Esse ensaio foi originalmente publicado, com algumas modificações, em AISTHESIS: Revista Chilena de Investigaciones Estéticas, sob o título de “O que emerge depois do fim: caminhos e contradições do rap brasileiro”.
1.
No dia vinte e três de outubro de 2018, vésperas do segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, o Partido dos Trabalhadores organizou um comício no tradicional bairro da Lapa, no centro do Rio de Janeiro. Milhares de pessoas se reuniram para ouvir o discurso do então candidato à presidência Fernando Haddad, na ocasião acompanhado por diversos apoiadores de peso do campo político e cultural, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Marieta Severo, Osmar Prado e Leonardo Boff. Junto a eles estava um dos mais importantes rappers do Brasil, Mano Brown, integrante do grupo Racionais MC’s. O momento era de mais profunda tensão, pois o país estava a menos de uma semana de decidir se permaneceria no rumo seguro da “normalidade” democrática, ou se cairia nos braços do fascismo – ao menos eram esses os termos correntes do debate público.
As falas sucediam-se com as mensagens de praxe: esperança, empenho da militância, combate ao fascismo etc. Unir-se ao PT era a única esperança do país contra o candidato da extrema direita, e a vitória, ainda que difícil, era certa. O clima era de festa. Pelo menos, até Mano Brown pegar no microfone:
Eu não gosto do clima de festa. A cegueira que atinge lá atinge nois também. Isso é perigoso. Não está tendo motivo pra comemorar, tem quase trinta milhões de votos para alcançar. Não temos nem expectativa nenhuma para alcançar para diminuir essa margem. Não estou pessimista, só realista. Eu não consigo acreditar que pessoas que me tratavam com tanto carinho, pessoas que me respeitavam, me amavam […], se transformaram em monstros. Essas pessoas não são tão más assim. Se, em algum momento, a comunicação do pessoal daqui falhou, agora vai pagar o preço. Porque a comunicação é alma, e, se não está falando a língua do povo, vai perder mesmo, certo? Falar bem do PT para a torcida do PT é fácil. Tem uma multidão que não está aqui que precisa ser conquistada, ou a gente vai cair no precipício. […] Eu estou vendo casais se separando, amigos de mais 35 anos deixando de se falar… [vaias], se eu puder falar também vai ser bom, se eu não puder também, vou parar, já era e foda-se. […] Tenho amigos que eu já não consigo olhar no rosto deles por causa de política. Não vim aqui para ganhar voto, porque eu acho que já está decidido. Agora se falhou, vai pagar, quem errou vai ter que pagar mesmo, certo?! [mais vaias] Não gosto do clima de festa. O que mata a gente é a cegueira e o fanatismo. Deixou de entender o povão, já era. Se nós somos o Partidos dos Trabalhadores, partido do povo, tem que entender o que o povo quer. Se não sabe, volta para base! E vai procurar saber. As minhas ideia é essa. Fechou!
Mais recentemente, Mano Brown teve a oportunidade de ficar cara a cara com o Lula no seu podcast de entrevistas (Mano a Mano), aproveitando a ocasião para explicar por que ele resolveu falar aquilo em um momento que, segundo ele, não havia sido planejado. De cima do palanque, Brown teria percebido que “a massa negra, a massa operária, da favela e do morro” não estava presente no ato “em defesa da democracia”. Havia a presença maciça da militância petista, tanto no palanque quanto na plateia, mas a classe trabalhadora não parecia nem um pouco interessada em participar da festa. Os poucos trabalhadores presentes– garis, motoristas e seguranças – estavam ali não para declarar apoio a Haddad, mas para garantir uma grana a mais no final do mês. Não por acaso, quando o Brown desce do palanque, são esses que vão agradecê-lo por ter dito tudo aquilo que eles gostariam de dizer.
