Revista

Sobre cegueira racial e objetos brancos não-identificados

Versão estendida do ensaio “O Paraíso do Racismo”, publicado na Revista Piauí em março de 2022.

Acauam Oliveira e Rafael Mantovani

I

Dia desses, o antropólogo Antonio Risério asseverou que “ao afirmar a identidade, não podemos deixar de distinguir, dividir, separar”[1]. De fato, o processo de classificação está na base do raciocínio humano, raciocínio este que o homem aplica a si próprio e aos demais criando, por conseguinte, os pronomes pessoais (eu, tu, ele, nós, vós, eles), uma das bases da linguagem. E como a classificação é uma das bases elementares do entendimento humano, ela também aparece nos processos de organização social.

A identidade – como o sabem sociólogos e antropólogos – está no fundamento das associações humanas. Diferenças geram conflitos e, por lógica, poderíamos supor que um mundo sem identidades seria terra pacificada. Mas esse é um raciocínio puramente lógico, pois é impossível de ser observado na realidade. Afinal, não temos registros de sociedades que não tenham se organizado com base na identificação mútua das pessoas em torno de um totem, um animal, um astro celeste que se tornou uma divindade. Ou seja: suspender a identidade nas relações humanas é um esforço – inócuo – de vislumbrar como seria o paraíso.

Pensando no solo brasileiro, antes da chegada dos europeus os povoados tupis ocupavam praticamente toda a costa litorânea, tendo permanecido outros poucos povos que ousaram enfrentá-los, como os goitacás e os temininós. Os tupis veneravam a guerra. A vida cultural dos diversos povos tupis (mais esses mencionados) girava em torno dela. Uma rede de ataques e necessidades de vingança organizava o que era sagrado para esses povos e a diferenciação identitária era a sua justificativa. Todos concordavam com a guerra: desde as crianças, as velhas, até os guerreiros vencidos que seriam devorados. Era um conflito reciprocamente aceito. Para sociedades guerreiras, sejam tupis, vikings etc., a maior desonra para o guerreiro era a velhice. A morte esperada era a morte “matada”, a morte em nome do grupo, a morte em que se é devorado. Todos estavam de acordo. A eterna lógica de vingança era o discurso edificante de cada povo, que criava a sua própria identidade, ativamente, no complexo jogo de alianças e enfrentamentos.

Contudo, nem todas as organizações identitárias das sociedades humanas resultavam inevitavelmente na guerra. Os povoados da outra parte do tronco linguístico dos tupis, os guaranis, eram um conjunto de aglomerações consideradas mais “pacificadas”. Tanto que foi sobre elas que os jesuítas resolveram investir, com os resultados que bem conhecemos.

Outro fenômeno bastante diferente é a identidade heterônoma, criada desde fora. É o que passou a existir em escala global a partir do século XVI. A identidade dos “negros” provém dos europeus: os habitantes da África não se entendiam como “negros”, mas como shonas, soninkês, fulas, sossos, ibos, iorubás etc. Essa imensa gama de diferenças foi toda amalgamada sob a rubrica de “negros”. Essa foi uma das maneiras que os europeus classificaram “os outros”, “eles”. E esses “eles” foram todos ajuntados para serem aviltados: a sua pretensa inferioridade passou a ser teorizada pela Igreja. Essa identidade, então, se destinou a justificar a eliminação de suas culturas particulares, as suas práticas, as suas crenças, para que esses diferentes povos fossem todos submetidos a uma cultura que lhes era estranha.

É comum ouvirmos por aí que Zumbi e o Quilombo de Palmares, no século XVII, não estariam exatamente interessados na liberdade dos “negros” em geral, mas apenas dos seus. É claro que não: a classificação de “negros” só existia para os brancos naquele momento. Zumbi não entendia que todos os que hoje entendemos como “negros” eram… “negros”. Eram diferentes: não havia sentimento de pertencimento a um mesmo grupo entre os habitantes de Palmares e aqueles que porventura pudessem ser expulsos. Esse senso de comunidade só se consolidou muito posteriormente, por ação discriminatória secular dos brancos.

Os resultados de quatro séculos denegrindo africanos são notáveis ainda hoje: não são só privados de direitos básicos de educação, saúde e lazer, como da própria vida. São os alvos preferenciais das armas da polícia. São os habitantes das zonas esquecidas das cidades. Contudo, além da subtração material, é necessário também levar em conta a subjetiva. São os humilhados, os observados por vigias, os que a esperança não espera que vinguem na vida. Isso tem um efeito catastrófico na psique de um indivíduo: trata-se de uma sociedade que classifica em torno na raça, em seus mais diversos meios de colocar indivíduos nos seus “devidos” lugares, e que aponta o tempo todo um pretenso problema cognitivo, físico, de cor da pele, de formato do rosto, de cabelo.

Com tudo isso em mente, pode um negro replicar racismo? É claro que pode: quando odeia a si próprio, quando o mundo consegue convencê-lo de que não existe nada em si de que ele possa se orgulhar, afinal, ele não possui as características que a sociedade apresenta como as legítimas: os antepassados legítimos, a cor legítima e, no limite, a cultura legítima, a música legítima, o sotaque legítimo. Peles negras, máscaras brancas. Note que não se trata, como algumas vezes se defende, da existência de um pretenso novo racismo de negros contra outras etnias, o tal do racismo reverso, mas sim, a reverberação interna do racismo, o racismo ele mesmo, invenção europeia.

