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Entre Fabiana Cozza e Dona Ivone Lara, nós sempre perdemos…

A grande lição que fica pra mim sobre a polêmica envolvendo as artistas Fabiana Cozza e D. Ivone Lara, de um lado, e parte da militância negra, de outro, é aquela que minhas mães já diziam: preto não pode errar nunca.

Quem costuma acompanhar alguns de meus textos sabe das críticas que eu tenho as pautas identitárias nas redes sociais, os paus que já peguei com a galera lacração e essas coisas todas. Eu também já perdi minha carteirinha de negão várias vezes, embora na academia eu seja convidado continuamente a falar de racismo e não de, sei lá, Beethoven, sapatênis ou Machado de Assis. Basicamente, a crítica que faço nesse caso é exatamente a mesma, pois o mecanismo, viciado, é rigorosamente igual na maioria das vezes, e não tem como dar certo pro nosso lado. Invariavelmente, o resultado final nesses casos é a produção de uma imagem negativa e viralizável que será mobilizada contra nós. Nesse episódio em particular, a imagem de um “movimento negro raivoso”, que atacou uma artista de longo e profundo histórico de relação com a cultura afro-brasileira (Fabiana Cozza está muito longe de ser uma branquinha que chegou agora no rolê. Aliás, eu realmente me surpreendi que ela pudesse ser interpretada como branca, ou menos negra, por conta de todo seu histórico) e que, além disso, desrespeitou a memória da própria D. Ivone Lara, que ficaria profundamente triste com os ataques sofridos pela amiga em seu nome e em nome da cultura negra que tanto defendeu.

Em uma polêmica como essa, desde o início fica evidente qual será o resultado final, aquele que irá viralizar, e é por isso que me irrita tanto a quantidade de vezes que caímos na mesma cilada. Porque é disso que se trata, uma cilada. E é justamente por isso que dessa vez eu não quero focar (mais uma vez) nos problemas da estratégia, e sim nos modos como a arapuca é armada contra a gente. Dessa vez, portanto, eu não quero me atracar com a militância negra, e sim com os agentes brancos que me cooptaram…

Antes de mais nada, gostaria de deixar claro que, a meu ver, faz todo sentido o questionamento com relação a cor da pele da atriz selecionada para o papel, uma vez que Dona Ivone Lara é um ícone da cultura afro-brasileira e uma figura chave na militância das mulheres negras. E no caso brasileiro em particular, a discussão racial tem uma componente fundamental na tonalidade da pele, ainda que não exatamente como a questão se apresenta para o senso comum. O que não faz sentido é ignorar quem é Fabiana Cozza (e mesmo D. Ivone, em certo sentido) nesse processo, e a forma como a coisa toda foi conduzida nesse e em outros casos (aliás, que climão para a atriz que for assumir a responsa de viver Dona Ivone agora, pois já de saída será olhada com muita desconfiança pela comparação com o talento de Fabiana) cujo resultado foi mais uma vez jogar toda a responsabilidade nas costas de uma mulher negra. Resumindo a questão, o problema não é pensar nos sentidos da representação de uma das grandes ícones da cultura negra no país, e sim submeter nossas demandas às dinâmicas estabelecidas pelo Facebook, um espaço antiprogressista por excelência.

Dito isso, é certo que esse tipo de questionamento faz sentido em vários contextos: em relação a novela da Globo que apresenta uma Bahia nórdica, em relação a representação de Machado de Assis como sendo branco, em relação a Jesus Cristo branco e ao Michael Jackson preto (brincs). Em todos esses casos, a questão apresenta seu próprio conjunto de mediações e complexidades, mas a colocação da pergunta é um importante ponto de partida para reflexão. Pergunta que faz sentido inclusive pelo grande número de comentários que circularam por aí, e que mais uma vez repetem o mesmo padrão: é o movimento negro que, no fundo, é racista, ao julgar os outros pela cor da sua pele, sem levar em conta talento, liberdade artística e todas essas coisas que “superam” eventuais limitações sociais. Afinal, no Brasil, quem é negro e quem é branco?

(A propósito, nesses momentos muitos adoram citar os versos de Chico César “Alma não tem cor”, – diga-se de passagem, o mesmo autor de “Respeitem meus cabelos, brancos” – como exemplo de um humanismo mestiço, esquecendo-se do complemento “porque eu sou negro\porque eu sou branco”, e não “porque eu sou mestiço”. Alma pode até não ter cor, mas nossos corpos tem. E as almas são incomunicáveis, como diria o poeta).

É nesse sentido que o debate sobre o colorismo toca em um ponto fundamental. Ao invés de perguntar sobre QUEM é preto ou branco, fingindo esperar que exista uma resposta exata para a questão (e o que é pior, acreditando que a existência do racismo depende da exatidão – impossível – dessa resposta), pergunta-se sobre quem é que pode dizer, afinal, QUANDO alguém é preto ou branco. Em um país de identidade mestiça, ninguém o é antes dessa nomeação que, entretanto, sempre acontece, porque estrutura as relações sociais. A raça é esse movimento no tempo que interpela os sujeitos enquanto negros. Apesar da novidade do termo, ele é – em seus melhores momentos, ou seja, quando deixa de adentrar uma esfera infrutífera de disputa entre quem é mais ou menos preto, o que de fato acontece – a meu ver, uma tentativa de interpretação de uma velha questão nacional, uma forma de repensar nosso paradigma da mestiçagem. O Brasil tem uma crença profunda, que nunca sai de cena porque no limite nós ainda a consideramos “belíssima”, de que a mestiçagem é uma forma de combater o racismo. E o pior, uma forma eficaz. Afinal, trata-se de uma questão lógica, como se de lógica se tratasse: se não for mais possível estabelecer uma delimitação rigorosa entre as raças, então o racismo, que depende da hierarquia entre elas, se torna uma impossibilidade estrutural, como se a raça criasse o racismo, e não o contrário. E pouca importa se todo mundo “acredita” que existe racismo por aqui, pois quando se trata de apontar na prática onde ele está, ele nunca aparece