Ou seja, aqueles que haviam colocado o PT no poder estavam ausentes da grande festa da democracia. E a grande pergunta, que, naquele momento, a esquerda parecia incapaz de responder, era: onde é que eles foram parar? E por quê? A festa havia virado um velório, e, cinco dias depois, Bolsonaro, candidato de extrema direita, cujo foco da campanha foram as redes sociais, fecharia de vez a tampa do caixão.
2.
Ao longo dos últimos anos, tanto o rap quanto a cultura hip hop em geral vem ocupando um lugar cada vez mais consolidado no interior do campo cultural hegemônico no Brasil. Se, até pouco tempo, a ideia de que o rap nacional é um dos gêneros artísticos e culturais mais importantes da atualidade encontrava forte resistência em circuitos críticos mais especializados, atualmente, observa-se um amplo processo de consolidação dessa perspectiva perante a opinião pública. A tal ponto que a noção mesma do hip hop como “cultura marginal” se vê problematizada pelas circunstâncias. Não é de todo exagerado afirmar, portanto, que o rap hoje conseguiu adentrar determinado circuito do mainstream nacional.
E como, em geral, tende a acontecer nesses casos, verifica-se uma série de esforços no sentido de inserir a história do rap no interior de uma bem conhecida narrativa da música popular brasileira, que estabelece uma série de continuidades históricas. Esforços esses dos quais participa o próprio rap ao assumir uma postura de progressiva aproximação mais desarmada tanto diante da mídia hegemônica quanto em relação ao paradigma da MPB da década de 1970. É cada vez mais frequente o uso de samplers de MPB e de samba, além de parcerias e feats com artistas ligados ao gênero – postura essa que se contrapõe à atitude mais radicalmente avessa a tais aproximações assumida pelos pioneiros do hip hop.
Entretanto, o que o discurso disfórico de Brown revela, entre outras coisas, é que, entre os campos do rap e de certa tradição musical brasileira, existe uma clivagem fundamental que, “nos momentos verdadeiramente decisivos, não pode ser apaziguada”. Mais do que isso: ela não deve ser apaziguada. Ainda que a aproximação entre os campos seja uma evidência histórica, acreditamos ser fundamental o reconhecimento de seus pontos de tensão que, no limite, dizem respeito a mudanças estruturais profundas no campo da cultura brasileira e de seus signos de reconhecimento.
São essas diferenças radicais de percepção que explicam tanto as limitações estruturais impostas às obras ligadas ao horizonte da MPB pelas condições do presente quanto o fato de que a produção estética mais dinâmica e menos subserviente a determinados paradigmas outrora hegemônicos é, atualmente, produzida pela periferia. Portanto, inserir essas clivagens no interior de um mesmo significante-mestre nacional, como parte da “diversidade mestiça brasileira”, é uma forma de diluir o que existe de potente no dissenso.
3.
Quando se afirma – algo categoricamente – que a sigla MPB deixou de fazer sentido, o diagnóstico não se refere necessariamente a um conjunto específico de procedimentos estéticos que, inclusive, continuam sendo largamente utilizados. De fato, definir o que se trata por MPB é um movimento que impõe uma série de problemas, pois o termo não delimita propriamente um estilo musical específico, e, sim, um conjunto absolutamente heterogêneo de elementos, por vezes, radicalmente distintos entre si, que são abarcados sob um mesmo rótulo. É basicamente impossível tentar reduzir a MPB a uma série de características formais definidas fundamentadas em critérios estritamente musicais, por exemplo. Entretanto, ainda que não seja possível delimitar esse modelo de canção com base em um conjunto fechado de características particulares, podemos delinear certo horizonte cultural, social e ideológico que integra, em uma mesma rede de significantes, um conjunto de práticas musicais e procedimentos estéticos bastante heterogêneos. Isto é, ainda que não seja possível afirmar com precisão o que a MPB, de fato, é, podemos delinear os contornos imprecisos e fantasmáticos daquilo que ela “imaginou” ser.
