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Funk Como Le Gusta e a cena Black enquanto “manifestação musical” no Brasil

Algumas vezes creio ser bastante útil transpor categorias próprias à crítica literária para o campo da música popular (sobretudo quando esses conceitos têm já em suas origens a vocação para articular o campo estético com o social), ciente de todos os riscos implicados nesse movimento, sujeito a simplificações e equívocos de toda ordem. Nesse sentido acredito ser possível fazer uso da distinção estabelecida por Antonio Candido – logo no início da sua Formação da Literatura Brasileira – entre “manifestação literária” e “sistema literário”, para compreender alguns fenômenos interessantes da nossa música.

Grosso modo, manifestações literárias seriam aquele conjunto de obras produzidas no Brasil que, a despeito de sua qualidade, não acabam por formar um sistema próprio, assentada no tripé autor-obra-público. Ou seja, um conjunto de obras que não formam um campo específico com ressonâncias e desenvolvimento orgânico, obras que não chegam a formar um sistema consistente e de amplo desenvolvimento. No caso da literatura, o exemplo mais polêmico desenvolvido por Candido é o de Gregório de Matos, “excluído” pelo crítico do processo de formação da nossa literatura. Transpondo para o campo da música popular, podemos imaginar como exemplo de sistemas bem sucedidos os casos do forró, do Brock, da MPB e do samba, evidentemente. Todos esses “sistemas” – inseridos no interior do macro sistema cancional brasileiro – apresentam um conjunto reconhecível de obras e autores, que fazem referência entre si, com um público consistente e cujos desenvolvimentos estéticos e culturais são absorvidos historicamente, atravessando as gerações. Assim, “reconhece-se”, mesmo que indiretamente, a “presença” de Noel Rosa, Ary Barroso, Ismael Silva, Silas de Oliveira nos sambas de Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz e João Nogueira.

No mesmo sentido – e apesar do conceito de Candido se referir ao campo literário como um todo, e não a gêneros e movimentos em seu interior – acredito ser possível afirmar que a Black Music nacional forma mais um conjunto rico e complexo de “manifestações musicais” do que um sistema. Essa afirmação não tem a ver diretamente com apreciação estética, tratando-se de uma observação mais “sociológica”. É claro que temos grandes artistas da nossa black music tupiniquim, incluindo vários discos que podem ser consideradas obras-primas da música nacional (os trabalhos iniciais de Tim Maia e sua fase Racional, “Maria Fumaça”, “A Bad Donato”, “Africa Brasil”). Entretanto esses trabalhos são compreendidos enquanto participantes do campo da música brasileira em geral, e não da música soul brasileira. Tim Maia é nosso maior soulman, mas ninguém o classifica dessa forma. Ele é brasileiro, não black. Completamente diferente de artistas como Raul Seixas e Rita Lee, que pertencem ao campo música brasileira sem perder a identidade roqueira. Nesse sentido, ainda que atravesse praticamente todos os momentos relevantes da música brasileira desde os anos 1960, a black music é marcada por sua invisibilidade.

Um exemplo paradigmático é a figura de Jorge Ben, um dos mais criativos e originais nomes da tradição black nacional. Sua contribuição é absorvida por diversos campos da música brasileira, da MPB ao rap, passando por certa vertente paulista de samba-rock e mesmo do pagode romântico paulista dos anos 1990. Ou seja, Jorge Ben participa de diversos campos importantes da música brasileira, sobretudo aqueles que tencionam certa concepção de encontros culturais mestiços. Entretanto, ele não é compreendido como um compositor de Black Music (grande pare de seu deslocamento no período áureo da MPB dos anos 60 deve-se a essa incapacidade de classificação). Ora esse movimento pode ser explicado em parte por conta dessa inconsistência do sistema soul\funk brasileiro, que nos leva a um segundo efeito importante: a sensação de descontinuidade e interrupção de fluxo a cada nova “onda” black internacional. Sensação a um só tempo falsa e verdadeira. “Verdadeira” na medida em que de fato diversos desses artistas parecem não deixar “seguidores”, impressão que é, sobretudo comercial: são incontáveis os números de artistas excelentes como Di Melo, Cassiano, Hyldon, Tony Tornado que não encontram mercado para seguir produzindo seu som. Mas mesmo casos de sucesso comercial parecem interromper-se em si mesmo: quem é afinal, o grande continuador de Tim Maia (não digam Ed Mota, por favor!)? No caso de Jorge Ben, inclusive, nomes como o de Bebeto são tratados não como seguidores de um estilo, mas como plagiadores de uma dicção única. Entretanto, essa impressão também é “falsa” na medida que os impactos dessas grandes obras funk\soul são sentidas e diluídas por todo o campo da música popular. É evidente que a história da música brasileira seria completamente outra não fosse a presença de Jorge Ben. E o mesmo se pode falar da influência subterrânea do soul e do funk em estilos tão diversos como o samba rock, o rap, o manguebeat, a jovem guarda, (que é metade Monwtown, metade ieieie), o pagode, o brega, etc. Influência que se verifica por todos os lados, sem que, entretanto, se forme um campo específico permanente (as razões são diversas, mas creio que o grande obstáculo para o desenvolvimento do sistema Black é a longa tradição mestiça, que a incorpora e subverte em benefício próprio).

