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Racismo, antirracismo e militância virtual: sobre o caso de racismo envolvendo Elika Takimoto

Li finalmente o texto da professora Elika Takimoto, responsável pela mais recente polêmica sobre racismo no Facebook. Quem me acompanha por aqui sabe que no geral eu tenho muitas críticas às polêmicas envolvendo a militância virtual 2.0, que vão desde problemas com conceitos como “lugar de fala” ou “protagonismo”, até críticas ao caráter moralista e conservador de algumas posturas aparentemente progressistas, passando por aquilo que eu considero como simples erro de estratégia. Já passou da hora dessa militância reconhecer que não é por acaso que os resultados de seus protestos são quase sempre bem problemáticos, e que se as pessoas cada vez mais se voltam contra aqueles que a princípio estão denunciando o preconceito, não é simplesmente porque todo mundo aqui – com exceção da parte interessada – é um bando de canalha racista. Existe algo de podre na própria estratégia mobilizada.

Evidentemente que continuo sendo contrário ao escracho e ao linchamento virtual nesses casos. Acho um absurdo que se divulgue o contra cheque, CPF e endereço da professora, junto com uma foto de seu rosto com a legenda “racista”. E não é nenhum despropósito o fato da professora temer por sua integridade física: basta nos lembrarmos do caso da torcedora gremista Patrícia Moreira, acusada (justamente) de racismo em 2014, e que teve sua casa incendiada. Casos como este demonstram a complexidade da questão, que não se resolve por meio do binarismo expresso na luta do bem contra o mal. No caso de Patrícia, é bem provável que sua casa tenha sido incendiada por outros torcedores gremistas, em represália não necessariamente ao racismo (Patrícia não é a única torcedora racista), mas pela exposição negativa da imagem do clube. Da mesma forma, o binarismo não ajuda a entender porque figuras declaradamente machistas e pró-estupro em casos “justificáveis”, como o deputado Jair Bolsonaro (lembrando sua afirmação de que a deputada Maria do Rosário não merecia ser estuprada por ele), são os maiores defensores da castração química de estupradores. Quem é o mocinho nesses casos?

Entretanto, sou francamente favorável à denúncia da dimensão racista presente no texto da professora (ainda que discorde do seu linchamento). Sobretudo porque a história viralizou como exemplo oposto, de uma postura pedagógica antirracista, quando na verdade se trata de um fanfic que descaradamente celebra o crescimento espiritual de uma mulher branca libertadora dos pobres negros coitadinhos. A boa e velha síndrome de Princesa Isabel, coerentemente identificado por companheiros ligados ou não a militância negra antirracista. De fato, o lugar no qual o texto coloca os alunos negros cotistas é extremamente caricato e problemático. É possível acreditar que alguém não saiba como segurar um lápis? Ainda mais se considerarmos que aqueles alunos fizeram uma prova para entrar no CEFET. Se não sabiam segurar um lápis, o que eles fizeram? Lamberam o papel? O desconhecimento de discussões elementares sobre desigualdade racial atravessa todo o texto.

Lembro-me de quando, em meados de 2002, começou-se a discutir entre os alunos e alguns professores (sem a participação da instituição) a questão das cotas raciais na USP. Integrantes do movimento negro debatiam então sobre a necessidade de garantir não só o acesso, mas a permanência dos alunos, que partiam de condições absolutamente desiguais em relação a alunos egressos de colégios particulares tradicionais. Pensava-se então em uma série de resoluções práticas que envolvia assistência estudantil, cursos extras, condições de moradia e transporte, etc. É claro que logo depois descobriu-se (não na USP, mas em outras universidades que adotaram as cotas) que os cotistas eram muito mais capazes do que se supunha, e que o ensino universitário brasileiro não era a última bolacha do pacote, como fazia questão de se apresentar (e que, portanto, a periferia tinha mais a ensinar do que aprender). É justamente essa mudança de mentalidade e percepção que a professora Elika parece ter perdido. Sua concepção parece ter ficado estacionada 15 anos antes, pois as questões por ela levantadas no texto são colocadas da perspectiva de quem não reconhece as transformações profundas que os cotistas já realizaram no sistema de educação superior no Brasil.

Mas, mesmo em um caso como este, em que tendo a compreender e concordar com o caráter geral da denúncia, é possível reconhecer claramente alguns dos limites, a meu ver, estruturais, desse modelo de atuação política.

