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Conservadorismo nacional e qualidade estética – Tropa de Elite I

Publicado originalmente em 21/08/2012 – Site Passa Palavra

Tropa de Elite I (TE I), do diretor [realizador] José Padilha, teve grande repercussão nacional e internacional, por conta de seu sucesso – uma das maiores bilheterias da história do cinema brasileiro – e seu violento discurso conservador. Na crítica brasileira, em termos gerais, houve certa dificuldade em se pensar a relação da qualidade estética do filme – inegável – com o seu conteúdo, tachado de fascista; como se uma grande obra devesse necessariamente compartilhar dos pressupostos “à esquerda” da própria crítica. Esse artigo procura pensar em como o filme consegue estabelecer uma complexa rede de relações entre conservadorismo e acerto formal, partindo da formalização da matéria histórica brasileira, que contribui para problematizar os critérios de valoração baseados no princípio de equivalência entre forma crítica e qualidade estética.

1.1 Um filme de direita?

O impulso inicial para escrever esse texto surgiu logo depois de assistir ao Tropa de Elite II. Como muita gente, saí do cinema surpreendido – afinal, a mudança no tom do filme em relação ao primeiro é grande – e empolgado para escrever, cheio de idéias. Foi aí que algo foi se apossando de mim, gradativamente. Aos poucos percebi se tratar do fantasma do primeiro filme, ou melhor, o fantasma do capitão Nascimento, que sentia nitidamente cuspir na minha cara. “Tá com medinho, seu zero um? Então faça o favor de escrever sobre o primeiro filme logo, seu fanfarrão”. O texto sobre Tropa de Elite II terá de ser adiado para outra oportunidade.

Para colocar de imediato as coisas em pratos limpos, as raízes da minha dificuldade em lidar com TE I é por considerar que ele seja um filme de direita – e nisso eu já marco posição na polêmica. Quer dizer, isso é parte da dificuldade, pois o x da questão é o fato de que, além de estar à direita de minha escala de valores, o filme é muito bom. Pois então, como falar da qualidade de um objeto estético que corrobora uma visão que você rejeita? Essa tomada de posição é importante, pois se trata do principal debate da época do lançamento do filme, a partir da seguinte questão: afinal, o filme é ou não fascista?

As respostas na época foram variadas, desde sim, visivelmente fascista e execrável, até não, pois o desejo era denunciar a truculência da polícia e não corroborá-la. Ou ainda, sim o filme é fascista e o negócio é mesmo por aí, larga o aço e senta o dedo, em resposta mais reacionária. Minha resposta é, como já disse, a de que o filme é de direita, típico representante de certa faceta do conservadorismo nacional. Mas, além disso, é muito bom, evidência que, apesar de minhas sinceras tentativas – e até que obtive êxito por algum tempo – não pude negar.

A tendência imediata diante dessa combinação entre qualidade e conservadorismo é tentar salvar o filme (e no movimento salvar a nós mesmos dessa fusão de parâmetros), procurando elementos que relativizem essa constatação inicial, trazendo-o para o campo mais cômodo das obras representantes do pensamento crítico, a qual o analista partilha ou pensa partilhar. Mas o importante aqui é vencer a tentação edificante inicial, não negando a qualidade do filme e assumindo-o enquanto reacionário, com todas as consequências e implicações.

Assumir que uma obra estética possa ser reacionária, ou a-crítica, e, ao mesmo tempo, de qualidade – separação, a princípio, óbvia, entre acerto crítico e acerto estético, mas que tem consequências no debate cultural do brasileiro – indica que o velho artifício da crítica ideológica, na concepção de denúncia daquilo que o filme oculta, no caso, o reacionarismo, precisa ser reconfigurado, colocado em outro plano, pois aquilo que se rejeita no filme – seu fascismo – não o inviabiliza esteticamente, restando pois, com um caráter mais urgente, decifrar aquilo que ele constrói. Não se trata de abandonar de vez a crítica ideológica, mas provocar seu deslocamento, compreendendo que toda realidade possui uma componente estrutural simbólica fundante, carregando em si um dado ideológico irreversível, a própria simbolização. Qual seria, portanto, o Real do fascismo de Tropa de Elite?