A partir desse conjunto de problemas podemos nos voltar enfim para a trajetória de um dos mais importantes grupos de Black Music made in Brasil dos últimos tempos, o Funk Como Le Gusta, ou simplesmente F.C.L.G. A trajetória do grupo é ao mesmo tempo expressão do vigor da música black nacional, de seu potencial estético de altíssimo nível, e das dificuldades de se manter fiel a um gênero que não se organiza enquanto sistema consistente. O F.C.L.G. está organicamente vinculado a um movimento mais amplo que toma fôlego ainda nos anos 1990, articulando artistas dos mais diversos campos em torno de uma tradição black brasileira, sobretudo por conta do resgate feito pelo Hip Hop, que literalmente muda a cara da produção musical no país. Além disso, o FCLG acrescenta a suas zonas de interesse a presença de certa tradição de música latina, como a salsa, e a cumbia. Não por acaso seu álbum de estreia (Roda de Funk, de 1999) é um dos discos fundamentais para se compreender uma parte importante da cena musical no país nos anos 1990, e a força que a tradição negra\black que não passa pelo samba possuía na década (marcando presença em alguns dos mais importantes trabalhos da história da música brasileira, como “Sobrevivendo no Inferno”, dos Racionais e “Rap é Compromisso”, de Sabotage, para ficar em dois exemplos). O disco trazia diversas ritmos (salsa, funk, samba-rock, blackspoitation) distribuídos por mais de uma hora em um clima de baile que também propunha a releitura de clássicos da nossa tradição black – “Olhos Coloridos”, de Sandra de Sá, “Meu guarda Chuva” – além de lembrar nomes completamente esquecidos até então, como Noriel Vilela, o famoso 16 toneladas. Foi um grande sucesso e ajudou a consolidar a carreira de nomes como Paula Lima.

Entretanto, como tende a acontecer com as manifestações culturais que não chegam a formar um sistema, toda essa conjuntura favorável (que envolve também uma reconfiguração completa dos esquemas de produção e distribuição musical) acabou perdendo força, e o sucesso da estreia não se repetiu no trabalho seguinte (F.C.L.G., de 2004) lançado cinco anos depois, a despeito de sua qualidade musical. Aliás, de toda aquela cena cultural de revival e incorporação da tradição soul\funk, creio que os artistas de maior destaque foram Seu Jorge (que segue fazendo muito sucesso no circuito comercial) e o trabalho solo meteórico de Marcelo D2 (esse anda meio sumido). O restante foi sendo deslocado do mainstream.

Por volta de 2008 (ou um pouco antes) a internet brasileira “descobre” o talento de nomes como Mulatu Astakè e, sobretudo, Fela Kuti, causando um verdadeiro boom afrobeat em território nacional, com resultados interessantes como as bandas como Bixiga 70 e Abayomi Afrobeat Orquestra. O sucesso (sempre pensando aqui em termos de mercado alternativo) do “novo” gênero e da descoberta de variações afro dos estilos americanos acaba por se sobrepor ao funk e ao samba rock, que não deixam de ser tocados e produzidos com competência, mas sem dúvidas são deslocados da zona afetiva principal do circuito black alternativo.

Diante desse novo quadro, bem menos favorável do que do início dos anos 2000, é que o F.C.L.G. lança aquele que é um dos seus trabalhos mais poderosos até então: A Nave Mãe Segue Viagem, de 2015. Nele o grupo se mantém fiel a seus princípios, aprimorando alguns aspectos e incorporando elementos da abertura de horizontes musicais pós 2000, sobretudo a descoberta de variações de funk\soul para além do território americano (“Wati Wati”), e a redescoberta de clássicos nacionais dos anos 1970. “Você verá” apresenta um groove cru que lembra o melhor Tim Maia dos anos 1970. Aliás, no geral o disco é mais “chão” e pesado do que os anteriores. Um belo exemplo é a primeira música, “Autocarro Veloz”, um dos sons mais poderosos que ouvi nos últimos tempos, daqueles que pareciam ter sido sepultados no auge da produção de George Clinton, lembrando os melhores momentos do clássico de João Donato “A Bad Donato”. “Papa Girl” é outra pauleira, mas o disco também caminha muitíssimo bem pelas pegadas mais suaves e sensuais, como em “Motown Song”, ou “Som de Preto” – essa, que segue em um registro mais pop, tem alguns dos solos mais empolgantes do disco. O disco só perde um pouco do peso lá pelo final (Yeah Yeah Yeah) mas apenas para recuperar o folego com o sensacional jazz funk “Tudo no Lugar”.

Ao longo desses quase 20 anos o F.C.L.G. adquiriu experiência suficiente para se tornar um dos mais consistentes grupos instrumentais de música negra brasileira, e a qualidade excepcional de A Nave Mãe Segue Viagem prova, mais uma vez, a força dessa linguagem.

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