A pergunta que, a partir desse ponto, não pode ser calada é a seguinte: como uma pessoa negra pode criar qualquer tipo de autoestima saudável que não seja por meio da reelaboração da identidade? Como negros (e não só negros, mas também outras etnias ou pessoas LGBTQIA+) podem começar a dar vazão a desejos e realizações pessoais que não seja reelaborando o mundo que conspira contra ele? Para os brancos, é fácil (e, no mínimo, bastante antipático) dizer que “o identitarismo é violento” por negar as estruturas de pensamento que só os privilegiam e lhes conferem a segurança psicológica necessária para viverem as suas vidas, enquanto pisoteiam todos os demais. Se algum raciocínio questiona a veracidade de que o branco seja o centro mais belo do universo, muitos brancos o consideram violento. Embora a violência do raciocínio eurocêntrico tenha sido infringida a todas as outras etnias com quem ele tenha entrado em contato. Ora: pimenta no olho dos outros é refresco. A identidade dos brancos é reforçada por todos os lados, pelo rádio, jornal, revista e outdoor. Não se trata que os brancos não se reforcem com a sua identidade: a sua identidade é simplesmente camuflada, pois é entendida como universal. Mas nem por isso deixa de ser uma identidade, cuspida para todos os lados como sendo a norma. Por estar dentro do que convencionou como norma, a atividade identitária dos brancos não é notada, mas nem por isso deixa de existir.

Quando as afirmações sociais convencionais aviltam fisicamente, é necessário afirmar que black is beautiful. Quando se tenta desqualificar intelectualmente, é necessário afirmar a inteligência. Quando se percebe que só o protagonismo branco é festejado e se cria a revista Raça e o “orgulho negro” para celebrar a negritude, não se trata de racismo: trata-se de uma resposta ao racismo.

Indo aos Estados Unidos, no stand up Disgraceful, de 2018, o comediante branco Tom Segura começa, em determinado momento, a mencionar palavras que podem soar ofensivas, que antes eram usadas comumente, mas que agora são reprováveis. Lista algumas delas. Em seguida, em uma brincadeira de pergunta e resposta consigo mesmo, ele diz: “Vocês podem estar aí sentados e se perguntando: ‘Tom, o que nós ainda podemos dizer? Vou te dizer o que nós podemos dizer: ofensas raciais contra brancos. Todas elas.” E a plateia ri. Muito. E definitivamente não se tratava de uma plateia composta exclusivamente por negros. Depois, ele lista uma série de insultos contra brancos. A plateia continua rindo e ele completa: “Ninguém se importa. […] Não é um grupo historicamente marginalizado. […] A palavra hunky [branquelo] é hilária por si só. Mas, por alguma razão, pessoas brancas verdadeiramente racistas se agarraram a ela. É um indicador óbvio para apontar um racista. Se eles se sentirem ofendidos, saiam correndo, ok?”

Ser tirado do centro gravitacional da norma, para muitos brancos, é inaceitável. E as justificativas são as mais pueris possíveis, o que faz com que tenhamos que, uma vez mais, dizer o óbvio ululante: qual é o prejuízo que uma pessoa branca sofre ao ser chamada de branquela, palmito ou ouvir que a sua pele é uma deformação genética? Nenhum. Em contrapartida, qual é o prejuízo que o racismo traduzido em ofensas traz aos negros? No limite, o genocídio. Lealdade entre pessoas negras é autodefesa e valorização da negritude é resposta ao racismo. Lealdade entre homens brancos e valorização da branquitude é nazismo.

Simples assim.

Daí o caráter profundamente violento de autores que apresentam – tal qual novos Datenas do debate racial – dados que não são talvez nem meias verdades sobre agressões de negros, dando a entender que estes estariam querendo se tornar os novos opressores. Eles “querem o poder”, é argumentado. E isso é afirmado sem nem avermelhar as bochechas branquelas dos que sabem que à população negra não é permitido sequer o direito de poder viver. Puro vandalismo, como bem o disse Antonio Prata[2]. Daí o teor de cinismo presente em afirmações generalizantes como “por que não falar da liberdade de todos os seres humanos?”. Nota-se facilmente a falácia argumentativa que, no caso, envolve o descaso com a sinceridade na análise da própria realidade. Apontar o dedo para a afirmação da identidade negra ignorando todos esses fatores históricos, sociais e psicológicos é uma tentativa de capturar os afetos tanto daqueles que há tempos optaram por sustentar o seu racismo a céu aberto quanto dos que julgam agir em nome de um mundo mais justo enquanto se reúnem em torno de fantasias racistas de ressentimento branco.

II

Identidades são, portanto, determinações incontornáveis das associações humanas, a partir das quais emergem modelos particulares de negociação e conflito no interior das organizações sociais. Recentemente, uma forma particularmente significativa desse conflito, cujos contornos são globais, tem sido a ofensiva crescente contra um conjunto amplo e diverso de movimentos agrupados – desde “fora” – sob a alcunha de “identitários”. O recente sucesso eleitoral de candidatos de extrema-direita em diversas partes do mundo – como no caso dos EUA e do Brasil – foi, em grande parte, sustentado por uma retórica de enfrentamento ao identitarismo, retórica que vem ganhando força também entre segmentos progressistas.