Em linhas gerais, MPB é um sistema estético, social e discursivo suficientemente amplo para incluir desde sambistas mais tradicionais como Nelson Cavaquinho e Candeia, até bossa-novistas como Tom Jobim e roqueiros como Raul Seixas, mas suficientemente restrito para excluir um determinado tipo de rock de matriz anglo-saxã. Além disso, os sentidos da sigla são frequentemente flexibilizados ao longo do tempo: Roberto Carlos, por exemplo, que, ao longo das décadas de 1960 e 1980, foi considerado como praticamente o oposto daquilo que seria a “verdadeira” MPB, a partir da década de 1990, será incorporado como representante legítimo dessa tradição, ao passo que artistas do “primeiro escalão”, como Fagner, serão “rebaixados” com o passar dos anos. Em termos culturais, essa tradição faz parte de um espectro mais amplo de interpretação do país que delimita como característica nacional determinante uma “longa e permanente tradição de encontros e mediações” que teriam produzido como marca distintiva da civilização brasileira uma cultura marcada por diversos níveis de mistura e conciliação entre raças e classes sociais, dominado de alto a baixo pelo espectro da mestiçagem. Mestiçagem que, nesse sentido, não se refere apenas ao seu aspecto racial mais imediato, e sim a uma característica sociocultural mais abrangente, espécie de marca distintiva do país, que seria nossa principal contribuição ao espírito do Ocidente.
Essa é uma história bem conhecida tanto dentro quanto fora do país. É a história do samba como síntese do encontro entre classes e raças nos quintais das casas das mães de santo no Rio de Janeiro; a história da mulata como símbolo maior dos “dóceis” e “sensuais” encontros raciais, cuja violência evidente se recalca; a história da ressignificação do futebol europeu por negros e mestiços que elevaram o esporte bretão a um novo patamar de excelência; a história da Bossa Nova, em que “um pequeno setor da classe média ilustrada carioca se aproxima e reinventa os sambas criados pelos negros pobres dos subúrbios e morros cariocas” (Bosco, 2017, p. 38). É essa, enfim, a história de Francisco Alves, Mário Reis, Nara Leão, Zé Keti, Noel Rosa e Chico Buarque.
É importante notar que, durante muito tempo, essa imagem altamente positiva da cultura brasileira alimentou grande parte das esperanças da intelligentsia local, servindo de modelo imaginário para processos sociais e políticos que deveriam ser capazes de realizar o mesmo processo de transmutação do horror em beleza que tomava forma no campo cultural. Ou seja, não se trata apenas de uma visão qualquer de cultura, mas de “uma visão de cultura que impulsiona modelos de atuação e organização política com efeitos concretos na vida social”. A cultura popular – que, para essa tradição, seria formada pela mistura de pretos, brancos, mulatos, pobres, ricos e classe média – fornecia uma espécie de reservatório utópico para a intelectualidade brasileira, prefigurando um projeto de sociedade que o Brasil teria o dever – ou a missão – de realizar no plano social.
A MPB foi, portanto, um dos campos culturais privilegiados, a partir do qual foi possível a uma classe média progressista representar os mais diversos tipos de integração (entre o popular e o erudito, o moderno e o tradicional, o europeu e o africano etc.), fortalecendo todo um imaginário nacional que tinha como vetor a necessidade de superação dos processos de exclusão do país com base na incorporação dos mais pobres aos horizontes mínimos de cidadania. Ao longo da década de 1960 e 1970, esse imaginário irá atravessar parte significativa do campo das artes, sendo debatido pelo teatro, cinema, artes plásticas, literatura e, em especial, pela música popular. A partir desse lugar, seria possível tanto contemplar nossas misérias quanto imaginar futuros alternativos. E se os negros fossem de fato incluídos na utopia cordial da “bossa nova”? Jorge Ben. E se a tradição mineira, com seus assombros transcendentais populares, participasse efetivamente de nossa civilização? Clube da esquina. E se o potencial do povo nordestino fosse efetivamente incorporado ao destino da nação? Novos Baianos e o Udigrudi Nordestino. O acerto da forma garantia a verdade da imaginação com resultados estéticos valiosos.
