sanfoneiros virtuosos (diz a lenda que era vizinho de Flávio José) repentistas e poetas populares, com quem logo cedo aprendeu a arte de versar. Aliás, esse é um de seus principais talentos: o domínio da palavra cantada, nos mais diversos registros, tendo por base as formas de canto mais entoativas, como o repente. Com maestria rara, Totonho é capaz de transitar com naturalidade pelos mais diversos registros desses padrões de canto mais próximos da fala.

Ainda que para alguns desavisados tais registros possam parecer muito próximos entre si, a arte de “colar” o canto às inclinações da fala comporta uma infinidade gigantesca de variações, cada qual com seu próprio conjunto de regras – repente, embolada, rap, canto-falado, samba de breque, etc. E Totonho as traz todas na palma de sua mão (ou debaixo da língua), propondo variações e transitando por elas com a mais perfeita naturalidade. Além de dominar como poucos (Jorge Ben, James Brown, Noel Rosa) a arte sutil de fazer emergir o canto e a melodia “naturalmente” da fala cotidiana.

Sabe-se lá por que motivo (talvez para aprisionar a heterogeneidade e o surto criativo de Totonho em um lugar mais comercialmente palatável, ou porque tem muita gente que simplesmente não consegue diferenciar Paraíba de Pernambuco) a crítica da época procurou enquadrar sua obra no interior do movimento manguebeat. Contudo, a singularidade de sua produção se aproxima muito mais do trabalho de um grupo como o Cidadão Instigado do que da proposta dos caranguejos antenados da Nação Zumbi ou do Mundo Livre. Não em termos da sonoridade propriamente dita, que é muito diferente, mas em relação a essa impossibilidade de enquadramento, que coloca essas obras em um estado de permanente deslocamento. Momentos singulares de ruptura radical e cisão.

A imagem da parabólica fincada no mangue não se aplica de todo ao caso de Totonho, pois o próprio conceito de fusão, ou mistura entre elementos distintos (“moderno” e “tradicional”) não funciona bem nesse caso. É claro que encontramos em seus discos a presença de elementos da cultura regional aliados a sonoridades cosmopolitas globalizadas. Mas a grande questão é justamente o modo como essa articulação é feita. Digamos assim: ao ouvir um cavaquinho – que tem origem portuguesa – sendo tocado em uma roda de samba, ninguém pensa automaticamente que está havendo uma fusão entre sonoridades brasileiras e portuguesas, pois essa “mistura”, que de fato ocorreu historicamente, está plenamente naturalizada pelo imaginário nacional. O mesmo se passa em relação ao repente, música eletrônica e rock´n roll numa música de Totonho. A mistura está a tal ponto naturalizada que não faz sentido pensar em elementos separados naquele resultado homogêneo. A percepção em separado daqueles elementos só faz sentido na medida em que facilita a recepção do ouvinte (sobretudo o especializado, que tem amor a classificações) que não está preparado para reconhecer que tudo naquele universo sonoro faz parte de uma mesma simultaneidade musical. Monteiro é o mundo.

Tudo se passa como se as bases eletrônicas, que substituem o pandeiro e sustentam as rimas e improvisações do flow repentista do canto de Totonho, fossem o acompanhamento “natural” dessas rimas desde o início dos tempos. Não faz sentido, portanto, as distinções críticas tradicionais entre regional e cosmopolita, tradicional e moderno, pois essas zonas temporais estão aqui sobrepostas sem conflito. A imagem da “mistura” não funciona nesse caso, porque já não existe conflito de temporalidades. Totonho mescla registros distintos, fazendo um repente sobre base eletrônica, mas essa mescla não aparece como fusão de dois sistemas distintos sobrepostos, e sim como uma realidade alternativa em que as coisas sempre foram assim – o que é um feito estético primoroso. A obra de Totonho habita um universo paralelo onde é possível encontrar uma Monteiro alternativa, em que tais misturas são plenamente naturalizadas. Não por acaso, o mote territorial de seu segundo disco, Sabotador de Satélites, é o espaço sideral.

Na obra de Totonho, a ilusão de que existiriam dois Brasis em nosso território (um arcaico, atrasado, e um moderno, cuja missão histórica seria livrar o outro do atraso), que durante muito tempo foi a ideologia predominante no país, é radicalmente desfeita. Não existe aqui nenhuma romantização, positiva (folclore) ou negativa (atraso), do regionalismo. Diga-se de passagem, tal processo de naturalização da mistura só seria plenamente consolidada no cenário musical anos mais tarde (para a nova MPB essa distinção entre moderno e tradicional não faz mais sentido), o que explica em parte a dificuldade de difusão desta obra, apesar de seu apelo profundamente popular. Totonho, à frente de seu tempo, anunciava que no futuro as próprias coordenadas temporais seriam radicalmente modificadas.

Creio que a imagem de alquimista do som, ainda que clichê, reflete bem o sistema sonoro desenvolvido por Totonho. Fica evidente em canções como Segura a cabra (releitura de uma canção gravada por Genival Lacerda em 1977) que, mais do que misturados, os estilos, gêneros e temas (da tiração de onda com o marido traído a canção passa naturalmente para o campo da crítica social) são habitados com naturalidade por um sujeito que se utiliza de cada um deles com pleno domínio de causa. É como se Totonho houvesse enfim descoberto a fórmula de transmutação que permite propor uma base comum a unir hardcore, repente, rap e música eletrônica, fazendo com que a matéria sonora assuma novos e inusitados sentidos.

Totonho, venha salvar o mundo!

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