No geral, a designação de grupos sociais com pautas e características as mais diversas sob a alcunha de “identitários” assume contornos bastante problemáticos no interior do debate público, posto que sua função é menos a apreensão conceitual da realidade do que a ofensa reducionista direcionada a um conjunto heterogêneo de sujeitos políticos. Para os objetivos desse texto, contudo, podemos nos valer da boa definição apresentada por Silvio Almeida em seu prefácio ao livro de Asad Haider dedicado ao tema: Armadilha da Identidade, a propósito, uma obra fundamental para quem se interessa pelo assunto[3].

No texto, o identitarismo é definido como “uma das formas assumidas pela ideologia neoliberal, que cultua o hiperindividualismo, o empreendedorismo, as ‘metas’ e que, ao mesmo tempo, justifica a destruição do valor da solidariedade e dos mecanismos estatais de proteção social”. Uma forma de captura de pautas reivindicatórias com o objetivo de abrir espaço para o extermínio e encarceramento em massa da população negra e indígena como método de controle da pobreza. Ou seja, trata-se de uma estratégia de despolitização e esvaziamento de antigas lutas por emancipação (movimento negro, feminista, LGBTQIA+) que faz com que estas passem a funcionar a favor das tecnologias perversas de manutenção da barbárie social. No limite, tal abordagem essencialista das identidades, tomadas como elementos fixos não relacionais (o negro em si), tem como corolário a impossibilidade de se contrapor a eleição de alguém como Sérgio Camargo (um homem negro filho de Oswaldo de Camargo, figura histórica na luta antirracista do país) para a presidência da Fundação Palmares – afinal, um ganho inequívoco em termos de representatividade neoliberal que é, ao mesmo tempo, uma derrota para o povo negro.

Como se vê, críticas sérias aos aspectos problemáticos do identitarismo são importantes e muito bem vindas. Por isso mesmo, vem sendo realizadas de forma consistente desde há muito tempo no interior dos próprios movimentos sociais e por intelectuais comprometidos como Paul Gilroy, Achille Mbembe, Judith Butler, Frantz Fanon, Asad Haider, Nancy Fraser, Slavoj Zizek, Alain Badiou, Douglas Barros e Paulo Arantes, para ficarmos no básico. O problema começa quando tais críticas tomam a forma de um anti-identitarismo de fachada que, em nome do combate aos excessos desses grupos, assume a defesa raivosa de identidades já hegemônicas, em particular o identitarismo branco. É nesse ponto que o ataque ao “terror identitário” por parte de grupos de esquerda e liberais acaba se aproximando perigosamente de extremos abertamente reacionários.

III

Para capturar a atenção e o afeto de seus leitores, os anti-identitarios reacionários costumam se utilizar de uma série de artifícios e estratégias recorrentes em seus panfletos. Dentre elas, o teor de generalidade dos argumentos, que atua por meio do deslocamento formal entre premissa e conclusão. A estratégia é bem conhecida: para “comprovar” que os negros são tão racistas quanto os brancos, defensores apaixonados do identitarismo branco como Leandro Narloch e Demétrio Magnoli costumam mobilizar a imagem – real – de negros libertos que possuíam seus próprios escravos. O objetivo declarado dos autores é “confrontar” as visões maniqueístas dos “fascistas identitários”, demostrando que as relações raciais por aqui são muito mais complexas do que a oposição entre preto oprimido e branco opressor. Todos teríamos algo de vítima e algoz. Uma consideração bastante óbvia – todas as relações humanas são mais complexas do que a capacidade de apreensão das categorias dicotômicas – construída sob medida para gerar a adesão fácil e imediata do leitor, confirmado como um cidadão sensato e inteligente.

Estabelecida a premissa, parte-se para o salto ideológico: se os próprios negros possuíam escravos, não é possível afirmar que, no limite, a culpa pela escravidão é tanto destes quanto dos brancos? Afinal, todos usufruíam dela em alguma medida… Ou melhor, será que a reponsabilidade dos negros não é ainda maior do que a dos brancos? Se eles próprios não lutaram contra seus opressores, comportando-se de forma tão vil e covarde ao escravizar seus próprios irmãos, que moral têm para cobrar responsabilidade dos brancos? Note-se como, num passe de mágica, os negros deixam de ser as principais vítimas para se tornarem colaboradores e, finalmente, culpados pela própria escravidão. Por trás de uma retórica aparentemente argumentativa oculta-se a mais pura distorção, por meio de uma simetria absolutamente falsa – e estúpida – entre a condição de negros e brancos no período escravista. Pois se é verdade que alguns negros puderam passar à condição de libertos através de processos diversos de emancipação e, eventualmente, adquiriam seus próprios escravos, qualquer criança é capaz de compreender que estes escravos jamais seriam brancos. Donde, então, a equivalência?