Entretanto, o verdadeiro dedo na ferida em TE I, a nosso ver, não é o teor de suas críticas, todas questionáveis especialmente por serem sustentadas a partir de um ponto de vista insustentável, mas que seja justamente seu conservadorismo o responsável pelo acerto estético. Um problema, não para o filme, mas para a força da noção de crítica nesse caso, que não é único, e se repõe a todo instante na cultura de massas. Afinal, TE I é reacionário, certo? Certo. Então por que ele é melhor que outros filmes, de direita, esquerda ou centro? Por que TE I desbanca o esquerdista ONG Central do Brasil? No limite, tais críticas, ao se apegarem em excesso a um ponto exclusivo, correm o risco de soar tão vazias quanto as críticas do Capitão Nascimento ao fantasmagórico sistema. Tem lá o seu interesse, mas sente-se a falta de alguma coisa. No caso, o próprio filme.

Marcado esse posicionamento inicial no debate, voltemos à questão a ele subjacente. Por que considero TE I um filme de direita? Respondendo de uma vez, a questão é que a única maneira do filme não cair nisso seria se distanciando da perspectiva reacionária do capitão Nascimento, como ocorre no segundo filme. Em TE I, todo o trabalho de construção se dá no sentido de corroborar a perspectiva do herói, cooptando o expectador. E o faz de maneira brilhante: Nascimento é um dos mais cativantes personagens do cinema nacional. É um cara bonito, extremamente corajoso, inteligente, espirituoso, com uma visão pragmática que compreende muito bem o que acontece no morro e no país. Sabe o que acontece com os negros, sabe como pensam os traficantes, é capaz de expressar (dar voz) a sentimentos profundos do brasileiro. É um profissional exemplar e um estrategista brilhante. É truculento e brutal, mas (e a forma do filme está aí para comprová-lo), estamos em guerra, parceiro, e no Bope não tem lugar para os fracos. Lei da Selva. Além do que, no topo de sua posição para além da justiça, Nascimento é justo, profundamente justo, e aqui está um dos saltos mais importantes na constituição da personagem, baseado em duas inverossimilhanças fundamentais, que ampliam o alcance de sua credibilidade.

A primeira delas: seu ódio é igualmente distribuído entre moradores pobres do morro e playboys que fazem girar a máquina do tráfico. Senta o dedo nos dois com o mesmo ímpeto. Seu ódio está para além de preconceitos. Negros e brancos com ele recebem exatamente o mesmo tratamento. (Onde isso se coloca mais claramente é na disputa para escolher o seu substituto. “No Brasil, preto e pobre não tem muita chance na vida. Mas o Matias nunca deu muita bola pra isso”.) Em certo sentido, Matias será aceito quando reencontrar o negro em si, aquele que efetivamente sabe o que significa viver em meio a um contexto de exceção, e romper com a perspectiva da classe média que não sabe que estamos em guerra. “Mas o Matias era muito ingênuo, para ele, os policiais e os advogados tinham a mesma missão, defender a lei”.

Nascimento pode, pois, ser acusado de vários defeitos (mas que no contexto proposto acabam se tornando qualidades), mas é desprovido de um defeito decisivo – por ser estruturante da realidade brasileira e de sua polícia. Ele não é racista. Tendo em vista que a polícia brasileira é das mais racistas do mundo, o significado de construir uma personagem policial que tem essa característica suprimida torna-se determinante, e faz da perspectiva do herói – que aliás tem consciência das condições de opressão em que vivem os negros no país – perigosamente… uma promessa de felicidade emancipadora. Elimina-se do campo ideológico uma contradição fundamental, o papel central da polícia em fazer com que o preto e o pobre tenham pouca chance no Brasil. Ou melhor, o que ocorre é uma cisão entre a visão justa e acertada do capitão e a realidade da prática do Bope, retratada no filme, onde só é morto e torturado preto e pobre. Temos então a figuração ideológica precisa do país que mais prende e mata negro no mundo, mas que é incapaz de identificar o racismo em suas práticas cotidianas e configurações ideológicas. O racismo estrutural que se desloca, via cordialidade, do racismo conceitual. Nascimento não tem absolutamente nada contra os negros. Não os odeia, só os mata, no cumprimento do dever.