Hoje, essa imagem da cultura popular baseada nos encontros e na conciliação, e a aposta de que ela forneceria os parâmetros ideais de transformação política e social, parece, em larga medida, esvaziada. “O encontro, a mistura, a cordialidade, a malandragem e a ideia de democracia racial” parecem muito mais com imagens ideologicamente mobilizadas pela cultura do espetáculo e da propaganda hegemônica “do que com lastro legítimo de organização da cultura popular” (Bosco, 2017, p. 33). Ao que tudo indica, as condições de efetivação do país que a MPB tornava possível imaginar desapareceram. O que, por sua vez, coloca a questão de que, talvez, tal possibilidade jamais tenha sido efetivamente possível.
4.
Desde um determinado momento entre as décadas de 1980 e 1990, por uma série de razões históricas e que envolvem fatores sociais, econômicos, políticos e culturais, o substrato histórico da MPB vai progressivamente deixando de fazer sentido. Todos os pressupostos dessa cultura, como o encontro, a mistura, a malandragem, a mestiçagem, a cordialidade, são colocados sob suspeita. Sendo favorável a esse imaginário ou não, o fato é que esse conjunto de imagens que pareciam confirmar a singularidade nacional, hoje em dia, parecem muito mais como mecanismos ideológicos explícitos. Falar em mulata, por exemplo, deixou de ser algo positivo; a seleção brasileira masculina vai tão mal das pernas quanto o resto do Brasil; a cultura negra se assume menos como nacional e mais como periférica; e assim por diante. Ao que tudo indica, portanto, as condições de realização do país que a MPB tornava possível imaginar desapareceram ou foram completamente reconfiguradas a ponto de não sustentar mais o mesmo imaginário.
E, do ponto de vista das periferias articulado pelo rap, como se dá a percepção dessa ruína, que leva a um esgotamento radical e profundo tanto da forma quanto do sistema de produção e difusão da música popular?
Em 1985, a democracia havia enfim chegado ao Brasil com a abertura política, realizando, em certo sentido, os ideais utópicos da MPB no enfrentamento ideológico à Ditatura Militar. E, já em 1988, um ano antes da primeira eleição direta para presidente, os Racionais gravariam a primeira versão de “Pânico na Zona Sul”, música composta por Mano Brown e Ice Blue, que vai falar da atuação dos grupos de extermínio nas periferias de São Paulo (que, naquela época, eram formados principalmente por policiais ou ex-policiais aposentados e que vai dar atualmente nas milícias).
Justiceiros são chamados por eles mesmos/ Matam humilham e dão tiros a esmo/ E a polícia não demonstra sequer vontade/ De resolver ou apurar a verdade/ Pois simplesmente é conveniente/ E por que ajudariam se eles os julgam delinquentes/ E as ocorrências prosseguem sem problema nenhum/ Continua-se o Pânico na Zona Sul.
Ei Brown qual será a nossa atitude?/ A mudança estará em nossa consciência/ Praticando nossos atos com coerência/ E a consequência será o fim do próprio medo/ Pois quem gosta de nós somos nós mesmos/ Tipo porque ninguém cuidará de você/ Não entre nessa à toa/ Não de motivo pra morrer (Racionais MC’s – Pânico na Zona Sul).
Ou seja, no momento mesmo em que o país entrava em sua fase democrática, realizando os sonhos da ala mais progressista da elite intelectual brasileira, do ponto de vista das periferias, o que se observava era a continuidade e mesmo a intensificação de processos herdados diretamente da ditadura e, indiretamente, da escravidão – a começar pelo principal deles, que é o modelo militar de organização policial e a sua imbricação com práticas de violência sistemática contra a população negra.
Portanto, da perspectiva dos moradores de periferia que iriam articular as bases do movimento hip hop brasileiro, a imagem do Brasil, no alvorecer do seu processo de democratização, parecia bem pouco promissora, para dizer o mínimo. O futuro democrático parecia já haver chegado há algum tempo, e sua imagem era a mais desoladora possível.
