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O alegre e politizado baile solto de Siba

Ronca o céu, treme a terra abala o Norte
Se esparramam as sombras sobre o sul
São o sonho e a noite irmãos da morte
Só sobrou nós dois no manto azul

Se a trajetória de Siba pudesse ser resumida em poucas linhas, diria se tratar de um cabra que sabe exatamente o que está fazendo, e que o faz com a competência de poucos. Fosse no período áureo da MPB, quando as grandes canções pareciam dotadas do senso de eternidade dos grandes clássicos e do poder de mudar o mundo – um sentido que é também socialmente construído – Siba estaria entre os grandes, conhecido por todo o país. Sem dúvidas, trata-se de um dos maiores cancionista contemporâneos no Brasil. Seus versos são ao mesmo tempo profundamente populares e sofisticados, tanto no conteúdo da letra quanto no desenvolvimento melódico.

Siba é a prova viva de que a canção, naquilo que possui de melhor, não acabou, colocando um ponto final na polêmica. Ao mesmo tempo, o fato de serem poucos os que conhecem sua produção (tendo como horizonte o período áureo das grandes gravadoras) e reconhecem essa genialidade, é a prova de que a canção está mortinha da Silva. Músicas como “A bagaceira”, “Toda vez que eu dou um passo” e “Meu time” merecem estar entre os grandes clássicos – ou seja, ser conhecida e assobiada como é “Assum Preto”, “A Banda” e “Detalhes” – e se ainda não estão é porque a própria noção de permanência de uma obra clássica pode estar com seus dias contados.

Como é bem sabido, Siba é oriundo do Mestre Ambrósio, grupo que foi enquadrado na chamada “primeira geração” Manguebeat. Trata-se, contudo, de uma classificação muito mais baseada em critérios temporais e geográficos (grupos pernambucanos pertencentes a uma mesma cena cultural) do que em critérios propriamente estéticos, porque algumas características tidas como tipicamente manguebeat, como a mistura de dicções (representada na imagem-símbolo da parabólica enterrada no mangue que representa a estética de Nação Zumbi e Mundo Livre S.A, por exemplo), não se aplica diretamente à estética do grupo. Ainda que traga elementos “contemporâneos”, a proposta do Mestre Ambrósio sempre foi a de um mergulho mais radical nas estéticas ditas “tradicionais”. Pode-se perceber ecos desse movimento até hoje na estética de Siba: ele não faz uma ciranda, um coco, uma toada de maracatu para soar como um som regional, misturado com elementos modernos. Quando se propõe a flertar com uma toada, por exemplo, Siba mergulha visceralmente naquele estilo, e faz uma toada na melhor tradição do estilo, e ainda que apresente inovações, essas não são pensadas em termos de choque entre moderno e arcaico. Quando decidiu dedicar-se ao maracatu rural, mudou-se para Nazaré da Mata e montou um conjunto – o Fuloresta – com músicos locais.

O resultado dessa visceralidade é que seu som não soa como o de um pesquisador, ou de alguém de fora daquela tradição que a usa como elemento para ressignificar o moderno. O mergulho na tradição também não se propõe a causar uma sensação de “estranhamento”, algo psicodélico, como é o caso de um grupo como Cidadão Instigado. Uma ciranda composta por Siba vai ser uma bela ciranda, que poderia ser composta por alguns dos grandes mestres cirandeiros, assim como seu frevo, seu coco e seu samba de roda. Sua principal característica é ser um grande cancionista – no caso brasileiro, um sistema de recados que retira seu potencial estético de sua relação com essa matriz simples, cotidiana. As canções são sua matéria principal, ao redor das quais sua sonoridade é construída. Entretanto, não se deve confundir essa aparente simplicidade com “facilidade”: a questão é que Siba opta por trilhar o caminho de Noel Rosa, Dorival Caymmi e Cartola, e não o de Tom Zé, Hermeto Pascoal ou Fernando Catatau. Desses artistas que encontram na pureza das folhas e das marés os dramas da existência humana.

