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Silvio Almeida no Roda Viva: a representatividade negra como paradoxo performativo.

O programa Roda Viva com Silvio Almeida foi um momento excepcional por diversos aspectos, mas em particular pelo curto circuito que sua performance provocou na própria concepção de representatividade que, a princípio, foi o que o levou a ser convidado para o programa, na qualidade de intelectual negro “especialista em racismo”.

O que pudemos acompanhar ao vivo, em primeira mão, foi algo que podemos classificar como PARADOXO PERFORMATIVO.

Podemos dizer que sua presença ali, por si só, é a prova de que a representatividade importa, e não é pouco: um intelectual da envergadura de Silvio – que se torna ainda maior em contraste com outros entrevistados recentes – é uma demonstração cabal do quanto a ocupação negra de todos os espaços, para tratar de todos os assuntos, é algo decisivo e fundamental.

Em certo sentido, portanto, sua presença ali é um contrassenso, ou antes, um PARADOXO, que se organiza enquanto um lugar ao mesmo tempo POSSÍVEL (porque é só a partir da existência do negro que esse lugar pode se constituir) e IMPOSSÍVEL (porque as coordenadas do presente são orientadas para sua não consolidação). Sim, Fanon – o cara – na veia. De um lado, ele é a expressão viva do potencial que emerge quando negros e negras rompem à força o sistema de entrincheiramento e proteção dos brancos, também conhecido por racismo estrutural. Por outro lado, sua fala evidencia a cada momento, e pelos mais diversos ângulos, que a conjuntura presente se organiza de modo a tornar aquele ponto de vista impossível de ser enunciado, como se só pudéssemos falar por entre sombras e ruínas do presente.

Ele tinha um certo dom pra comandar \ Tipo, linha de frente em qualquer lugar \ Tipo, condição de ocupar um cargo bom e tal \ Talvez em uma multinacional (é foda) \ Pensando bem que desperdício \ Aqui na área acontece muito disso\Inteligência e personalidade \ Mofando atrás da porra de uma grade”

Racionais MC’s – To ouvindo alguém me chamar

É esse o fundamento da torção do conceito de representatividade LIBERAL elaborada pela performance de Silvio. Certamente ele foi convidado pelo programa para servir como prova testemunhal de que a TV Cultura está preocupadíssima com a representatividade multicultural. Assim como tantos outros influenciadores que recentemente “cederam” seus espaços para ser ocupado por vozes negras (em geral, mediante trabalho não pago). O figurino exigido pela ocasião foi seguido à risca, e a bancada compunha-se quase que exclusivamente de jornalistas e escritores negros e negras. Tudo pronto para se tornar mais uma MICARETA CULTURAL.

Nesse sentido a REPRESENTATIVIDADE – enquanto imagem de uma posição a qual TODOS os negros tem condições de alcançar, mas cujo acesso encontra-se bloqueado – assume outro sentido para além de seus limites liberais, deslocando-se das coordenadas do presente para se configurar enquanto horizonte futuro, UTÓPICO, a se construir, resultado de uma luta antissistêmica mais ampla, que envolva toda uma agenda pública nacional. A representatividade deixa de ser algo que possa ser conquistada dentro de nosso atual sistema democrático neoliberal, para se articular enquanto processo de ruptura radical.

Silvio Almeida no Roda Viva foi um ACONTECIMENTO paradoxal porque sua atuação primorosa revelou para quem quisesse ver a potência de um grande pensador negro BRASILEIRO, e o que pode efetivamente vir a acontecer ao PENSAMENTO NACIONAL caso o Brasil deixe de ser o que é: uma fábrica de produzir cadáveres negros. Basicamente, esta seria a ÚNICA forma de nos tornarmos um país decente, pois o que de melhor o Brasil tem oferecido ao longo de sua história é sempre resultado da resistência (negra, feminina, indígena) a seu próprio projeto. O país, contudo, se esforça ao máximo para evitar a todo custo que isso aconteça. Um país que deliberadamente compromete seu futuro para NEGAR à comunidade negra o que é seu por direito.

O paradoxo performativo em questão foi, pois, a exibição de um pensamento negro brasileiro absolutamente complexo que, no momento mesmo em que é ENUNCIADO, revela a necessidade de se acabar com o Brasil para que ele possa efetivamente vir a EXISTIR. Uma vez mais a confirmação de que o que de melhor se pode fazer pelo Brasil – aquele da estátua do Borba Gato, e não aquele do samba, que resiste ao Brasil – é destruí-lo.

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