Uma das reações mais enérgicas que acompanhei foi a do blogueiro negro AD Junior. Em determinado momento do vídeo em que trata do tema, AD afirma que não existe algo como racismo reverso, pois racismo é muito mais uma questão de ações práticas e instituições concretas do que de modelos cognitivos (uma percepção bastante althusseriana da ideologia, compreendida enquanto conjunto de práticas e aparelhos institucionais, o que oportunamente desloca o debate do plano da consciência). A ideologia existe nas práticas, que mobilizam conteúdos de verdade e falsidade em benefício de algum sistema de poder. Os mais diversos grupos (brancos, negros, japoneses, chineses) podem apresentar pensamentos preconceituosos, mas o racismo é, no limite, definido estruturalmente, e só acontece de cima para baixo. Daí a impossibilidade de racismo reverso. Concordo em grande medida com esse raciocínio, e gostaria de reler o texto da professora a partir dessa perspectiva, ou seja, em relação a dimensão prática daquilo que foi por ela narrado.

Em termos de prática efetiva, podemos recontar a história da seguinte maneira. Inicialmente temos um colégio com um quadro docente e gestor sem nenhuma qualificação para lidar com a realidade de um grupo sócio racial que nunca havia tido a chance de entrar naquela escola. Diante desse diagnóstico, a escola toma uma série de medidas cujo objetivo é adequar-se a nova realidade imposta pela presença daqueles alunos, em um trabalho árduo e contínuo que envolve toda comunidade escolar (gestores, professores e alunos). Os resultados são francamente positivos, pois em menos de um ano a disparidade existente é resolvida. Estamos, pois, diante de um caso de uma escola que teve de se repensar, criando um novo modelo pedagógico ao reconhecer a dimensão racista e excludente de seu padrão anterior. Em termos práticos, portanto, temos um resultado claramente antirracista que, aliado as políticas de cotas, ajuda a sanar desigualdades históricas, a despeito das percepções preconceituosas dos membros de seu corpo docente.

Contada nesses termos, a mesma história se torna muito mais aceitável, e até onde pude acompanhar ninguém acusou a escola de ser racista. Onde está, pois, o problema? Justamente na forma do relato, nas categorias mobilizadas pela professora para contar as coisas a partir da perspectiva de superação do branco civilizador. O problema está, pois, na visão preconceituosa da professora. Mas podemos dizer que existe, contudo, outro elemento fundamental aqui, para além da denúncia do preconceito, e que é próprio da militância que atua por meio do monitoramento de escrita e imagem virtuais. Não apenas nesse caso, mas em quase todas as outras polêmicas de Facebook, está em jogo a avaliação de uma determinada maneira de narrar. A questão aqui é ética, moral e, sobretudo, narrativa. Esse é um ponto a meu ver fundamental: não se trata apenas de julgar moralmente o preconceito da professora (alguns de seus amigos e alunos negros sustentaram que ela não é racista), mas de avaliar narrativamente forma e conteúdo de seu texto, para, a partir daí, estabelecer juízos éticos e definições de bom e mal dizer. O que está em jogo, portanto, para além da denúncia do preconceito, são as estratégias ficcionais mobilizadas pela professora em seu relato, como se ela tivesse contado “errado” (de forma preconceituosa) uma história que, no fim das contas, está “certa” (a trajetória de um movimento de superação do racismo). Sua condenação parte dessa inadequação entre forma e conteúdo, cujos critérios são definidos anteriormente pela militância que se coloca, assim, enquanto espaço de produção da Verdade.

Esse deslocamento é essencial para definirmos o modus operandi da militância virtual, que atua sempre a partir de diversas formas de mediação on-line e que, portanto, sempre se movimenta a partir de narrativas. Construção narrativa que não se limita a definição das personagens (quais devem ser as personagens principais da história? o que eles podem ou não falar?), mas de organização do ponto de vista, tempo, ação, espaço, foco narrativo, tom, ritmo, etc. Trata-se, em grande medida, de uma questão de linguagem, de disputa discursiva, da definição do jeito mais eficiente de contar uma história, de modo a capitalizar o maior número possível de adesões e likes. A delimitação de formas adequadas e inadequadas de se veicular um determinado tipo de conteúdo. A luta contra o preconceito se torna, nesse contexto, um conjunto de normas e padrões que determinam como e por quem as coisas podem ser ditas, com a definição de quais personagens são adequados para tratar de quais temas (quando e como um branco deve falar, quando e como um homem deve falar, etc). Ao focar no plano narrativo, a ação política se converte em uma tentativa mal sucedia de estabelecer regras retóricas para cada lugar de fala. Ou, para sermos mais diretos, se transforma em uma grande cagação de regra.

