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Memórias de um carnaval (2023)

FOTO: CHRISTIAN CRAVO

Salvador me disse, em uma casa de Ogum, que Xangô há tempos vem olhando por minha cabeça. O que ajuda a entender todo esse sangue nos olhos de 2022. Não deixar por menos, errar sempre pra mais. O aprendizado da lâmina é a justiça, mas quem falou que seria fácil?

Oxum também me disse: não deixe nunca mais o amor sair de sua vida. Afinal, você é todo feito dessa matéria.

Do outro lado, rainha Ivete repetia sem parar: enquanto uns sentam pra beber, outros bebem pra sentar. Amor também é Swingueira, e as vezes tudo o que importa é chegar com os óculos intactos até o fim do carnaval.

Terapia ajuda, mas ainda não é exatamente sobre isso.

Yemanjá, por sua vez, me trazendo os mais belos presentes. Ensinamento maior do mar, a ilusão do próprio tempo: a força da beleza do passado é o caminho que se trilha, agora, no futuro.

A grandeza dos encontros. Pode o ano começar, que ainda assim é pouco.

Salvador é música dentro e fora da gente. O tempo inteiro. Seu domínio é o do povo da rua. Exu presente o tempo inteiro: quem tem ouvidos que ouça.

A gréa doida da Cidade Negra, intensamente diferente da de Recife. Toda distância que vai do Axé ao Brega. O Nordeste nunca houve, assim como a raça. Talvez por isso mesmo, seja TANTO.

Nordeste é uma ficção, mas os corpos que o incorporam são bem reais. Elas são reais.

A certeza de que é tudo preto: é tudo nosso.

Voltar pra casa como quem foge de si mesmo. Também conhecido como o fim das férias.

Não esquecer dos conselhos de Oxum. 2023, o caminho da Imperatriz sob o Machado de Xangô.


Estado Clínico pós-carnaval: deplorável.

Antes mesmo de sair de casa a Sacerdotisa já havia mandado o recado: “é preciso estar atento e se cuidar para chegar inteiro ao fim da jornada. Pode parecer o fim do mundo, mas é só um breve intervalo após o Apocalipse”.

Ouvi com atenção o conselho e… ignorei-o solenemente.

Resultado: tem dois dias que não consigo pisar direito no chão, sem saber se é dentro ou fora o que me dói.

“Parece que dessa vez você exagerou mesmo, não é?”, repetem velhas vozes que há muito habitam por aqui.

O oráculo, preocupado com um futuro que lhe era alheio – a maldição de todos os oráculos – prezava por meu amanhã.

Enquanto eu, que sabia de algo mais, dobrava a aposta:

“Carnaval, ou você acaba comigo, ou eu acabo com você”.

Delicioso convite à derrota.

Em 2023, diferente de outros anos, não se tratava de brincar o carnaval, mas de se mostrar digno de seu nome. Daí que dos seis dias de folia, só permaneci vivo em três. Ao final da festa meu corpo simplesmente não suportava ouvir nem um mísero acorde de frevo.

Essa carcaça imprestável anunciava a redenção da minha alma.

Não. Não houve exagero.

Ignorando a Deus e ao Diabo, apostei com o carnaval e perdi.

E para o ano que começa, um único desejo: que as futuras derrotas que virão sejam tão deliciosas quanto esta.

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