Mas é por isso que o Bope não é a polícia. Com ele, as contradições são superadas. “Na teoria, o Bope faz parte da polícia militar. Na prática, o Bope é outra polícia. O nosso símbolo mostra o que acontece quando a gente entra na favela”. O símbolo é uma caveira. Extermínio como solução, e a segunda inverossimilhança constitutiva da força da personagem. Um caveira nunca erra. Sempre acerta no prognóstico, mantem a calma nos momentos de tensão, só tortura os caras certos, só mata quem merece. Com excessos, é verdade; afinal, ao invés de dar voz de prisão, o “aspira” [aspirante] passa o vagabundo com tiro de 12 na cara. Mas esse excesso sádico é sentido como paixão pelo trabalho, que no final se justifica porque o cara era mesmo do mal. O Bope nunca pega o homem errado. Nada daquelas blitz [operações stop] policiais em que o trabalhador tem que pagar propina [suborno]. Em um contexto social precarizado, a violência é reguladora da ordem, e não se colocam as coisas nos eixos dando tapinha nas costas, parceiro. Todo processo de exclusão e marginalização é justificado na medida em que o batalhão de operações especiais promete e cumpre com sua missão de recompor a ordem.

Com esses dois elementos, o caráter justo das ações do Capitão e sua infalibilidade, uma a legitimar a outra – ele só acerta sempre porque é justo e vice-versa -, está garantido o vínculo da personagem com a Verdade, justificando-se assim suas ações. Isso para não falar no efeito Wagner Moura, um dos mais completos atores da nova geração, que rouba (arromba) a cena. Fechemos com ele o capítulo das qualidades que tornam Nascimento um partidão, facilitando o processo de colagem da perspectiva do expectador à do herói, e passemos para um aspecto mais estrutural, para além da composição da personagem.

1.2 Tropa de Elite I e a consolidação do filme de guerra brasileiro

Mas não é só o carisma de sua personagem principal reacionária que faz de TE I um filme de direita. Esse só se constitui de forma tão bem acabada pela existência de elementos formais que sustentam a visão de mundo do capitão Nascimento. Talvez o principal deles, é que se trata de um filme de guerra.

Tropa de Elite I inaugura, até onde sei, o gênero filme de guerra no país, o que não é pouca coisa, caso pensemos nas razões para isso não ter acontecido antes. Tal esforço para constituir um gênero nacional inédito, suas dificuldades e seu alto grau de acerto é um aspecto chave da obra, que precisa ser levado em consideração em qualquer análise. Assim como havia antes acontecido com Cidade de Deus, o que está em jogo é o desenvolvimento e a profissionalização de nossa ainda amadora indústria de entretenimento cinematográfico, uma zona complicada, muito por conta do sentimento de culpa da elite produtora e crítica de arte, que exige filmes reflexivos que no geral usam o repertório intelectual da própria classe média, multiplicando a culpa e confirmando a crítica como reprodutora da desigualdade [1].

Duas questões se apresentam nesse momento: por que o filme se enquadra especificamente no gênero guerra, ao invés de no mais genérico ação policial, sendo que a polícia é sua personagem principal? E por que isso é importante? Respondendo às questões por ordem, o enredo de TE I apresenta a história clássica de ação e formação do exército, seu treinamento, a preparação do soldado, a transformação do cidadão comum em máquina de guerra e o conflito de alguns personagens centrais. Desde as cenas iniciais acompanhamos o embate e a violência com que o Bope tem que lidar cotidianamente, seja no morro, seja na corrupção do sistema que devia garantir a lei. Violência e corrupção, as duas grandes justificativas para a instauração do poder acima da ordem representado pelos caveiras. Diferente do gênero ação, não existe aqui um grande vilão que serve como antagonista do mocinho – quanto mais bem preparado e sagaz for este, maior o mérito do mocinho em derrotá-lo, como em Duro de Matar, por exemplo. O Baiano não ocupa esse lugar, ele é apenas mais um na massa amorfa de inimigos que precisam ser abatidos, como os generais inimigos dos filmes do Rambo, uma espécie de chefão de fase. O batalhão, desde seu treinamento até suas estratégias militares, se parece muito mais com um exército do que com a polícia. Não por acaso, o filme enfatiza a todo o momento a separação entre o Bope e polícia comum. Lembrando que se trata de um filme de guerra clássico, que cola-se à perspectiva do exército, e não desses tipos mais modernos – Nascido para Matar, de Stanley Kubrick – que criticam o sentido das ações do exército. Podemos dizer, respondendo à segunda pergunta, que é essencial que o filme se enquadre nesse gênero, pois será este formato que sustentará a credibilidade do narrador\herói.