De fato, o lugar que percebe antes de todo mundo que o projeto desenvolvimentista havia chegado ao fim, e que, portanto, o próprio imaginário nacional havia sido completamente reconfigurado é a periferia. E isso muito antes de intelectuais e artistas consagrados tomarem consciência do que estava acontecendo. A razão para isso é tão lógica quanto perversa: era a periferia que se tornava o alvo privilegiado da lógica estatal de gestão da miséria pela violência. Nesse sentido, a forma como o Estado passa a atuar nas favelas e quebradas do Brasil se torna uma espécie de laboratório paradigmático do modo como a sociedade brasileira se organiza enquanto nação, fundamentado em um modelo baseado em princípios neoliberais de exclusão social; mecanismos de destruição de instituições públicas e gerenciamento da pobreza por meio do extermínio sistêmico e encarceramento em massa da juventude negra.
Não por acaso, a canção “Diário de um detento” se tornaria um marco da música popular. O que entrava em cena naquele momento era a percepção de que o Massacre do Carandiru havia se tornado “o modelo paradigmático de gestão do Estado” e que, portanto, os símbolos mais adequados para representar o projeto de identidade nacional não poderiam mais ser o samba, o futebol ou o carnaval, mas, sim, aqueles derivados das práticas de genocídio direcionadas contra uma população preta e pobre que cada vez mais se afirmava como tal. A ideia de conciliação e encontro cedia espaço para uma percepção da realidade pautada na imagem do conflito e do revide, com o imaginário da dialética da malandragem sendo progressivamente substituído pela visão muito mais agônica da dialética da marginalidade, a qual, a rigor, nenhuma dialética resiste.
A própria ideia de nação, que nunca chegou a ser uma realidade no país, deixava de pautar, inclusive, o imaginário social para sobreviver, quando muito, como ideologia. E, diante dessa percepção de que as promessas de desenvolvimento, com a consequente integração dos mais pobres ao campo da cidadania, não eram mais historicamente viáveis, o rap vai apostar suas fichas na possibilidade de construção de uma identidade a partir da ruptura e da afirmação de uma comunidade negra que se desvincula do projeto de nação mestiça tal como concebida até então. Um gênero criado por negros que reivindicam uma tradição cultural negra por meio de um discurso de demarcação de fronteiras que denuncia o aspecto de violência e dominação contido no modelo cordial de valorização da mestiçagem.
É por isso que essa linguagem surge, em certa medida, desvinculada da tradição estético-cultural da MPB, filiando-se esteticamente à certa linhagem do rap norte-americano e, politicamente, aos setores mais críticos do movimento negro brasileiro que, desde pelo menos meados da década de 1970, assumia contornos cada vez mais internacionalizantes. Ambas as perspectivas adotavam uma visão crítica que apostava no fortalecimento da comunidade negra a partir do desenvolvimento de uma identidade pensada como resistência afrodiaspórica a projetos de vinculação nacional.
5.
Em linhas gerais, o que o rap tem diante de si é o fortalecimento de um modelo de desagregação social que se aprofundava tanto externamente, por meio do enrijecimento de mecanismos de violência estatal, quanto dentro das próprias periferias, por meio da maior internacionalização do tráfico, por exemplo, e o consequente aumento da violência. Portanto, a questão é: como unir uma quebrada que está sendo exterminada e, principalmente, que está se matando? Como criar um senso de coletividade em um contexto de desagregação dos lastros sociais em que o significante nacional se revela como aquilo que deve ser combatido?
É para responder a essa necessidade de elaboração de um senso de coletividade que não estava mais disponível no horizonte que a perspectiva internacionalizante do Movimento Negro vai se mostrar absolutamente decisiva. Pois é a partir dela – juntamente com uma perspectiva popular e heterodoxa do cristianismo – que vai ser possível afirmar uma identidade negra afrodiaspórica a ser construída às margens da nação. Portanto, aquilo que, para a MPB, se colocava como um problema, que é a crise do significante nacional, vai ser o ponto de partida do rap brasileiro. É essa perspectiva que permite reconhecer a existência de um elemento específico que, ao mesmo tempo, une as quebradas e as separa da comunidade nacional. Que é a condição negra de ser.