Passemos a outro exemplo, regido pelo mesmo princípio formal de distorção entre premissa e conclusão. A despeito da naturalização de sua prática na vida social, ninguém se declara publicamente favorável ao estupro, seja qual for sua motivação. Nesse sentido, o crime é considerado abjeto a despeito de ser praticado por brancos ou negros – e quanto a isso não resta a menor dúvida. Logicamente, portanto, espera-se de qualquer ser humano civilizado a condenação de um grupo de rapazes pretos “que curraram uma moça branca e fuzilaram um jovem branco”, conforme citado em um texto recente em defesa da branquitude reacionária[4]. Nesse caso, a rejeição do leitor é o efeito moral que se busca mobilizar, e o truque ideológico consiste na associação do caráter abjeto desse crime a uma lógica própria ao identitarismo, como se toda afirmação de orgulho negro resultasse necessariamente no estupro de jovens brancas. Tal horror, obviamente, precisa ser detido na fonte antes de chegar ao poder – eis a justificativa para a violência desabusada dos ataques.

Agora, busquemos transpor essa mesma imagem para o período escravista. Imaginemos um grupo de escravos negros raivosos a currar uma moça branca, enquanto assassinam seu marido. Sim, sabemos que a regra nessa época era o exato oposto, mas extrair uma norma geral da própria fantasia faz parte da construção argumentativa desse tipo peculiar de racismo antirracista. Portanto, são escravos currando uma mulher branca e, ainda que escravos, ninguém é a favor disso (a não ser os identitários sanguinários imaginados pelo medo branco). Na sequência, o salto ideológico, que nada tem a ver com a premissa inicial: a consequência lógica da rejeição ao estupro só pode ser a negação da legitimidade dos movimentos de libertação que agem em nome dos interesses específicos da comunidade negra. Segundo a lógica formal que se baseia nesse medo, portanto, o fim da escravidão certamente resultaria em uma onda de crimes contra os brancos, tal qual na “bárbara” Revolução Haitiana, iniciada em 1791. Não por acaso, esse era um dos argumentos centrais do partido escravocrata brasileiro no século XIX para a manutenção da escravidão.

É relativamente fácil perceber que a utilização dessa bem conhecida imagem de um grupo de estupradores negros, verdadeiro clássico do imaginário branco, nada tem de gratuita. O objetivo nesse caso é a mobilização de afetos racistas mais ou menos inconscientes em nome da defesa da honra e pureza de vítimas inocentes. A tática, que não é nova, tem sido frequentemente mobilizada em momentos particularmente significativos do debate racial, como estratégia contrainsurgente. O falo gigantesco e carnudo do homem negro é o grande objeto de desejo/medo do homem branco e a mobilização dessa figura tem função castradora, que legitima quaisquer estratégias de controle da sua bestialidade, por mais bestiais que sejam.

É Angela Davis quem nos recorda que “o mito do estuprador negro tem sido invocado sistematicamente sempre que as recorrentes ondas de violência e terror contra a comunidade negra exigem justificativas convincentes”[5]. Ora, não é de se espantar que essa figura volte a aparecer no debate público contemporâneo. Se nos EUA pós-Guerra Civil o mito serviria sobretudo como justificativa moral para a prática sistemática de linchamentos contra pessoas negras promovida pelos derrotados sulistas, nossos honrosos cavaleiros anti-identitários buscam adequá-lo ideologicamente ao atual momento de desmonte das políticas públicas progressistas, em particular o sistema de cotas – claramente uma conquista democrática do movimento negro, interpretada pelo identitarismo branco em termos de “apartheid educacional”[6], cujo resultado paradoxal são universidades muito mais diversas etnicamente.

O objetivo estratégico do mito é bastante claro: promover a desmobilização progressista e mobilizar afetos de justiçamento às avessas. “Assim que queixas de estupro se propagaram a ponto de se tornarem desculpas que legitimavam os linchamentos, antigos defensores brancos da igualdade negra passaram a temer cada vez mais a associação de seu nome com a luta pela libertação do povo negro”[7]. Quem é maluco o suficiente para defender um movimento identitário que prega que negros possam estuprar impunimente? Melhor cortar o mal pela raiz, como nos ensinaram os ilibados cidadãos de bem do sul dos EUA, que logo após a derrota para o norte com o fim da Guerra Civil promoveram cerca de 10 mil linchamentos de negros e negras. Além, é claro, de estupros sistemáticos.

IV

Talvez um dos casos mais emblemáticos nesse sentido seja o do polemista Antonio Risério, figura que vem se destacando na linha de frente da “cruzada anti-identitária” desde uma perspectiva, segundo ele próprio, à esquerda (“Planto meus pés, com toda clareza e determinação, no campo da esquerda democrática”[8]). Para ele, o identitarismo figura como um dos grandes males da sociedade brasileira contemporânea, assolando em particular os ambientes universitários (e aqui não passa batida a proximidade dessa fantasia com o imaginário de extrema direita a respeito das universidades públicas infestadas de “esquerdistas maconheiros”). Em nome do combate aos terríveis males dos “neo-negros fascistas” que tem “cerceado a liberdade de pensamento” no outrora “livre e democrático ambiente intelectual de esquerda”, o antropólogo tem assumido uma postura cada vez mais regressiva e violenta, de amplo apelo popular, feita sob medida para viralizar nas redes sociais.