Tal modelo de atuação é ao mesmo tempo, profundamente frágil e potencialmente devastador, a depender se o olhar dirige-se para horizontes globais de transformação ou para dimensões éticas individuais. Em termos individuais, seu resultado é o escracho, que pode conduzir a efeitos concretos bastante perversos. Isso porque a distinção entre ficção e realidade tende a desaparecer em espaços como o Facebook, zonas virtuais onde tudo é já ficção e, ao mesmo tempo, real. Desse modo, relatos de Facebook são tomados como imagens exatas do real: uma postagem preconceituosa de um ano atrás se torna prova incontestável do caráter essencialmente racista de quem postou; uma imagem de um pai branco carregando seu filho adotivo negro fantasiado de personagem da Disney não é apenas uma estupidez ingênua, mas prova incontestável de que o sujeito é um monstro racista que adotou uma criança negra apenas para ter o prazer de humilhá-la publicamente. Como bem disse o parceiro Thiago Coutinho, na internet cada vez mais discursos e ideias são localizadas em “lugares”, e não em tempos, o que resulta na transformação do equívoco e do erro em uma condição do ser, que não pode ser negociada, esclarecida e resolvida. A lógica da viralização exige personagens planas.

No fim das contas, ao borrar-se a distinção entre real e ficção, o que está em julgamento é determinada performance, que por isso mesmo é avaliada em termos estéticos (narrativos) tornados valores éticos: se uma youtuber bem aceita pela esquerda como a Jout Jout posta um vídeo com conteúdo racista, os fãs de sua performance\vida irão se retirar em massa de sua página, o que faz todo sentido no interior daquela lógica (youtubers transformam literalmente seu próprio cotidiano em trabalho artístico, borrando definitivamente as distinções entre arte, vida e trabalho, de modo a fazer do próprio ato de existir um trabalho perpétuo – e bem remunerado. Ou seja, nada mais próximo do inferno). Essa lógica geracional, no entanto, passa a regular nosso modo de posicionamento cognitivo diante de outros aspectos da vida, como a política, a cultura, outros padrões estéticos, etc. Não surpreende, portanto, que o fato de Belchior ser um pai ausente reprodutor do machismo seja mobilizado como um aspecto que diminui diretamente (e é essa relação direta que está em questão: não é apenas a imagem que é arranhada, mas a obra) a qualidade estética de sua produção. Ou que o machismo de Marcelo Freixo seja prova incontestável da falsidade de toda sua luta pelos direitos humanos. A imagem transformada em meme para viralizar precisa ser esvaziada de toda complexidade, para garantir a adesão integral de seu público alvo. Obviamente, os efeitos disso na vida prática, que não se pauta por binarismos, podem ser devastadores.

Em termos mais gerais, contudo, tal modelo de militância centrada nas redes sociais mostra-se profundamente frágil. E um dos seus problemas é que, no geral, o conjunto de respostas geradas a partir de suas intervenções são também construídas em termos narrativos, como se tudo se resumisse a utilizar o jargão correto. Basta, pois, seguir o roteiro moralmente correto, usar o tipo de jargão e o padrão narrativo adequado, com as personagens certas, sem se esquecer de apontar o tempo todo para os hereges e pecadores encontrados pelo caminho, para garantir likes e seguidores. Ou seja, é muito fácil ficar bem na fita, pagar de macho\mina descontruidão da porra, sem alterar em absolutamente nada o conjunto de práticas efetivas e cotidianas. Da mesma forma, dado a fragilidade e indefinição de base dos pressupostos (cujas regras são guardadas pelos próprios militantes), é muito fácil ter sua carteirinha de esquerda confiscada – basta vazar aquele áudio safado mandado em um contexto privado, ou aquela zueira que você fazia na adolescência. Transformando questões complexas em uma luta do bem contra o mal, a militância digital contenta-se com o papel de reguladora da norma culta mais adequada aos debates políticos. Os limites da militância lacradora são os mesmo da lógica do politicamente correto.

