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Beyoncé, arrogância acadêmica e blindagem pop

A polêmica da vez na internet é um texto da historiadora Lilia Schwarcz em que ela tece comentários negativos (mas também uma série de elogios) ao mais recente trabalho de Beyoncè. O texto gerou alguma polêmica nas redes e autora se retratou publicamente. Gostaria de aproveitar o episódio não para tomar partido, mas para traçar algumas reflexões de ordem mais geral. 1. Foi arrogante o texto sugerir que ensinaria Beyoncé o que é ser antirracista (a academia ainda adora usar um tom condescendente irritante para falar de cultura pop), e no mínimo ingênuo não perceber que a militância não perdoaria esse tom – independente do texto deixar claro que adorou o trabalho como forma de resgate do sentido positivo da negritude e de ter chamado literalmente Beyoncé de uma artista genial. E foi bem ‘ingênuo’ também não perceber que a legião de fãs não iria permanecer calada diante de alguém que diz que o álbum decepciona.


2. Também é verdade que a cultura pop tem um poderoso sistema de blindagem que só aceita críticas dentro dos seus próprios termos, e quando sai disso, uma de suas principais estratégias é tentar desqualificar o lugar de fala do crítico. Não fui eu quem disse isso, mas um envelhecido Debord: pra ele, a única mensagem do espetáculo é ‘o que aparece é bom, o que é bom aparece’ – isto é, blindagem absoluta. Isso é muito comum no cinema: os fãs alegremente demonstram o quanto determinado filme apresenta temas profundos e importantes, geralmente relacionados ao debate das minorias (por exemplo, a questão de gênero na Mulher Maravilha). Mas quando alguém faz uma reflexão que questiona os limites daquela perspectiva, a resposta em geral é que se trata apenas de entretenimento, e que não tem como ser tão profundo assim. Como se escapa dessa tautologia?

3. Eu e minha boca grande já passamos por algo assim algumas vezes, e a crítica é sempre a mesma: lá vem o acadêmico senhor da verdade que não entende nada da complexidade do universo que ele está criticando. Não é só a direita que não suporta a arrogância intelectual, que existe e não é pouca: é um sinal dos tempos em que as configurações das redes de comunicação se alteraram radicalmente. Disseram isso inclusive quando eu falei que rap bolsonarista era uma excrescência sem sentido com nenhum fundamento dentro do hip hop. Quando não conseguiram provar que eu estava errado, passaram a atacar meu lugar de fala, como pseudo intelequitual babaca que quer falar de rap. Enquanto isso, o rap bolsonarista sumiu de cena, comprovando meu argumento. Ponto pra mim (isso foi arrogante, né? Desculpa eu).

4. Por outro lado, é certo que o movimento intelectual é lento demais: as vezes (poucas) para construir um pensamento complexo, as vezes (muitas) por preguiça mesmo. Até hoje me espanto com o silêncio em torno de Paulo Coelho, um dos acontecimentos literários mais importantes do Brasil. É como se a academia só soubesse repetir eternamente as mesmas perguntas para um universo tão vasto, complexo e vivíssimo. Mas vai ser sempre assim: a academia sempre vai estar muitos passos atrás da cultura, e sempre vai se achar a última bolacha do pacote por isso, admirando aquilo que nela é, boa parte das vezes, pura fraqueza.

5. Afro futurismo nem sempre é sinônimo de um movimento progressista, pois as formas de se imaginar o futuro estão sempre presas às coordenadas do presente. O filme do Pantera Negra, por exemplo, é dezenas de vezes mais conservador do que o som do Funkadelic. Na verdade, uma das funções do filme é gourmetizar e retirar a potência política dos Panteras Negras reais, trocando política por representatividade – inclusive a foto de Huey Newton, um dos líderes fundadores dos Panteras Negras, aparece no quarto do Killmonger, o vilão. Esse ideal afro-futurista gourmet não é uma imagem de um futuro sem opressão racial, mas a glorificação do presente capitalista em que já temos uma rainha pop negra e um presidente, ambos americanos, e que é a repetição da mesma história que nos trouxe até aqui – enquanto a luta histórica dos negros contra o capital é enunciada como aquilo que precisa ser superado, para realizar uma imagem de utopia negra de feição claramente imperialista (pode-se sempre argumentar que ele não era tão vilão assim, mas não me convence, porque pelas coordenadas do filme ele teria necessariamente que morrer). Da minha parte eu prefiro um afro-futurismo que não seja glamourização do capital, tipo ‘Branco Sai, Preto Fica’.

6. O fato de existir um filme como o Pantera Negra é resultado da luta da comunidade negra por visibilidade e por construir uma representação positiva de sua história. E nesse sentido, ele é um continuador do legado da Angela Davis. Por outro lado, é uma traição a esse mesmo legado, na medida em que coloca a atuação histórica real de Angela Davis na perspectiva daquilo que deve ser superado e recusado como alternativa. Sim, trata-se de uma contradição, porém não do pensamento, mas da própria história. A isso chamamos dialética. Devemos recusar filmes como Pantera Negra? De jeito algum, quanto mais melhor. Mas isso significa que devemos celebrar acriticamente e nos orientar por suas coordenadas? Não mesmo, sobretudo do ponto de vista da periferia.

7. Aliás, isso é importante: a Disney sempre serve aos interesses que não estão do nosso lado. Isso significa que ao primeiro sinal de aperto os caras vão jogar todas as minorias para os leões sem o menor pudor. Com Beyoncé, Simba e tudo o mais. Isso independentemente dos filmes serem maravilhosos, sobretudo as animações. Não nos iludamos quanto a isso: o poder não está do nosso lado. O capital não é nosso aliado. Ele se fundamenta no racismo. O importante de deixar isso bem claro é que o Capital sempre entra em crise, e o primeiro a sofrer retaliação é o campo progressista. Estamos vendo isso acontecer com a esquerda em todo o planeta, e já sabemos ao que leva a longo prazo essa articulação entre esquerda e establishment. A conta cai sob as mesmas cabeças de sempre. Por isso, é importante deixar claro que não, não somos iguais.

8. Não vi\ouvi o álbum visual, mas sei que Beyoncé está longe de ser um consenso. Não artisticamente, pois aí ela é a meu ver a continuadora do legado do Michael Jackson (e eu nem gosto da maior parte da música dela, mas não é no meu gosto que estamos interessados aqui, e sim no fenômeno). Ela é a rainha pop e ocupou o trono com louvor. Mas o horizonte político expresso nos seus trabalhos me parece sempre atravessado por aquela perspectiva de representatividade liberal imperialista cujo horizonte utópico são os EUA no poder. A pergunta sobre se isso serve como utopia pros primos pobres é não só válida como urgente. E isso não é papo de branco ressentido com os pretos no topo: a bell hooks teceu fortes críticas a Lemonade – e teve gente que quis cancelar ela por isso também, é bom que se diga, para que nunca duvidemos da força de autoproteção da Indústria Pop, cujos verdadeiros senhores (spoiler: não são negros) tem muita grana e vem preparadíssimos para nos transformar em seus soldados. Mas em trabalhos culturalmente relevantes, como é o caso da obra da Beyoncé, mesmo as contradições também fazem parte do que há de interessante no produto, devendo servir como ponto de partida da investigação, e não como justificativa para interrupção do pensamento, ou para a produção de críticas apressadas.

9. Me parece algo urgente criticar não só aquilo que nos agride cotidianamente, mas também o que nos vendem como ideal emancipatório. Para podermos levar a cabo uma luta construída em nome próprio. Agora, certamente essa crítica não poderá ser feita nos velhos termos. Nesse caso, a conta chega.

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