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Pantera Negra Gourmet

Confesso que assisti ao Pantera Negra sem muito entusiasmo, em parte por ter me decepcionado com Mulher Maravilha, muito elogiado como um filmaço, e ainda por cima feminista. Além de chatíssimo, arrastado (a DC não está conseguindo acertar uma depois do Batman do Nolan), passa longe do feminismo – a menos que o termo signifique contentar-se com uma piada aqui, e um clichê ali.

Não que eu tenha me decepcionado com o Pantera Negra, infinitamente superior aos últimos fiascos da DC (ainda não superei o Batman do Ben Affleck), mas não fiquei instigado a ponto de refletir muito sobre ele. Em uma primeira impressão achei um filme OK, divertido como outros da Marvel, inferior aos melhores (Guardiões, Vingadores, Guerra Civil). Até ler a análise do Zizek sobre o filme, que reacendeu meu interesse. – eis o poder de revelação da boa crítica. Uma análise simples e muito boa, cujos pontos principais destaco a seguir (mesclado com algumas reflexões próprias) .

1) Para Zizek, o conflito principal da história se dá entre dois Panteras Negras: T’Challa (o Pantera Negra herói mítico) e Killmonger (o Pantera Negra histórico revolucionário). São vários dados que apontam para essa convergência, para além da referência óbvia do nome. Killmonger cresceu em Oakland, cidade em que o partido dos Panteras Negras foi fundado. Além disso, seu desejo era o de armar a população negra para lutar contra seus opressores, como os Black Panthers originais. A proposta de T’Challa, ao contrário é bem mais assistencialista: se unir a ONU e aos EUA para ajudar os necessitados de todo mundo. Obviamente, para Hollywood, esse é o mocinho. Um Pantera Negra sem revolução, tranquilo para os brancos. Em termos mais toscos, a versão coxinha fake dos Panteras Negras toma lugar do grupo revolucionário real. Nesse sentido, a principal função do filme seria livrar o Pantera Negra de seus traços revolucionários, para trabalhar a favor do sistema que extermina negros. Pantera Negra gourmet.

2) Apesar do protagonismo negro evidente, ao longo de todo filme a plateia branca é tranquilizada, de modo a perceber que aquele protagonismo não representa nenhuma ameaça real as estruturas raciais vigentes. “Pode curtir tranquilamente essa fantasia de supremacia negra, nenhum de nós está realmente ameaçado por esse universo alternativo!”. Para Zizek, um dos pontos principais nesse sentido é o papel das agências de inteligência norte-americana: enquanto no mundo real o FBI perseguiu e reprimiu violentamente os Panteras Negras, no filme T’Challa se torna aliado da CIA (e da política imperialista norte-americana, por extensão). Protagonismo de superfície, que não arranha o principal. Mas que ainda assim, apresenta mudanças importantes na estrutura geral de filmes de herói.

3) Muito se disse também sobre a força e protagonismo das mulheres. De fato, a figura e o modo de representação das protagonistas femininas (Shuri, Okoye, Nakia) são bem marcantes, e nenhuma é relegada a papeis domésticos. Contudo, todas as mulheres no filme ocupam ainda o clássico segundo plano, a despeito de sua força.

4) Tem que ter muita boa fé pra acreditar que a principal mensagem do filme esteja na valorização do povo Africano como aquele capaz de ensinar para o Ocidente a melhor maneira de unir tradição e a modernidade com sabedoria. Essa é só a casca ideológica superficial. A mensagem real está muito mais próxima de algo do tipo “Brasil, se liga que a Amazônia é nossa. É seu dever ético compartilha-la”. “Congo, quem falou que essas riquezas são suas? Ajude a fazer do mundo um lugar melhor”. De fato, estamos diante de mais uma justificativa ética para os roubos e pilhagens que acontecem sistematicamente desde o período colonial, e que tendem a piorar quanto mais o planeta deixar de ser um lugar habitável. Note que as duas únicas opções éticas em disputa são Wakanda contra o mundo (vilão) e Wakanda junto com o mundo (heroi). Wakanda de boa na dela não é considerado uma opção pelo filme (a não ser nas figuras dos velhos anciãos, que é o ponto de partida negativo e passadista do filme).

5) Para Zizek, contudo, o filme apresenta uma dimensão contra ideológica importante. Pois o verdadeiro herói do filme é justamente Killmonger, pela dignidade que demonstra em sua postura, sobretudo diante da morte, e pela relação de solidariedade respeitosa estabelecida entre ele e T’Challa até o fim – T’Challa nunca chega a considerar Kilmonger como um vilão maligno e perverso, mas um parente (“brother”?) com divergências políticas. É como se a solidariedade do povo negro se sobressaísse ao final (solidariedade entre reis, é bom que se diga). Apesar de não poder seguir vivendo segundo os princípios de organização da narrativa, é Killmonger quem parece estar certo no fim das contas, seja o filme consciente disso ou não (como o Coringa no Cavaleiro das Trevas).

De fato essa dignidade do vilão (compare com o aspecto caricato do vilão branco) ressignifica justamente um dos pontos que eu não havia gostado no filme, que é o tom solene com que Hollywood tende a tratar temas e personagens africanos, deixando tudo com cara de Rei Leão. Uma pseudo admiração ética que no fundo é marca de exotismo e afastamento real (o lado perverso dessa admiração foi brilhantemente demonstrado pelo filme Corra!). Mas a dignidade do vilão pode de fato ser lida em outra chave.

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