Lembro de um texto recente da jornalista Eliane Brum sobre a polêmica do turbante, que viralizou entre a esquerda. O texto segue passo a passo a cartilha da esquerda digital, de modo exemplar: é escrito em formato de carta, demonstrando simpatia e acolhimento pelo destinatário (no caso, Thauane Cordeiro, a moça branca que usava turbante por conta do câncer); o tempo todo reafirma o privilégio de mulher branca da própria Eliane Brum; abre espaço no corpo do texto para o relato de mulheres negras, etc. Receita de sucesso. Foi preciso a intervenção de alguns liberais para mostrar o quanto havia de problemático na postura paternalista da jornalista, que infantilizava e silenciava sua “interlocutora”, ao mesmo tempo em que encenava uma suposta relação de acolhimento, didaticamente encenada para gerar a simpatia de seus pares (a carta nunca foi enviada de fato para a moça, que também não teve espaço pra responder). O discurso edificante que agencia likes é o verdadeiro centro das preocupações. No fim da polêmica, a maioria esmagadora das pessoas ficou do lado da moça branca, e os brancos brasileiros sentiram-se todos no direito de usar turbante. Direito esse que a bem dizer não lhes era negado antes da polêmica, e que não foi usufruído depois. Nada mais vazio, portanto, ainda que com efeitos concretos sobre os envolvidos.

Por outro lado, aqueles que desconhecem a cartilha “Lugar de Fala 2.0” com sua vasta relação de procedimentos morais (nunca integralmente explicitados) necessários para adentrar o clube dos “desconstruidão da porra”, correm sempre o risco de ser apontados como o inimigo da vez ao menor deslize. Pois é só na definição violenta dos hereges que a fragilidade do lugar de Verdade pode se sustentar. Não por acaso tem tanta gente procurando o “acolhimento” da direita, que também tem sua cartilha, só que bem mais divertida.

Não estou sugerindo que, por se tratar de uma questão “meramente” narrativa (a forma da ideologia por excelência) estamos diante de um problema menos importante do que as questões “verdadeiras” e “reais” (como a política partidária, ou a Lava Jato). Boa parte dos problemas concretos enfrentados pela esquerda hoje podem ser pensados em termos de perda da hegemonia narrativa. Os modos de organização dos discursos feitos pela direita são hoje mais eficientes que o modelo do escracho facebookiano à esquerda, baseado em categorias binárias antigas a meu ver altamente ineficazes: são facilmente desmontáveis, manipuláveis (nada mais fácil do que fazer um esquerdista clássico descer do salto, adotando um discurso radicalmente oposto de provocação), e simplesmente não funcionam fora do próprio espectro político (de nada adianta acusar Fernando Holliday ou Bolsonaro de racismo ou machismo em termos de combate a popularidade dessas figuras), a despeito de seu sucesso imediato em conquistar likes entre os próprios pares. É como se a esquerda estivesse se baseando no padrão discursivo das novelas mexicanas que ainda hoje são sucesso no SBT, repleta de vilões e mocinhos sem graça. Diante disso, qualquer coisa que se aproxime minimamente de uma forma mais moderna (não precisa nem ser série da Netflix, o programa do Gugu já serve, vide as estratégias de marketing de João Dória) torna-se muito mais atraente.

O problema não está, pois, em denunciar o caráter preconceituoso do discurso da professora (que é o que deve ser feito com esse e com qualquer outro discurso), mas na subordinação dessa denúncia aos objetivos definidos pela linguagem das redes sociais, reguladas por bolhas ideológicas que exigem simplificações e binarismos em busca de adesões imediatas. Pois tal lógica termina por realizar uma inversão perversa, tornando mais importante o algoritimo do Facebook do que a compreensão crítica do que foi denunciado. A realidade passa a ser regulada pelo filtro ideológico dos memes, conduzindo a simplificações demasiadamente frágeis que não resistem a avaliações mais sérias. Ou seja, tudo fica com cara de filme barato e fantasioso da sessão da tarde, que a militância digital tenta fazer passar como sendo a realidade. Tal método revela-se profundamente frágil, capaz de convencer somente aqueles que já estão previamente convertidos. Daí, inclusive, a necessidade de sua violência (escrachos, linchamentos, etc.), pois ali onde a lógica não sustenta os argumentos, a força emerge como forma de garantir a harmonia.

05\2017

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