Risério – fã declarado de ACM e ex-militante petista – pertence aquela categoria de intelectuais mais ou menos progressistas que ao longo de sua trajetória buscou diferentes formas de aproximação com a cultura popular. Nessa linha publicou, ao longo da década de 1990, excelentes trabalhos sobre a cultura baiana – seu livro sobre Caymmi é um primor, bem como seu debate sobre a “vanguarda baiana”. Progressivamente, contudo, sua perspectiva de elogio à mestiçagem, de matriz freiriana, vai sofrendo derrotas sucessivas em termos de capacidade de articulação política e manutenção da hegemonia cultural. Tal crise ocorre em meio a profundos processos de transformação global do capitalismo, que entre outras coisas fez naufragar o antigo projeto de nação que alimentou os ânimos de toda uma geração comprometida com o paradigma de formação nacional. O projeto-Brasil terminou por dar com os burros – e todo resto – n’agua. Em sua cabeça, entretanto, os grandes responsáveis pelo envelhecimento “precoce” de suas bases intelectuais teriam sido os novos atores políticos negros e periféricos (juntamente como as feministas), os quais julga intelectualmente inferiores e injustamente privilegiados no debate público em razão de sua cor. É nesse momento que Risério assume para si o compromisso ético e moral de liderar o glorioso levante branco contra os efeitos perversos da dominação negra.

O ideólogo baiano não está sozinho nessa: a vitória esmagadora da militância negra contra a noção reconfortante de democracia racial levou um conjunto significativo de “brancos mestiços” (para usarmos a terminologia do autor) a assumir uma postura de ressentimento que progressivamente alça o polemista à condição de porta-voz dos brancos injustiçados do país – um interessante caso de discriminação contra os de cima, cujo saldo é a manutenção do mesmíssimo conjunto de privilégios. O resultado de toda essa mobilização é o nascimento de uma curiosa e aparentemente paradoxal versão brasileira de supremacismo: o supremacismo mestiço.

Note-se que há originalidade no imbróglio, e por isso vale a pena acompanhar mais de perto alguns padrões argumentativos do autor, que revelam um modo bem particular de expressão de ódio racial.

V

Em um primeiro momento, os trabalhos mais recentes de Risério parecem dotados de caráter estritamente argumentativo. Observados com maior atenção, contudo, nota-se que seu esforço principal é menos o encadeamento lógico de ideias do que o desenvolvimento de certa ambientação. Isso fica evidente em seus ataques publicados na grande imprensa, bem como no título histriônico e grandiloquente de um de seus últimos livros (Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária), que traz alguns capítulos marcados pelo mesmo teor de exagero, tais como Caminhos para a cracolândia mental e A bolha neonegra e o afro-oportunismo. Trata-se, enfim, de um mecanismo recorrente, cuja função estrutural vale a pena acompanhar.

Para fãs de filmes de terror, a estratégia desses textos é a mais transparente possível: trata-se de pintar um cenário tipicamente gore, marcado por um clima de violência constante promovida por slashers extremistas que agridem indistintamente crianças, mulheres e idosos por pura maldade e selvageria. Um cenário repleto de assassinos, psicopatas e outras ameaças sobrenaturais à espécie humana onde ninguém, em sã consciência, gostaria de viver. Mas o verdadeiro pulo do gato está no passo seguinte: a associação desse imaginário com um grupo particular de identitários selvagens e tresloucados. Eis a funcionalidade ideológica desse cenário distópico, verdadeiro Massacre Negro da Serra Elétrica.

Mostrar a que esse cenário serve, entretanto, é somente o começo da conversa. Afinal, sujeitos constroem suas fantasias na medida em que são por elas construídos e, nesse sentido, pode-se dizer que Risério não apenas optou por essa lógica argumentativa como, de certo modo, ele não teria condições estruturais para desenvolver seu argumento de outra maneira. Seu pensamento, ao menos naquilo que se revela textualmente, está estruturalmente condicionado à fantasia que o mobiliza.

Assim, cabe passarmos à próxima pergunta: porque o identitarismo branco precisa operar com essa fantasia de slasher movie em sua argumentação? A resposta é simples: porque o domínio da realidade, em tudo distinto ao universo por ele imaginado/desejado, foi rigorosamente mapeado pela intelectualidade negra e seus aliados. No plano da realidade, é fartamente comprovado que os negros são a maioria dentre os desempregados e a maioria em condições de extrema pobreza (74,4% segundo o Ipea), os que possuem os menores rendimentos e os menores índices de escolarização, os que mais são presos e mortos pela polícia. Graças aos esforços do movimento negro, esses dados são atualmente bem conhecidos e divulgados. O domínio da fantasia, portanto, é tudo o que resta para nosso cavaleiro branco. Ou melhor, branco-mestiço.

Claro que é sempre possível argumentar, não sem alguma razão, que tais textos trabalham com uma série de dados factuais, ainda que parciais, facilmente verificáveis com uma busca rápida pelo Google. Mas é precisamente nesse ponto que devemos nos ater a um aspecto básico da teoria narrativa: os fatos, aqueles aspectos mais “palpáveis” da realidade, podem ou não estar presentes nas histórias ficcionais. Mas o que lhes determina o significado é o sentido geral constituído pelo enquadramento do foco narrativo. Ou seja, é o foco narrativo que determina a função que os fatos assumirão na história e, em última instância, o que eles querem dizer. O fato nunca é algo “em si mesmo”.