Para o capitão, estamos no meio de uma guerra, afirmação que comporta um forte componente ideológico, por mais que esteja ancorada nos “fatos”.

“Não podemos, em momento algum, esquecer que não estamos em guerra [entre outras coisas, porque os traficantes não são um grupo com ideologia distinta que quer deslegitimar o poder do Estado, mas marginalizados em busca de integração no mercado], que as favelas cariocas não são território inimigo e os cidadãos que lá residem são nossos compatriotas. Até mesmo numa guerra entre Estados, em certas situações são feitas considerações sobre a intensidade do emprego da força em função da segurança dos civis”.

Causa

Ao tratar uma questão de segurança pública como guerra, justifica-se a abolição de direitos da sociedade civil e a instauração de um estado de exceção, em que todo e qualquer uso do aparelho repressor é justificado. Adentra-se outro tipo de regime, contrário (ou não) à democracia. Mas o fato é que o filme compra integralmente, com os mecanismos estruturais expostos, a perspectiva de Nascimento, que ignora esses floreios intelectuais. Seus procedimentos temáticos e de montagem constroem um cenário de guerra onde a personagem brilha com carisma e lucidez. Do todo emana um alto senso de organicidade sustentado no tripé narrador\personagem\estrutura, desiguais e combinados, que resulta em acerto rítmico e de andamento fundamental em filmes de ação, que precisam demonstrar habilidade na distribuição dos momentos de tensão e repouso [2]. A equipe de produção de TE I, ancorada num roteiro [guião] de primeira linha, construiu uma obra redonda, que convence naquilo que se propõe a dizer.

Tropa I não quer, portanto, ser um filme exatamente reflexivo – alguém já imaginou um Indiana Jones com mais cérebro que humor e ousadia? Fracasso estético\comercial certo. O filme evidentemente tem algo a dizer sobre a estrutura social, mas sempre a partir do bem delimitado espaço da guerra, tal como entende seu herói. O fundamental nessa percepção é isso: seu acerto estético se dá em termos de conjunção com seu acerto comercial, com a Indústria Cultural, e não pela disjunção e afastamento. É por ser um produto comercial que se torna um grande filme. Desvincula-se, no caso, senso crítico e qualidade estética.

2.1 O Bope, o Brasil e Machado de Assis

Grande parte do impacto e força de TE I está, portanto, – e não me lembro de ter lido isso em nenhum lugar, apesar de ser um dado importantíssimo – em ser o primeiro bem sucedido filme de guerra nacional. O que nos coloca de imediato duas questões fundamentais: como ele transpõe o imaginário de tais filmes para nossa realidade sem perder os dois, o gênero e a realidade, nesse movimento, e como, nessa transposição, consegue ser mais interessante do que o modelo hollywoodiano padrão? As duas perguntas têm, na verdade, um fundo em comum que sustenta a resposta. O acerto do filme com a matéria histórica nacional evita que ele soe como mera cópia mal feita de um modelo prévio, e ao mesmo tempo faz dele uma grande obra, mais interessante do que a média do gênero, pelo teor da novidade.

Podemos pensar o problema da transposição de um gênero para outro contexto a partir do debate brasileiro sobre a constituição de um herói nacional. As tentativas de se criar uma personagem heróica no país, como o Vigilante Rodoviário ou o índio Peri (personagem do romancista José de Alencar), tendem no geral a fracassar, por não adentrar no imaginário local. São no geral encarados como algo de exagero, de deslocamento. Em suma, não convencem. Aqui, a figura que se impõe como heróica é sempre a do anti-herói, ora malandros, ao mesmo tempo ousados, covardes e preguiçosos, como Macunaíma ou Chapolin – que nem brasileiro é – ora figuras marginalizadas, como o cangaceiro Lampião. Em todo caso, nenhuma capaz de encarar a positividade proposta por um Superman.