O que não significa que em seu som não haja experimentalismo, mistura. Elas existem sim, e não são poucas, mas assim como as pérolas forjadas por João Gilberto, esses desvios estão a serviço da beleza que emana da matriz cancional. Quando por fim deu por terminado o ciclo com Fuloresta, Siba partiu para um modelo de sonoridade mais “pop” e contemporâneo, que não se parecia com o padrão desenvolvido na época do manguebeat – que seria o caminho mais fácil e óbvio. Em “Avante” o cancionista criou um estilo próprio de tocar guitarra, desenvolvendo um modelo de sonoridade que valoriza os belíssimos contornos melódicos de suas composições. Além de trabalhar com uma formação de banda bastante singular, com tuba no lugar do contrabaixo e vibrafone, e um tipo de acompanhamento focado em sugestões e climatizações (provavelmente por influência direta de Catatau, produtor do disco).

Se nos trabalhos anteriores tratava-se de realizar um mergulho profundo nas tradições e culturas formadoras, “Avante” apresenta um mergulho profundo em si, já incorporado todos os elementos da tradição popular aliados ao domínio de registros mais contemporâneos como o rock e o reggae, tendo o fluxo melódico das canções como guias absolutas. Versos como esse de “Canoa Furada” revelam o quanto que a tradição popular, com seu tom de humor escrachado, casa bem com a expressão os demônios pessoais do compositor.

Eu queria fazer uma prece para um santo qualquer
Que venha da onde vier, mas me tire daqui
O caso é que eu nunca aprendi, como faz pra rezar
E também não ia adiantar, porque reza de ateu não dá nada

Seu último trabalho, “De Baile Solto” apresenta uma postura mais combativo, de acordo com as necessidades de seu tempo, pra quem vive o assustador avanço do conservadorismo no país. Aquilo que em “Avante” se voltava para dentro, volta-se agora para fora, para os conflitos políticos de sua época, talvez inspirado pelo triste episódio do embate entre a tradição do maracatu rural em Nazaré da Mata e as forças da ordem que queriam coibir os festejos. Desde a capa, que mistura masculino, feminino, cangaço e maracatu rural, a dimensão engajada fica patente. Uma área que Siba domina absolutamente, entre outras razões porque a poesia popular tradicionalmente alia um forte conteúdo social a certo olhar cuidadoso para a comédia de erros da vida humana, com serenidade e bom humor. Por isso, não é de estranhar que o disco aproxime musicalmente o formato de banda do Avante com o padrão de linguagem desenvolvido tanto no período do Fuloresta (“Marcha macia”, “Mel tamarindo”, “A jarra e a aranha”), quanto no Mestre Ambrósio (a regravação de “Gavião”).

Pode-se inclusive afirmar que a maior politização dos temas decorre dessa aproximação, e não o contrário: é no aprofundamento desse encontro com a tradição de cantadores e mestres que a crítica política de Siba, assim como todo o resto, toma forma. Em “De baile solto” as bases tradicionais (ciranda, maracatu, coco) estão mais explícitas, e as melodias ficam mais “rígidas” em relação ao trabalho anterior. Da mesma forma, os intervalos para dançar também são mais explorados (a canção “De baile solto”, com seu apresentador radiofônico ao estilo das festas populares, é sensacional nesse sentido). Siba volta-se mais atentamente para a liberdade do corpo na dança, afinal, o domínio rítmico também é parte importante da sua formação musical. Daí o caráter de baile afirmado pelo disco, uma pegada mais banda que pode soar para alguns como menos “autoral”, pois o conjunto soa menos organicamente estruturado ao transitar por gêneros e estilos mais imediatamente reconhecíveis. Entretanto, tudo se passa como se a linguagem forjada no trabalho anterior estivesse plenamente dominada, sendo agora levada para um passeio pelo salão de baile, ou o palanque político, atendendo a uma necessidade de ordem pública.

Por outro lado, o disco não abandona por completo sua dimensão introspectiva, voltado para a memória (“Três carmelitas”). Em alguns momentos, como em “Quem e ninguém”, um maracatu rural ao qual se acrescentou a guitarra sem maiores alterações, a aproximação entre as duas linguagens parece feita com um cuidado menor, ou a partir de outro princípio de resultado não tão interessante. De todo modo, parece que Siba sentiu necessidade expor uma relação ainda mais intensa com as fontes populares (lugar por excelência de sua matéria).

No fim das contas, “De Baile Solto” é um verdadeiro manifesto sonoro – sem soar planfetário – que deixa evidente o equívoco das autoridades de Nazaré da Mata, e a necessidade de se preservar a tradição do maracatu rural. Trata-se de uma manifestação cultural viva, capaz de propor novas dimensões para um presente que parece insistir no caminho da banalização de todo mal.

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