É comum que determinados nichos de filmes de terror – como os found footages, estilo Holocausto Canibal (1980) ou A Bruxa de Blair (1999) – apresentem um aviso indicando que aquele material encontrado é verdadeiro, ou que tal história é “baseada em fatos reais”. A função do aviso é, obviamente, menos documental que narrativa. No caso de filmes sobre exorcismo, que frequentemente se aproximam de alguns dogmas mais polêmicos da igreja católica, o aviso diz respeito menos à possibilidade de nos encontrarmos com o capiroto no mundo real do que à localização da obra em certo imaginário específico. O aviso não está ali para confirmar o teor “realista” da história, atestando a fidelidade da sua representação dos espíritos malignos. O que a frase atesta é, antes, a materialidade da própria instituição e a fidelidade do enredo a seu conjunto de dogmas, reforçando a crença tanto em demônios quando no poder da igreja de devolvê-los ao inferno. O aviso é um atestado de adesão ideológica aos dogmas cristãos.

O ponto decisivo, portanto, não é que o filme deseje ou não ser lido em chave realista, mas sim, que ele demanda que o público tome os dogmas cristãos como verdadeiros. A verdadeira mensagem é “você pode ou não acreditar na história apresentada pelo filme, com seu conjunto de clichês sobre possessão, demônios, padres que perderam a fé etc. Mas é preciso que você acredite que a Igreja Católica verdadeiramente acredita nisso, e que ela acredita por você”. É preciso crer na própria fantasia cristã, e não em sua pretensa confirmação “realista” – eis o verdadeiro movimento ideológico desses filmes, que exigem um salto de fé. Uma possível “tradução” para a frase “baseado em fatos reais” seria, portanto, algo como “baseado em um sistema de crenças determinado” – por mais herética que a obra possa, a princípio, parecer. Filmes de terror são conservadores por excelência e, salvo exceções, tendem a aderir ao imaginário hegemônico mais regressivo.

Aprisionados a uma fantasia de slasher negro, os dados presentes nos panfletos de Risério cumprem exatamente a mesma função que o aviso de “fatos reais” nos filmes de terror. Ainda que possa haver um ligeiro flerte com a materialidade de alguns acontecimentos, estes são radicalmente subvertidos para aderir a um imaginário profundamente reacionário. A “realidade” funciona aqui como esteio último da ideologia.

Vejamos um exemplo presente em um de seus últimos textos publicados na grande imprensa, cujo objetivo era a comprovação da existência e riscos reais do “racismo reverso”[9]: “Em Crown Heights, no verão de 1991, os pretos promoveram um formidável quebra-quebra que se estendeu por quatro dias, durante o qual gritavam ‘Heil Hitler’ em frente a casas de judeus. Mas a elite midiática, do New York Times à ABC, contornou sistematicamente o racismo, destacando que séculos de opressão explicavam tudo”.

Uma cena terrível, à la Tarantino, construída sob medida para fixar a imagem consensualmente odiável de um grupo de nazistas negros movidos por puro ódio bestial contra os judeus. Esse trecho é exemplar da maneira como o autor organiza seus argumentos – ou melhor, suas imagens. Sua metodologia já foi muito bem dissecada por Fernando Conceição em um texto que nos apresenta tudo aquilo que “escapou” ao olhar do antropólogo[10]. Nele, ficamos sabendo que antes do “formidável quebra-quebra” promovido pelos negros, um carro dirigido por um judeu “avançou o sinal e atropelou duas crianças, filhas de imigrantes guianenses”. Uma das crianças, de apenas sete anos, morreu, enquanto a outra ficou gravemente ferida. Uma ambulância da comunidade judaica se apresentou rapidamente ao local, mas levou apenas o criminoso para um hospital privado, enquanto “as crianças atropeladas ficaram no asfalto debaixo do carro aguardando socorro”.

Podemos, obviamente, seguir condenando os contornos antissemitas do episódio, mas o cenário torna-se muito mais complexo quando são apresentadas todas as variantes do conflito, ao invés de um apanhado de recortes descontextualizados feitos sob medida para reforçar a imagem de um bando de identitários malvados e perversos a assombrar uma comunidade branca inocente. O cenário fantasioso de supremacismo negro só pode aparecer enquanto Frankenstein argumentativo porque, de fato, ele só existe na imaginação do autor que lhe deu forma. Um cenário que não encontra fundamento na realidade, mas que, ainda assim, busca transparecer veracidade, de modo a reforçar o clima de ameaça negra imediata. Daí seu tom farsesco, porém funcional; espécie de mamadeira de piroca antinegra. Seu fundamento não é a realidade, mas o medo.

Nessas crônicas anti-identitárias de contornos reacionários, o movimento negro seria responsável por produzir ameaças de castração branca, violência sexual e antissemitismo, cujo horizonte final é o enaltecimento, como herói, de um Hitler Negro. Na prática, o movimento negro nos legou Lélia Gonzáles, Clóvis Moura, Dona Ivone Lara, Elza Soares, Emicida e um intelectual\artista do porte de mano Brown, superior ao antropólogo tanto na arte quanto na produção de pensamento crítico. Além de ser o grande responsável por colocar os negros dentro das universidades, conquista contra a qual Risério luta ferozmente.