Essa aproximação mais orgânica entre Movimento Negro e Movimento Hip Hop vai se mostrar altamente produtiva também para o Movimento Negro, que estava, naquele momento, procurando por formas de articulação com a juventude periférica – o que não é algo fácil de se realizar para nenhum movimento social. Se, por um lado, o rap ficava mais politizado e mais crítico, radicalizando seu discurso e formando uma comunidade mais consciente, por outro lado, o movimento negro encontrava no rap um canal de comunicação adequado com os jovens de periferia. Esse encontro acabou por produzir alterações substanciais na maneira de se compreender a realidade e, no limite, ajudou a fomentar o aparecimento de um novo sujeito e uma nova concepção do que significa ser negro no Brasil.
Se, em um primeiro momento, o rap se esforçou por incorporar um modelo cultural que pensava a experiência do negro na diáspora se desvinculando de um paradigma local – que foi o momento de apropriação das leituras do Movimento Negro, sobretudo o norte-americano –, já no final dos anos 1990, vai acontecer uma articulação entre essas ideias e as demandas específicas das periferias brasileiras, a qual será responsável pela formação de um novo tipo de subjetividade política.
Parece-me que a grande força do rap nacional se deve, sobretudo, a essa articulação entre a perspectiva afrodiaspórica do Movimento Negro e a realidade periférica local, que funda um tipo particular de significante negro. Ou seja, não se trata de uma mera importação cultural acrítica de formas importadas (como se dizia), mas da articulação entre uma forma original de pensamento negro com as demandas concretas dos moradores de periferia em um contexto de ascensão do neoliberalismo e de crise do modelo nacional desenvolvimentista. Em termos mais práticos, tratou-se da criação de um elemento de ligação entre o discurso internacionalista do Movimento Negro e a realidade periférica local, de modo que Malcon-X e Luther King, por exemplo, passassem a fazer sentido dentro da realidade periférica do país.
Portanto, o que era possível reconhecer no rap dos anos 1990, bem como em outros movimentos culturais periféricos, era a emergência de um novo modo de subjetivação que, no caso da música popular, implicava um novo modelo de linguagem. Uma linguagem radicalmente nova que, ao se articular a um outro paradigma de subjetivação, tornava possível a enunciação de um ponto de vista que reconfiguraria a maneira de se compreender e narrar a vida cultural do país.
Esse novo modelo de enunciação acaba também por alterar a própria função que a palavra poética vai cumprir na música, porque a palavra, no rap, deseja assumir uma função ética fundamental. Ou seja, ela não quer ser interpretada apenas como música, ou como entretenimento, mas pretende também exercer uma função pedagógica no processo de formação dos sujeitos. É em razão disso que esse discurso vai dizer, o tempo todo, o que o sujeito deve e o que ele não deve fazer. E é por isso que a sua força depende da articulação efetiva com uma coletividade e uma postura que está muito além do campo puramente cultural.
As histórias apresentadas em “Homem na estrada”, “Vida loka” partes 1 e 2 e “Da ponte pra cá” não são apenas para curtir ou para se emocionar, mas também para transmitir um código de ética e um proceder a ser incorporado e vivenciado pelos sujeitos. A música deseja partilhar uma sabedoria construída coletivamente pela periferia, integrando-a na vida dos sujeitos. Assim como um evangélico lê as narrativas bíblicas tentando incorporar aquele conhecimento em sua vida, o objetivo do rap é criar uma conexão desse tipo com o seu público, de modo a formar um sentimento comunitário cujo objetivo é, principalmente, interromper o circuito de violência que destrói a periferia.