As raízes dessa dificuldade têm matriz social, e explicam-se pela boa e velha cordialidade [1] brasileira. Nos termos de José Pasta Junior, a imagem do herói não cola por aqui porque a separação entre eu e o outro – no caso, os pólos do mal e do bem – é problematizada pela cordialidade, que consiste na indiferenciação constitutiva entre ordem e desordem, o público e o privado, etc. O ato enunciativo, a relação entre subjetividades, nunca se dá em termos de eqüidade inicial, como numa disputa em que partimos do zero a zero. O modo padrão de relação aqui sempre parte do princípio da disparidade de forças. Um time entra com 11, outro com 4, e a partir daí começa o jogo em zero a zero. Por não se criar um espaço público em que as pessoas se transformem em indivíduos dotados de direitos de cidadãos, a vida social aparece para a ideologia como extensão da subjetividade, dos desejos, daí a regulação pelo princípio do prazer – corrupção, violência – das relações sociais. Ou o eu se suprime diante do outro, por completo, tornando seu os desejos alheios (agregado), ou finge suprimir-se de modo a ganhar o outro para si (malandro), ou ainda a alteridade é bruscamente suprimida pelo eu (senhores). No limite, limpeza étnica e social. Enfim, o modelo de sociabilidade nacional oscila sempre entre dois extremos: o padrão caridade – programa do Gugu, Netinho, Vida de Princesa – e o padrão extermínio – jagunços, escravidão e programas policiais como o de José Luiz Datena. Os dois extremos unidos pelo mesmo princípio, aos amigos tudo, aos inimigos, o rigor da lei. Princípio cordial por excelência. A sociabilidade sentida como luta de morte. [2]

Nesse contexto, o retrato do Outro, a representação deste como objeto, dado o regime local de indiferenciação entre sujeito e objeto, irá se aproximar perigosamente da figura do Eu. O fascínio pelo malandro, o excluído que consegue se infiltrar pelas margens (fascínio que anda de mãos com o desejo de apagar sua existência) existe porque vivemos num contexto em que a exclusão é regra – sempre alguém deverá se submeter a um ego que é ao mesmo tempo superego. Mesmo a representação fenotípica do bandido, o anti-sujeito por excelência, é complicada por não ser possível determinar com precisão, no Brasil, a imagem do Outro. Não é possível indicar árabes, chineses, coreanos, alemães, como o pólo do mal, porque isso também não é sustentado pelo lastro da realidade local. Questões postas pela mestiçagem, outro campo de indistinção. Em suma, o herói, aquele que encarna o bem delimitado pólo da Ordem, não convence enquanto representação da subjetividade nacional [3]. A questão subjacente ao TE I é, portanto, o estabelecimento de uma figura que rompa com a dialética ordem\desordem [4] – do que depende a constituição do herói – sem que com isso se perca o instinto de nacionalidade. O sucesso da solução proposta pelo filme aponta ao mesmo tempo para um compromisso com as raízes históricas brasileiras e um acerto de contas com o presente.

No filme, todo destaque é dado à figura onipresente do capitão Nascimento, um funcionário exemplar, que faz de tudo para não deixar sua vida pessoal interferir em seu trabalho. Quando sente que não dá mais, não questiona o modelo de ação do Bope (isso se dará no segundo filme), mas procura um substituto à altura. Está criada, portanto, a conjunção bem característica de modelo ético incorruptível com prazer de matar, que tem larga tradição no país e cujo maior intérprete foi o romancista Machado de Assis (1839 – 1908):

“Eu mesmo fui injusto com ele durante os anos que se seguiram ao inventário de meu pai. Reconheço que era um modelo. Argüiam-no de avareza, e cuido que tinham razão; mas a avareza é apenas a exageração de uma virtude, e as virtudes devem ser como os orçamentos: melhor é o saldo que o déficit.

Como era muito seco de maneiras tinha inimigos, que chegavam a acusá-lo de bárbaro. O único fato alegado neste particular era o de mandar com frequência escravos ao calabouço, donde eles desciam a escorrer sangue; mas, além de que ele só mandava os perversos e os fujões, ocorre que, tendo longamente contrabandeado em escravos, habituara-se de certo modo ao trato um pouco mais duro que esse gênero de negócio requeria, e não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais.

A prova de que o Cotrim tinha sentimentos pios encontrava-se no seu amor aos filhos, e na dor que padeceu quando morreu Sara, dali a alguns meses; prova irrefutável, acho eu, e não única”.