Sem o esteio da realidade, resta a Risério dar giros em torno de sua própria fantasia. Afinal, esse é o único material disponível para o autor sustentar a premissa de que “não existe identitarismo que não traga em si algum grau e alguma espécie de fundamentalismo”. A ideia de que a organização política da comunidade negra a partir de seus próprios termos, tem como horizonte de chegada incontornável o irracionalismo fundamentalista. Impossibilitado de sustentar tal premissa na realidade, resta a seu autor rebaixar o debate em nome da afirmação de antigos lugares de poder.

A despeito de sua falsidade transparente – ou talvez por isso mesmo –, tal roteiro gore não deixa de ser sintomático a seu modo. Pois o clima pesadelo retratado por Risério curiosamente ganha em consistência quando o trazemos para o plano mais concreto da vida cotidiana no país, obviamente que invertendo-lhe a orientação. Nessa realidade encontramos Emilly, de 4 anos, e Rebeca, de 7, mortas a tiros enquanto brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias (RJ). João Pedro, 14 anos, morto dentro de casa enquanto brincava com seus primos. Ágatha Felix, 8 anos, morta enquanto passeava com a família. Marcos Vinícius, 14 anos, morto a caminho da escola. O filho por vir de Kathlen de Oliveira Romeu, morto antes mesmo de nascer. O menino Miguel Otávio, que morreu em Recife por negligência da patroa branca de sua mãe. Poderíamos seguir nessa listagem desoladora por muito mais tempo.

O pesadelo brasileiro é real, cotidiano e negro. Daí que, ao tentar convencer o leitor branco de que é ele quem é efetivamente ameaçado por sua cor, o resultado só pode aparecer na forma de argumentos que não escondem seu desejo obsceno, uma fantasia sádica que reflete, em chave invertida, a experiência de ser negro no Brasil, desde a perspectiva de um olhar francamente racista, que convém ser chamado pelo nome. Ao inverter sadicamente os pressupostos materiais dessa experiência (“quem vive o pesadelo racista são os brancos”), Risério não apenas promove uma segunda violência, simbólica, em formato de chacota, mas sintomaticamente expressa o que de fato deseja para a comunidade negra, na forma de fantasias violentas de silenciamento. Por que o Brasil é tão violento com os negros? Porque o olhar que nos observa tem o mesmo tipo de ódio concentrado nas fantasias obscenas expressas por Risério. O texto fracassa completamente em retratar o que seria a experiência de opressão do branco por parte do negro, mas é um excelente exemplo de fantasia racista em estado bruto. Não porque ele pretende mostrar que existem extremistas, violências e injustiças também entre os negros (o rap já fez isso, e melhor). Mas porque o que ele faz efetivamente é mobilizar uma fantasia reacionária baseada em distorções e falácias com o objetivo declarado de atacar as lutas do povo negro, declarando-as fascistas.

VI

Entretanto, é muito provável que, a despeito da clareza com que o racismo é ostentado em seu pensamento, Risério não seja considerado racista por aqueles que o seguem em sua cruzada anti-identitária. Na verdade, é bastante provável que sequer o próprio antropólogo, honestamente e sem cinismo, se considere como tal. Surge, pois, a questão incontornável: como isso é possível diante de tantas evidências? Eis a pergunta de um milhão de dólares, cuja resposta diz respeito às profundezas dos processos de racialização do país.

 Aqui é preciso considerar um componente fundamental do racismo brasileiro, que Florestan Fernandes caracterizou brilhantemente como o preconceito de ter preconceito – nada mais, nada menos que a desativação da categoria “racismo” como mecanismo de nomeação das práticas sociais. O racismo não apenas existe como pode e deve ser cotidianamente praticado, desde que nunca seja nomeado enquanto tal. Mesmo nos casos em que ele é claro e transparente, como nas intervenções recentes de Risério, suas possibilidades de nomeação enquanto tal são truncadas. Seu segredo é ser profundamente violento contra os negros e, ao mesmo tempo, tratar o fator raça com sendo sempre circunstancial (brancos também podem ser agredidos, violentados etc.). Afinal, desde a perspectiva brasileira média, a violência direcionada contra negros não é racismo, mas sim normalidade democrática.

Levando essa lógica ao limite, podemos dizer que só serão considerados casos de racismo no Brasil aqueles em que o sujeito afirmar com todas as letras que sua motivação principal foi o ódio racial. E como racismo por aqui é crime – ainda que apenas no papel – cria-se uma situação, no mínimo, absurda: a existência do crime depende da autodeclaração do criminoso para ser assim considerado. Como se o ato em si de roubar uma casa, traficar, matar alguém etc., não fosse tido como indício forte o suficiente para considerar a existência de um crime, sendo necessário que o próprio criminoso declare de bom grado sua culpa, mesmo quando pego em flagrante. Ou seja, no Brasil, caso um racista não se declare enquanto tal, ele pode agir exatamente como um membro da Klu Klux Klan que seus atos serão sempre interpretados em chave diversa.