Dessa forma, é possível dizer sem exageros que nunca houve no Brasil uma produção estética tão radicalmente engajada nem tão bem-sucedida nesse ponto. Nem mesmo quando pensamos no contexto mais politizado da MPB da década de 1970. Não apenas por conta do conteúdo político das letras, ou da participação política dos artistas, mas porque o rap rompe os limites entre ética e estética de uma maneira muito mais radical do que qualquer outra música já feita no Brasil. A rigor, em seus momentos de maior radicalidade, o sucesso estético de um rap pode ser medido por sua capacidade concreta de salvar vidas.
A propósito, caso pensemos que a arte engajada tem sempre que ser tratada em uma via de mão dupla, em relação à qualidade artística, mas também em relação a seus efeitos materiais e políticos concretos, a comparação com o rap se torna até injusta com a MPB, porque o que se celebra na música engajada da década de 1970 é muito mais a capacidade individual do artista de driblar a censura do que a formação concreta de uma comunidade política. E o exemplo clássico aqui são as músicas de protesto do Chico Buarque, que afirmam uma coisa para dizer outra: o que se celebra nesse caso é, primeiramente, a sagacidade individual do compositor. O foco do engajamento é o eu em relação ao censor, e não o nós em relação à sua comunidade. O sucesso da canção é medido pelo logro individual, e não necessariamente pelos efeitos em termos de recepção. Tanto é que os modelos mais comprometidos com a formação política propriamente dita, como o modelo de canção de protesto de Geraldo Vandré, perdem a disputa simbólica com os Tropicalistas e passam a ser tratados como formas populistas rebaixadas.
No caso do rap, ao contrário, o que se celebra é, sobretudo, sua capacidade de transformar jovens negros marcados para morrer em sujeitos políticos que, a partir daí, podem garantir a sobrevivência material concreta de sua comunidade. E o mais interessante é que esse não é um valor somente social, mas também estético. Existe uma regulação ética das músicas, que é pensada coletivamente. Não se trata de enganar o sistema, que, no limite, é uma possibilidade de classe, mas de sobreviver a ele. Dizer que o rap é compromisso significa exatamente isso: não mais uma forma de arte, mas um modo de existência, a um só tempo, ético, artístico e material, cujo sentido último é dado pela sobrevivência dos jovens negros de periferia.
6.
Em “Kafka e seus precursores”, Jorge Luis Borges propõe uma reflexão a respeito dos supostos precursores de Kafka na história da literatura: o paradoxo de Zenão, um apólogo chinês, os escritos de Kierkegaard, um poema de Browning, trechos de fábulas. Até que ele chega a uma conclusão bastante inusitada. Apesar de todos aqueles textos, em alguma medida, se pareceram com Kafka, nenhum deles se parece entre si. Ou seja, se Kafka não tivesse se tornado escritor, a relação entre eles simplesmente não existiria. A grandeza da obra de Kafka consiste, portanto, não apenas em inaugurar possibilidades futuras, como também em reinventar, literalmente, o passado. Os precursores de Kafka não “existiam antes” dele e, após a radicalidade de sua existência, também “não existem como antes”.
Parece-me que é algo dessa ordem que precisa ser considerado em relação ao rap brasileiro. É preciso desconfiar de posturas suspostamente amistosas de acolhimento (“façam parte do clube MPB”) que ignoram questões fundamentais que foram apresentadas por sujeitos desejosos de, nada mais, nada menos, que mudar radicalmente as regras do jogo. Existe algo de ardiloso em se convidar a periferia para entrar num clube exclusivo que claramente já perdeu parte significativa da própria legitimidade, ainda que os envolvidos possam estar se saindo perfeitamente bem, uma vez que as cartas vêm marcadas desde a fábrica. O que nós precisamos, a meu ver, é de pessoas com coragem e fôlego intelectual suficientes para construir um modelo de pensamento que esteja à altura da ruptura de paradigma que o rap propôs, da mesma forma que aconteceu quando João Gilberto apareceu quebrando tudo com seu violão. E talvez aquilo que seja o mais importante: aceitar também que, às vezes, o gesto de maior radicalidade consiste, simplesmente, em sair de cena e abandonar o jogo.
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