Machado de Assis

Trata-se da própria descrição do ethos do capitão Nascimento, a união bem brasileira de cidadão exemplar com carniceiro. O cunhado Cotrim, segundo o narrador, é um pai de família exemplar, preocupado com os seus, mas que vive em um contexto embrutecido que exige a punição dos que fogem da linha. Se ele é truculento e violento, é porque o meio o exige. Além disso, apenas os verdadeiramente culpados são punidos: os escravos perversos e os fujões, ambos tipos que não aceitam seu lugar na escala social. A justificativa moral dos gestos oculta a perversidade do modo de produção escravista, mesma função, aliás, que tem a redução atual da política a uma questão moral, ser ou não ser corrupto, pelo que se pauta o olhar de Nascimento. Moralidade e barbárie caminham de mãos dadas desde os tempos do Brasil colonial, passando por TFPs, ditaduras e afins. Nesse sentido, Nascimento segue no trilho histórico do país. Além disso, desde há muito, como podemos observar pelos elogios feitos por Brás Cubas ao cunhado, essa conjunção já é admirada pelos demais cidadãos de bem, deixando de causar admiração que uma revista como a Veja traga uma manchete nos seguintes termos, em uma matéria sobre o filme, “Finalmente um herói do lado certo”. Sequer perguntaremos aqui a quem se refere exatamente esse “certo”: a resposta é auto-evidente.

O primeiro acerto do filme está, portanto, em colocar como protagonista uma personagem fincada na lógica da cordialidade – verdadeiro princípio organizador da sociabilidade brasileira, em sua face perversa – e explorar essa perspectiva sem concessões, formalizando assim um aspecto social. Entretanto, isso não explica de todo a grande novidade do filme, a construção de um herói tupiniquim. Pois, além de dar conta desse caldo sócio-cultural de base, a obra mantém os dois pés firmemente fincados no presente. A pergunta materialista, no caso, seria: o que mudou nas condições históricas do país, que forneceu a possibilidade de surgimento dessa personagem onde todas as tentativas anteriores foram frustradas ou, ao menos, não tão bem sucedidas?

Para o crítico cultural Roberto Schwarz, o país entrou, a partir dos anos 80, em seu fim de século:

“É sabido que o novo padrão competitivo, íngreme em face das realidades da vida popular, se compõe à maravilha com o nosso descaso secular pelos pobres. Em seu despreparo, estes estão deixando de interessar até como força de trabalho quase gratuita. Passou o tempo em que incorporá-los parecia um imperativo econômico”.

SCHWARZ, R. (1999). Fim de século. 

João Cesar Rocha, por sua vez, define esse momento como a passagem da antiga dialética da malandragem para a dialética da marginalidade, em que o projeto de integração nacional se esfacela e o Outro se converte em excesso desprovido de função, que deve ser gerenciado ou exterminado [6]. Acreditamos que a melhor definição desse novo estado de coisas é oferecida pelo conceito de Vida Loka do grupo de rap Racionais MCs. Aliás, são os raps do grupo que a nosso ver oferecem a melhor resposta ao posicionamento ideológico do filme.

2.2 Ligando o rádio: Diário de um detento

Os Racionais são os responsáveis por uma das melhores e mais contundentes produções estéticas surgidas no país desde o final dos anos oitenta, em todos os campos artísticos, e Diário de um detento [Diário de um detido] é sua obra prima. O rap produzido pelo grupo rompe com certo ideal de integração nacional subjacente ao samba e às suas figuras típicas, que convertem o oprimido em ícone: o malandro, a mulata e o próprio samba, símbolos da nacionalidade e, ao mesmo tempo, testemunhas da exclusão. O rap, por sua vez, é bem localizado e tem endereço determinado, a periferia de São Paulo, e a experiência não pode ser universalizada a não ser em direção a outros marginais que ouçam a mensagem e formem uma espécie de aliança, só possível de modo efetivo caso se rompa com a lógica de violência que estrutura a realidade. Em suma, o rap dos Racionais não pode ser apropriado enquanto símbolo da nacionalidade por ser a própria formalização da falência do projeto civilizatório nacional.

