Publicado originalmente na Folha de São Paulo, em 20 de agosto de 2021.
Tenho acompanhado de perto o debate sobre a nova edição da obra de Carolina Maria de Jesus pela Companhia das Letras. Em tempos de bolsonarismo, são raros os debates que não se deterioram muito rapidamente em polêmica, quando o ataque pessoal, combustível das redes sociais, assume o protagonismo em detrimento do embate franco de ideias. Nesse caso em particular, no entanto, tem sido possível acompanhar argumentos bons e sérios dentro das duas perspectivas, o que, dado a adversidade da atual conjuntura ao pensamento, é quase como um pequeno milagre.
Eis a questão: a escrita de Carolina deve enfim passar por um processo de revisão e adequação à norma culta, com o risco de subordinar-se ao padrão de colonialidade do saber contra o qual sua obra se insurge, ou deve-se manter viva a diferença linguística, com o risco de reproduzir o exotismo contra o qual ela lutou ao longo de sua vida?
Os defensores do processo de revisão argumentam que os desvios gramaticais funcionariam como índices de exotização, fetichizando a escrita da autora. Carolina, nesse caso, estaria recebendo um tratamento diferente dos demais membros do cânone, lida a partir de sua inadequação à norma e tratada como escritora de segundo escalão, como se houvesse sido convidada para a festa por pena, e não pela qualidade da sua obra.
Devo dizer que concordo que o risco de fetichização na recepção de Carolina é real. Diria até mais: de fato, é praticamente certo que isso vai seguir acontecendo, como de praxe, e a maior prova é o próprio argumento que pretende livrar a autora desse ônus. Pois se até mesmo os leitores que reconhecem a grandeza literária de Carolina acreditam que o afastamento da norma culta é um índice de exotização que precisa ser corrigido, que dirá a grande massa de leitores? Para se evitar essa desleitura nas escolas, por exemplo, livros didáticos, corpo docente e gestão escolar deveriam estar altamente capacitados no debate antirracista, o que está longe de ser uma realidade.
Acrescento, porém, que o risco da fetichização não é eliminado com a adequação da letra à norma. Em sociedades racistas como a nossa, o corpo preto que escreve será sempre (des)lido como exótico. Se assim não for, será um corpo tão “branco” quanto, digamos, Machado de Assis. Se escreve “mal”, é ignorante. Se escreve “bem”, é pedante. Noite Ilustrada. Preto de alma branca. Negritude como índice de falta. No mais, sempre restará o argumento de que um diário não é grande literatura, ou de que a particularidade do olhar periférico não alcança abrangência universal. Com relação ao racismo, me parece que a adequação à norma favorece antes ao leitor, que não precisa se deparar com esse traço inscrito em seu olhar, do que à escrita de Carolina.
[Como contraponto (o assunto é complexo) poderia lembrar da felicidade de minha vó, que só tem o segundo ano primário, ao receber a versão final de seu livro, revisada. Para ela, uma conquista e um reconhecimento, uma autora tratada com o devido respeito. A busca pela norma não é necessariamente indício de cooptação, e em alguns casos pode significar exatamente o contrário – Cartola que o diga. Mas atenção: o que acabei de fazer, a despeito de toda pungência do parágrafo, foi um falso paralelo. Pois não se trata aqui daquilo que Carolina deseja, mas da disputa pelos sentidos políticos da materialidade de seus textos em sua relação com essa entidade abstrata que atende por Literatura Brasileira].
Um lado defende que Carolina deveria receber o mesmo tratamento digno que outros autores do cânone literário, por se tratar uma autora do mesmo quilate. O pressuposto é o da inclusão integral de Carolina no interior desse cânone, o que seria, argumenta-se, o seu desejo. Carolina enfim conquistando o lugar que lhe é de direito. Um gesto bonito, com ares democratizantes, e que não por acaso teve boa repercussão. Ao fundo pode-se ouvir ecos de uma narrativa de superação que culmina com o feliz encontro de Carolina com um cânone literário ávido por se tornar mais aberto e inclusivo, no que também vai um elogio ao nosso tempo e à própria condição de leitor despido de preconceitos. Um enredo bastante sedutor. Ao que alguém poderia acrescentar: talvez excessivamente sedutor.
Foi precisamente por isso que fui convencido pelos que defendem a manutenção dos ‘desvios’ linguísticos na nova edição. Para estes, os ‘erros’ de Carolina não são ‘erros’, ou ‘desvios’, mas marcas. Marcas do racismo, marcas de exclusão do cânone, marcas do caráter excludente da literatura brasileira. O enredo, aqui, é menos sedutor: a literatura brasileira é um campo de exclusão e Carolina, apesar de publicada por uma grande editora, ainda não ‘venceu’. Aliás, ela é a representante maior dos que não venceram. O horizonte aqui não é a democratização do cânone, mas sua politização pelo dissenso. Não por acaso é essa a posição adotada por Conceição Evaristo, também um caso de ‘sucesso dos que não venceram’. Não importa seu tamanho como escritora (e ela é gigante), Evaristo estará sempre fora da ABL de Sarney e Paulo Coelho. As marcas da prosa de Carolina funcionam como índice e recado: as instituições literárias – crítica, cânone, autores – possuem a mesma marca ornamental, vazia e excludente da derradeira paródia machadiana, a Academia Brasileira de Letras.
São duas posições políticas (progressistas) distintas. No primeiro caso, Carolina é redimida, a literatura se abre para a diferença e o leitor é poupado do próprio racismo. No outro, Carolina segue demarcando na própria forma-pele que o literário, o Brasil e o leitor não prestam.