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Só Surubinha de Leve nas baladinhas da esquerda Spotify?

A materialidade da Ideologia

Épocas de intensa cruzada pela moralização das artes costumam ser bem bostas. Como a nossa. Também costuma dar tudo errado: se as demandas morais vencem, a arte torna-se irrisória. E o poder de decidir o que é moralmente adequado acaba parando inevitavelmente nas mãos dos grupos mais fortes e poderosos, que fazem alianças bizarras para se tornarem ainda mais fortes e poderosos, em nome de um bem geral que progressivamente tende a se identificar com um grupo cada vez mais restrito. Consequentemente, as demandas morais, ainda que bem intencionadas, não costumam produzir os efeitos de transformação social almejados. Ações antimachistas e antirracistas, por exemplo, ao serem capturadas pela lógica punitivista do Estado, são redirecionadas para atuar a favor da manutenção do mesmo estado machista e racista inicial, somente trocando seus termos.

O funk em geral é machista, e não é pouco. É machista pra c@ralho. Mas tod@s sabem muito bem porque o Wesley é Safadão. O buraco, portanto, está em outro lugar, mais embaixo, permeado de ideologia por todos os poros.

Althusser, ao apresentar o modo de funcionamento do que ele chama de Aparelhos Ideológicos do Estado, nos oferece um exemplo interessante de funcionamento da ideologia. Caso um ateu absolutamente descrente da liturgia religiosa vá até a igreja para, digamos, agradar a sua vó, ou coisa assim, a ideologia já o “capturou”, independentemente de suas convicções mais íntimas. Pois a ideologia não está nas crenças em si, no quanto acreditamos ou deixamos de acreditar em algo, mas em um conjunto de práticas que direcionam os desejos para campos específicos de realização, em favor de determinado projeto de poder.

(É por isso que o racismo funciona perfeitamente bem no contexto brasileiro, ainda que o conceito de pureza racial, mediado pela valorização simbólica da mestiçagem, não “pegue” ideologicamente para os brasileiros como em outros contextos. Em certo sentido, o enunciado racista padrão aqui não é “Odeio negros”, e sim “Bandido bom é bandido morto”. Ainda que o enunciado não expresse racismo diretamente em seus termos, o seu efeito concreto é o extermínio e encarceramento de jovens negros, pois seu conteúdo não implica bandidos ricos e brancos, que seguem nos governando, empregando e oferecendo empréstimos a juros baixos. O interessante a se observar é que o racismo – cujo efeito concreto é o genocídio da comunidade negra – segue funcionando mesmo sem seu fundamento racial explícito, tornando-se praticamente imperceptível em termos de adesão subjetiva. Um milagre da engenharia colonial, aperfeiçoada para a nossa democracia de exceção).

A classe média Spotify balança a raba: consequências sociais

Recentemente, setores esclarecidos da classe média Spotify descobriram que funk é bom demais para dançar e sensualizar como se não houvesse amanhã, além de provavelmente representar o futuro da música brasileira –antigas hierarquizações perdem o sentido, a noção de álbum deixa de ser funcional, montagem e sobreposição eletrônica tornam-se mainstream, o próprio sentido de composição altera-se, entre outras coisas. Contudo, boa parte dessa sensação de libertação do corpo deriva da dimensão de “selvageria” e “barbárie” que o funk eleva até os limites do suportável – e como são largos esses limites! O corpo liberto, fluxo de pulsões, contém vida e morte, violência e paixão. O corpo liberado e incontido do preto pobre de periferia: eis uma coisa que a classe bem pensante nacional não sabe (não tem condições estruturais para isso) como lidar. O funk é esse corpo, exposto, vivo e pulsante, naquilo que possui de potência “obscena” incontida. Obscena em sentido amplo – no caso brasileiro, o corpo que literalmente é socialmente constituído para não existir: o morto-vivo: fora de cena. A pulsão que o processo (des)civilizatório precisa recalcar (momento de blefe do atual imperativo do gozo, que conta com a não realização efetiva dos desejos).

Do conflito, inevitável, surge a necessidade de higienização (“civilizatória?”), cujo resultado prático é deixar o Spotify limpinho. A exclusão do conteúdo do enuciado não se dá sem a exclusão do enunciador, numa equação difícil de resolver, mas que em sua atual resolução agrada tanto direita quanto esquerda, que comemoram a vitória. Mas felizes do que eles, somente o Spotify. O melhor dos mundos.

Em casos como este, é sempre bom se perguntar: o que figuras do espectro oposto – como Bolsonaro e Nando Moura – pensariam disso? Obviamente ambos foram amplamente favoráveis a exclusão de “Surubinha de Leve” do Spotify, aproveitando a deixa para espinafrar setores da esquerda que “defendem marginais,” não querem armar as mulheres para se proteger, etc. Pode-se sempre argumentar que essa aliança de interesses entre progressistas e conservadores se dá “pelos motivos errados”. Mas as alianças não são sempre assim? Discordâncias relativamente suspensas em torno de um “bem” maior, em um futuro que nunca chega? Deve-se compreender em nome do que esses interesses se encontram no presente, e não em cálculos futuros. O que essa proibição efetivamente realiza que agrada ambos os espectros? O que ela mantém da ordem constituída, e que agrada a todos?

Pregação para convertidos: quem pode participar do culto?