Segundo Walter Garcia [7], é possível depreender dessa canção um sistema, no interior do qual ela se movimenta. Ergue-se uma muralha que separa um emissor, que está do lado dos detentos, de um receptor, um você que “não sabe o que é caminhar, sob a mira constante de uma HK”. Essa muralha é ainda mais intransponível [8] por conta do terceiro elemento fundamental, o “olhar sanguinário do vigia”, que vai sustentar a separação. Podemos dizer que essa configuração da sociedade como uma penitenciária, separada pelo vigia de olhar sanguinário entre os que estão dentro e os que estão fora, vai finalmente tornar possível a distinção mais rígida entre eu e outro no contexto brasileiro e, como consequência, o aparecimento do herói (já o fato do lado da ordem ser o menos defensável é da peculiaridade da sociedade brasileira. O filme jura que não). Pois por mais que o policial seja também um Zé Ninguém metido a Charles Bronson, sua posição no interior do sistema na parte superior do muro, materialização da violência que paira no ar, faz com que esse mínimo de distinção social se converta, literalmente, num caso de vida ou morte. Digamos que Tropa de Elite I é o Diário de um Detento contado a partir do olhar do Robocop do sistema, que é frio, não sente pena, ou seja, um exemplar cumpridor de ordens, quase um burocrata empenhado, e, ao mesmo tempo, gozando com a possibilidade de apagamento literal do outro, só ódio, e ri como a hiena. Mistura de ódio e prazer, burocrata sanguinário.

Em todo caso, tanto em Diário de um detento quanto em TE I, apresenta-se uma separação que impossibilita o trânsito entre as classes e o sonho desenvolvimentista de integração nacional. Marginalidade = cordialidade – mobilidade. A lógica de negação da subjetividade do outro permanece, mas rompe-se a possibilidade de resposta do oprimido. É o fim do agregado, o eu que suprime seu desejo para tornar seu o do outro. É o fim também do malandro, aquele que faz com que o outro deseje o meu desejo. A alteridade é literalmente reduzida à condição de mercadoria descartável. O ser humano é descartável no Brasil, como modess usado ou Bombril.

Comparando os procedimentos estéticos de TE I com outro famoso (e bem mais caro) filme de ação, César Quitério chega à seguinte conclusão:

“[Em O Cavaleiro das Trevas] A mensagem ideológica se torna clara: trata-se do mito do altruísmo americano, de um país que age sozinho para garantir a existência livre e democrática de nações ao redor do mundo […] Já em Tropa de Elite, bem, trata-se de garantir a exploração e reprodução pacífica da miséria, trocando-se a “tranqüilidade” afluente de um dos lados pelo genocídio permanente do outro” .

César Takemoto

O ideológico aqui é imediatamente o Real, a morte. Bem mais assustador e contundente do que o quase contemporâneo americano que, a propósito, e por razões diferentes, é outro grande filme. Por seu compromisso com a matéria social, TE I consegue antropofagicamente deglutir e colocar novas questões para o modelo do entretenimento mundial. Movimento que é a própria razão de ser do modelo.

3.1 A fratura como sistema

O filme apresenta uma discussão que foi muito louvada por setores mais conservadores, que entenderam se tratar de um verdadeiro tapa na cara da elite universitária. Trata-se do afrontamento de Nascimento aos jovens de classe média consumidores de maconha que, em sua opinião, alimentam o tráfico de drogas e são responsáveis diretos pela morte dos moradores do morro. Ao invés de entrar no mérito da validade ou não da argumentação, é interessante observarmos que essa cobrança não constitui um caso isolado. Ao contrário, ela se distribui por múltiplas camadas ao longo do filme, criando o que podemos identificar como um sistema. Fazem parte dessa constelação, além dos “maconheirozinhos”, os intelectualóides leitores de Foucault que pensam entender a violência da guerra ao tráfico protegidos em seus apartamentos. Também a visita do Papa e sua insistência de ficar na favela cumprem a mesma função, ou seja, mostrar ao espectador que aqueles que estão no topo da cadeia social nada entendem da realidade social brasileira e que suas atitudes, em franco descompasso com as condições reais de sobrevivência, apenas aumentam as trapalhadas e imbróglios (para não dizer outra coisa, menos sutil) que o Bope precisa desfazer, com prejuízo da população. “O senhor tá de brincadeira né coronel? Pô, vai morrer gente… Põe na conta do papa”. A mensagem ao longo de todo o filme é clara, a solução para a violência nacional passa pela superação dessa separação entre saber e prática, é preciso erradicar o humanismo mitificador e colocar para trabalhar quem, além de honesto, conhece as complexas realidades do país. “E a realidade daqui é a guerra, parceiro”.

