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Discurso para a Câmara de Vereadores de Garanhuns

Boa noite a todos e a todas. Eu gostaria de começar dizendo que eu me sinto muito honrado e orgulhoso de estar aqui diante de vocês recebendo essa medalha de mérito literário. Uma medalha que se torna a partir de agora uma espécie de símbolo material da minha relação com o estado de Pernambuco e, principalmente, com o agreste meridional. Uma relação que se torna mais intensa a cada dia, e que tem me proporcionado muito aprendizado.

Portanto, eu gostaria inicialmente de agradecer ao Estado de Pernambuco; à cidade de Garanhuns; a mandata coletiva Fany das Manas, nas figuras de Fany Bernal, Fernanda Limão e Marília Ferro; aos Quilombos de Garanhuns, que são aquilo que a cidade tem de melhor; à Universidade Pública, que me formou e me trouxe até aqui; à Universidade de Pernambuco, que se tornou minha segunda casa; à minha companheira Viviane, por tudo aquilo que sonhamos juntos; e sobretudo a minha família (minha mãe, minha avó, meu falecido pai), e aos meus ancestrais, sem os quais eu sequer poderia vir a ser.

Eu estou particularmente feliz por estar recebendo essa medalha de mérito LITERÁRIO, uma arte a qual eu tenho me dedicando já há muitos anos, e que literalmente ajudou a moldar a maneira como eu encaro a existência. No entanto, eu não consigo parar de pensar no quão IRÔNICO é o fato de que esse reconhecimento público se faça por intermédio da literatura. Porque em certo sentido eu tenho dedicado boa parte da minha vida a falar mal da literatura.

E eu digo isso da forma mais elogiosa possível: pra mim, a literatura é uma coisa muito séria e muito preciosa para ficar sendo bajulada e tratada como artigo de decoração na casa de gente que se considera sabida. Mas o fato é que ao longo da minha vida eu tenho me dedicado a denunciar as muitas MENTIRAS que são contadas em nome da literatura, e a confrontar as diversas formas de violência engendradas por aqueles que fazem literatura.

Aos que insistem em dizer que a literatura ajuda a tornar os homens melhores, eu digo que Hitler era um grande fã de literatura, e um profundo conhecedor dos clássicos – E nem por isso ele se tornou um ser humano melhor (muito pelo contrário); Aos que insistem em dizer que a literatura é o principal caminho para acabar com o preconceito e com o racismo, eu digo que um escritor declaradamente racista como Monteiro Lobato influenciou a infância de milhares de crianças brasileiras; E aos que insistem em dizer que a literatura é uma arma contra a ignorância e a base para uma sociedade mais digna e justa, eu digo que aquilo que o Brasil tem de PIOR é justamente a sua elite letrada, diretamente responsável pela enorme desigualdade do país. Uma elite violenta, mesquinha e ESTÚPIDA, principalmente quando sabe falar dois ou mais idiomas.

É por isso que me parece profundamente irônico receber uma homenagem em nome da literatura que, coitada, não está nem aqui pra se defender.

Mas, por outro lado, é claro que eu não acredito que a literatura seja APENAS uma forma estilizada de violência. Caso contrário, eu não teria me apaixonado por ela, nem dedicado boa parte da minha vida em seu louvor. De fato, eu acredito que existe um elemento específico da literatura que faz dela um objeto muito poderoso e praticamente indestrutível: a sua extraordinária capacidade de inventar histórias.

Muitas pessoas confundem essa característica com a simples mentira. Mas inventar histórias não é sobre mentir, e sim sobre a extraordinária capacidade do ser humano de criar novos mundos.

Nesse ponto, inclusive, a literatura se aproxima muito da magia e do feitiço. E já que estamos falando de feitiço e de literatura, que são duas formas de encantamento pela palavra, eu peço licença para invocar a figura de Exu, que é o dono da própria voz.

Os mais antigos nos contam que Exu é um ser tão poderoso que ele nasceu antes da própria mãe. Dizem também que ele é capaz de realizar coisas impossíveis. Uma vez ele foi no mercado comprar azeite e voltou carregando ele em uma peneira, sem derrubar nenhuma gota. Dizem também que ele é capaz de matar um passarinho ontem com uma pedra que arremessou hoje. Isso significa que Exu tem o poder de provocar uma rachadura no tempo e reinventar o passado, da mesma forma que a arte e a literatura.

Mas eu não estou invocando Exu aqui na minha fala gratuitamente. Eu invoco EXU como quem lança um feitiço de proteção, para poder apontar uma grande injustiça que foi cometida aqui nessa casa. Pois a mesma medalha que eu estou recebendo aqui hoje foi negada ao pai Ismael, uma pessoa que faz mais pelo povo de Garanhuns do que boa parte dos que se dizem representantes do povo. Os mesmos que, por ignorância ou por maldade, dizem que Exu é o diabo. Alguns chamam isso de intolerância religiosa. Mas eu prefiro chamar as coisas pelo nome. E o nome disso é racismo.

Por isso eu dedico essa medalha tanto ao pai Ismael, que foi profundamente injustiçado, quanto a Exu, que me trouxe até aqui hoje. E quero dizer a esses falsos profetas e a esses falsos representantes do povo que a única maneira de vencer Exu – esse mesmo Exu que eu carrego no peito, na cabeça e tatuado no meu braço – é destruindo a capacidade do ser humano de sonhar e de inventar novos mundos. Ou seja, só é possível derrotar Exu eliminando aquilo que nos torna humanos. Exu não pode ser vencido, porque Exu é a própria condição de existência do homem.

Laroiê pra quem é de Laroiê, e muito obrigado.

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