Na época em que banda Apanhador Só anunciou seu fim, após acertadas pressões de movimentos identitários que denunciavam a violência de um dos integrantes da banda contra sua ex-companheira, circularam diversas reflexões interessantes sobre o caso. Em especial a de algumas mulheres que apontavam para certos limites estruturais de atitudes como boicotes e linchamentos virtuais, cujos efeitos práticos são basicamente incapazes de gerar efeitos reais de transformação na vida das mulheres em geral que consiga ir para além da bolha original, definida por padrões estabelecidos pelas redes sociais. Ou seja, tais ações funcionariam mais como um conjunto mais ou menos obscuro de regras para clubes exclusivos que pouco impacto geram para além do círculo de sócios, em geral limitando-se ao plano das compensações simbólicas as quais, diga-se de passagem, o império Zuremberg legitima e aprova.

A estratégia funciona “bem” com um grupo como Apanhador Só, que dependia diretamente do público Spotify pra sobreviver, ou com um sujeito como Gregório Duduvier, que se importa a priori com as pautas dos movimentos identitários. Pregação para convertidos. Com relação ao funk, ainda que possa vir a ter algum impacto direto sobre o artista (que rapidamente gravou outra versão, mais branda da canção) em nada atinge ao Kondizilla, por exemplo, ou os bailes, particularizando os efeitos para os alvos de sempre. Muito menos são capazes de atingir os antagonistas reais, de peso: há tempos sabemos que apontar machismo, racismo e homofobia em Bolsonaro funciona muito mais como propaganda do que denúncia. No caso do boicote de canções como Só Surubinha de Leve, seus efeitos práticos frequentemente limitam-se apenas a um espaço virtual de Streaming que se relaciona pouco com o funk, e muito com a classe que protesta.

Isso para não entrar em outras das contradições constitutivas desse modelo de patrulhamento de esquerda, como seu mal disfarçado modo de operar com dois pesos e duas medidas, como foi perfeitamente bem demonstrado em um artigo do Estadão. No emblemático caso das obras expostas no QueerMuseu, seus defensores apontavam para a diferença entre representado e representação, atentando para aspectos fundamentais, como o fato de que obras de arte não buscam literalidade, os riscos da criminalização da arte, a importância dela se constituir como um espaço em que virtualmente tudo possa ser dito, etc. No caso do funk, aparentemente nada disso vale, e se existem diferenças entre o sentido geral das obras, elas nunca são apresentadas. Afinal, existe ainda autonomia estética, esse dinossauro conceitual, ou só a mobilizamos quando convém? Note-se que a questão não é fácil de responder, a despeito do caráter tendencioso desse último enunciado. Pois, de fato, conceitos como “autonomia” e “representação” estão em cheque nos mais diversos âmbitos. Contudo, sem uma reflexão rigorosa sobre seus sentidos, passa-se de um campo a outro a depender da própria opinião, o que, aliás, não está distante da chamada pós-verdade – verdadeiro modus operandi das redes sociais.

A meu ver, a chave do problema está – mais uma vez – na distância concreta entre os lugares sociais de cada grupo, que o ambiente virtual simula não existir – como se o fato do Instagram permitir desfrutar em detalhes da intimidade do meu ídolo significasse que eu agora possa realmente frequentar a casa dele… Ao contrário, para ser funcional, tal simulação depende de mecanismos de segregação cada vez mais sofisticados, no mesmo tipo de “paradoxo” que envolve o Big Brother, “a casa mais vigiada do Brasil”, em que o termo “vigiar” deve ser compreendido em sentido amplo, tanto da parte do expectador que contempla cada detalhe inútil do cotidiano sem graça dos participantes (com o poder de torna-lo pior com seus votos), quanto no sentido mais imediato, de uma casa fortificada como uma prisão em que ninguém entra ou sai sem autorização.

Basta compararmos as estratégias de atuação da esquerda Spotify com a dos agentes efetivamente envolvidos com o funk para termos uma imagem clara dessa distância. Há tempos Tati Quebra Barraco já vem respondendo a esse tipo de funk, em um diálogo real com seu campo, sem demarcação de superioridade ética, moral ou de classe. A mesma coisa com a MC Carol, que além de refletir e responder há tempos a esse tipo de provocação, ainda dá uma bela lição moral nos manés que seguem com esse tipo de construção. “A gente sabe que isso existe (tentativas de estupro) e que isso acontece, mas vocês Mcs homens tem que parar imediatamente de reproduzir isso. Da pra gente brincar, dançar, se divertir, ganhar dinheiro, sem falar que vai dar bebida, comer e jogar na rua, ok?!”. Além de perpetuar a cultura de violência contra as mulheres, esse tipo de ideia errada queima o filme de todo mundo que está no corre do funk.

Nas soluções oferecidas pela esquerda Spotify, contudo, percebe-se que o interesse real desloca-se mais para defesa do próprio campo (ou bolha, quando se trata de redes sociais), do que para transformação real das condições de opressão, o que implicaria em uma relação real com o Outro (funkeiro) fora dos lugares definidos pelos algoritmos das redes sociais. Tais movimentos muitas vezes configuram-se enquanto verdadeiras armadilhas para os mais pobres, travestidas de luta contra a opressão. E a quebrada, longe de ser ingênua, saca o movimento e se afasta cada vez mais.

O caminho para acabar com o machismo e a violência no funk passa antes de qualquer coisa por uma relação de envolvimento real com o Outro. Nas condições atuais, só podemos esperar esse movimento vindo da própria periferia, e não daqueles para quem esse Outro é objeto de projeção. Para esses, o caminho da criminalização, que une ambos os espectros políticos, aparece como inevitável.

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