Podemos dizer que essa separação entre teoria e prática, funciona como um princípio regulador da estrutura do filme, além, é claro, do enquadramento no formato filme de guerra, que já comentamos. Ou antes, essa separação relaciona-se diretamente à violência exposta, e a promove. Desde o início, este é o vetor que sustenta as ações do Bope, é o abismo colocado entre as altas esferas e a vida real que obriga o batalhão a se mobilizar para consertar as trágicas confusões daí decorrentes. Todo o filme é construído a partir desse movimento. Uma interpretação, uma ordem equivocada, imposta de cima para baixo, gera efeitos desastrosos no plano da prática, onde transcorre a vida do cidadão comum. Essa defasagem é orquestrada pelo olhar analítico do capitão Nascimento, especialista no assunto. Seu papel é justamente colocar as coisas no lugar, quando tal separação conduz ao inevitável choque.

Ora, essa defasagem está no centro da vida social brasileira. O abismo social, que gera um descompasso entre o plano da interpretação (universidade, política, Foucault) e o plano concreto (polícia, bandidos, cidadãos). Em suma, é a divisão internacional do trabalho, na parte que coube ao país, que movimenta a estrutura do filme. A matéria local se inscreve na forma [1]. Essa é pois a raiz do incômodo expresso por Tropa de Elite I, o abismo social da nossa sociedade. Mérito do filme em criar um princípio estrutural assentado em ponto decisivo do contexto nacional.

Mas, diante desse efeito perverso da cordialidade, captado pelo olhar analítico de Nascimento, qual é a solução proposta pelo filme? Para o capitão, dada essa separação, dada a guerra permanente que vivemos, não adianta analisar o mundo, a reflexão sobre processos sociais imediatamente posiciona o intérprete ao lado dos produtores da violência, distantes do mundo real. A crítica não é infundada, e de fato essa separação sustenta o processo perverso de reprodução da desigualdade que promove a violência. Mas a resposta dada diante desse quadro, “acabe com a reflexão e atira em tudo que se mexe, seu 01”, é problemática, justamente pelo ponto abordado no segundo filme: os alvos não são assim tão claros e o direito de matar só é concedido até determinado ponto, bem seguro, aliás. Diante da ineficiência da reflexão de atuar no mundo para transformá-lo, a recomendação de Nascimento é “deixe os caveira trabalhar”. Ou seja, exige-se do pensamento que ele assuma de vez sua face grotesca e violenta, ao invés do movimento contrário, de superar a separação. Como se o problema do escravista fosse a ideologia liberal abolicionista e não o fato dele ter escravos. A solução proposta não é acabar com o muro, mas fazer com que cada um fique do seu lado, sem intervir no espaço do outro. Desse modo, com cada qual no seu cada qual, todo mundo sai ganhando. O enrijecimento da lógica permite que se afronte também o campo dos vencedores que procuram estabelecer algum pólo de contato com os do lado de lá – ONGs, intelectuais, usuários. Toda tentativa de transposição do muro, por menor que seja, vai feder, vai mexer com forças para além da compreensão. A proposta do filme, em tudo contrária à dos Racionais, apesar de participar do mesmo caldo histórico, é obscurantista. A afronta contra a elite, ao mesmo tempo em que marca a distância do Bope daquele universo, funciona como a advertência de um pai rígido, porém amoroso. No fundo, quem sai ganhando ao não se misturar com a gentalha são eles mesmos, a elite, mais do que ninguém.

Padilha constrói assim um filme de guerra que parte de questões e problemas realmente relevantes no cenário nacional, fazendo com que sua obra, ao furtar-se de ser mera transposição do modelo hegemônico, consiga formalizar nossa matéria social. A distorção da resposta oferecida é exigida por questões de verossimilhança impostas pelo gênero, atendendo à demanda pela criação de um herói nacional. O acerto com a matéria histórica por si não garante a qualidade da obra, que precisa vir amparada por uma estrutura coerente. O mérito do filme consiste em ter criado uma estrutura coesa, em que as inverossimilhanças são funcionais e conferem sentido ao olhar do narrador. É esse duplo acerto, convertido em um – a estrutura –, que torna o filme bem melhor e mais lúcido do que a média do cinema norte-americano de entretenimento, indo além. Além disso, o torna tão sólido e representativo quanto seus pares de esquerda. Não é pouca coisa.

Bibliografia

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