Ao afirmar que o brasileiro tem preconceito de ter preconceito, Florestan ilumina o problema com grande sagacidade, mas não chega a acertar completamente o alvo. Pois ainda resta a sugestão implícita de que o racista brasileiro guarda algum tipo de distanciamento moral de suas práticas discriminatórias. Mas a verdade é que o racista brasileiro ama o seu racismo, pois poder expressá-lo livremente é a forma mesma de demarcação do seu poder. Ele não tem problema algum em ser visto como alguém que menospreza negros e indígenas, sobretudo quando se trata de exibir-se perante seus pares. A questão é menos ética que estrutural: o branco-mestiço por aqui sabe que o racismo é absolutamente autorizado e impune, desde que não se assuma publicamente a motivação racial. Ou seja, o que segura a autodeclaração do racista não é algum tipo de vergonha, preconceito ou entrave moral, mas uma questão de ordem prática: basta não declarar a motivação racial para que se esteja socialmente autorizado a fazer exatamente o mesmo que se faria declarando-se racista, sem o ônus de ser taxado criminalmente. Para que, então, desfazer-se dessa vantagem estratégica? Afinal, posso matar quantos negros desejar, inclusive menores de 12 anos, desde que declare estar agindo no cumprimento do meu dever. Um verdadeiro paraíso para mentalidades genocidas.

Daí o aparente paradoxo de textos e livros descaradamente racistas escritos com o objetivo de comprovar que, no Brasil, o racismo é coisa pouco grave e circunstancial. Note-se que o paradoxo formal – um texto antirracista que é racista até a medula – é desfeito em sua dimensão prática. Pois é óbvio que esses textos não tem por objetivo “confrontar o racismo identitário”, ou coisa que o valha, mas sim apresentar para seus leitores um exemplo prático da melhor maneira de defender o próprio racismo sem precisar nomeá-lo – uma espécie de Pequeno manual pra ser racista, que bem poderia ser o título da coleção de Guias Politicamente Incorretos de Leandro Narloch. No caso, basta afirmar-se como alguém que não é racista, ou como alguém empenhado no combate ao perigosíssimo “racismo reverso”, para que o conteúdo objetivo do texto – independentemente de seu teor – seja tolerado como desprovido de racismo. Afinal, a dimensão tautológica dos processos brasileiros de racialização nos informa que, por aqui, só será considerado racista quem afirmar com todas as letras que o é, e não quem efetivamente praticar o racismo, o que nos conduz ao limite paradoxal de um racismo sem racistas, um crime contínuo e permanente, sem criminosos. Um crime perfeito, portanto, nas palavras de Kabenguele Munanga (a propósito, Kabenguele, intelectual reconhecido nacional e internacionalmente como autor de uma obra conceitual de grande fôlego, é tratado por Risério como um “negro menos lunático”. Mas isso não é, racismo, é só um modo de dizer). Num país mestiço, a morte sistemática de negros sempre acontece em nome de outra coisa que não ela mesma. Nesse processo, livra-se a cara dos nossos brancos, enquanto modernos feitores são representados como aliados. Ser branco por aqui nunca foi uma questão de pureza racial – no mais, uma ficção – mas sim de posse violenta dos critérios de nomeação. A luta antirracista é uma disputa pelo nome da coisa.

Para o filósofo Douglas Barros, que se aproxima de Fanon para enfrentar os riscos contidos em um olhar que essencializa parâmetros raciais, a melhor forma de combater o identitarismo é atacar na base os fundamentos dos processos de racialização, indissociáveis do modo de produção capitalista. E a comunidade mais bem preparada para ocupar a linha de frente dessa luta seria o próprio movimento negro, que, “em sua heterogeneidade, é uma das únicas forças capazes de indicar uma superação efetiva das relações baseadas no capital nesses tristes trópicos”[11].

Enquanto isso, um grupo raivoso de anti-identitários reacionários propõem que a melhor forma de combater o identitarismo é recuperar o imaginário do negro estuprador e inseri-lo em uma fantasia gore pervertida de contornos reacionários. Não é tão difícil distinguir um pensamento rigoroso e complexo de uma ideologia reacionária de tiozão do WhatsApp. É preciso um bom tanto de ingenuidade (ou má-fé) para não reconhecer que esse pensamento é muito mais pernicioso do que o movimento regressivo que afirma combater e que, caso o problema fossem alguns possíveis excessos dos “identitarismos”, o seu melhor antídoto seria acabar com a normatividade branca – fundamento último da racialização.


[1] RISÉRIO: Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo. (Folha)

[2] Sommeliers de movimento social

[3] HAIDER, Asad. Armadilha da identidade. São Paulo: Veneta, 2019.

[4] Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo.

[5] DAVIS, Angela. Estupro, racismo e o mito do estuprador negro. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.

[6] Demétrio Magnoli. Léxico da violência. Folha de SP, 21 jan. 2022.

[7] Davis, 2016, p. 210.

[8] RISÉRIO, Antonio. Sobre o relativismo pós-moderno e a fantasia fascista da esquerda identitária. Rio de Janeiro: Topbooks, 2019.

[9] Racismo de negro contra brancos ganha força com identitarismo.

[10] https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2022/01/riserio-ideologo-de-senhores-brancos-distorce-a-verdade-sobre-racismo.shtml

[11] BARROS, Douglas Contra o retorno às raízes: identidade e identitarismo no centro do debate. Le Monde Diplomatique Brasil. São Paulo, 21 de fev. 2018.

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