(um bom exemplo nesse caso são as cotas: nenhum movimento na história do país foi capaz de inserir tantos negros dentro das universidades brasileiras. Nenhum, e ponto. No entanto, para muita gente de esquerda ou direta, as cotas deveriam ser sociais. Mas porque sociais (ou seja, voltada para os pobres) se o problema com o qual elas estão lidando é o racismo, que transcende classes? A ideia, obviamente, é que elas não estão ali para lidar com o racismo (ou não deveriam estar) que, mais uma vez, desaparece de cena, em nome de problemas mais “essenciais” que, provavelmente farão com que os negros permaneçam fora das universidades porque, afinal, cadê o racismo, que é tudo, menos o fato concreto dos pretos não estarem na universidade. Ou melhor, é isso, mas isso não se combate combatendo isso porque, afinal de contas, cadê a raça)?

Talvez a grande lição brasileira ao multiculturalismo pós-moderno seja precisamente ter feito da mestiçagem o dispositivo por meio do qual o nosso racismo se realiza. Não pela teoria do embranquecimento e essas coisas. Seu efeito é simbólico\real. Ele “libera” as identidades dos sujeitos, e as torna sempre definíveis a partir de fora, por quem tem o poder para tal. Em suma, a identidade negra não nos pertence, ela é sempre imposta a nós e retirada a depender de interesses que, no fim das contas, nunca são os nossos. A Sueli Feliziani deu um belíssimo exemplo nesse sentido: Nayara Justino perdeu o posto de Globeleza (sim, Globeleza é uma merda, mas…) por ser negra demais. Fabianna Cozza, perdeu o trabalho por ser negra de menos. E quem ficou no trampo, de boa? Thiago Abravanel, brancão, que fez um excelente Tim Maia. Apenas a flexibilidade permitida por uma identidade socialmente móvel em uma país onde as definições são arbitrariamente impostas de cima para baixo (a dimensão perversa da arbitrariedade do signo está nas condições de enunciação) é que permite que em alguns casos a cor não importe, e em outros, seja o elemento definidor. Sempre em prejuízos dos pretos, evidentemente. E sim, movimentos identitários podem participar da mesma dinâmica.

Muito provavelmente, no início da polêmica os autores da crítica não faziam ideia de que Fabiana era amiga íntima de Dona Ivone Lara. Pode ser inclusive que eles não soubessem de fato quem é Fabiana Cozza, e que a tenham colocado no mesmo patamar de cantoras de White Samba como Roberta Sá, Mallu Magalhães e Maria Rita. Esse desconhecimento e ingenuidade são típicos das redes sociais. De fato, pode-se dizer que são seu alimento, aliado a um desejo de viralizar enquanto dono da verdade, tentando escrachar alguém. É desse ambiente de ausência geral de formação e diálogo, que reduz o Outro a memes, que vivem as polêmicas.

Tentaram reduzir Fabiana Cozza a uma quase branca que estava invisibilizando aquela que, no fim das contas, era sua amiga. Não colou, como era de se esperar. Agora, tão interessante quanto isso, é a versão que colou. Colou imediatamente, aliás, o que por si só já faz desconfiar do conjunto de boas intenções dos defensores da artista, inclusive dos bem intencionados. Quem eu vi chamar a atenção para esse ponto inicialmente foi a sempre brilhante Suzane Jardim, outra preta foda. A notícia sobre a polêmica foi republicada, com rapidez invejável, por G1, O Globo, R7, Folha, UOL, Veja. Ou seja, todo jornalismo peso pesado caiu matando imediatamente no movimento, com uma eficiência muito maior do que em casos escabrosos de racismo que até são expostos e tal mas, sabe como é, daquele jeito (a não ser em casos que são viralizáveis para servir de bode expiatório, como nos acessos de histeria de brancos de classe média que eventualmente são filmados e condenado por todos. Como se o racismo brasileiro estivesse representados apenas por esses casos destoantes, resumido a algumas anomalias eventuais, ao invés de ser construído cotidianamente, a olhos vistos). Como diz Suzane Jardim: “Tem até umas reportagens sobre o caso dos cuz*o do Direito na PUC-Rio, mas nada comparável, afinal, eu tô sabendo até a cor das calcinha da Fabiana Cozza agora, e eu nem sabia quem ela era antes disso”.

Eu sou o primeiro a reconhecer o desserviço que essas ações ingênuas ou inconsequentes causam para as demandas do movimento. Talvez até com certo exagero, porque elas me irritam profundamente. Mas é que, a meu ver, seus custos são muito altos: afastam os próprios negros, queimam o filme do movimento, reduzem a complexidade de debates fundamentais, desrespeitam a memória de nossa comunidade (nesse caso, de Dona Ivone). Em suma, tem uma dimensão de ingenuidade que é própria de uma geração formada para militância nas redes sociais, que a rigor não formam ninguém para nada, muito menos para processos de transformação social. Mas é certo também que esses efeitos são produzidos (e ampliados) por todos aqueles que estão só a espera do menor equívoco dos pretos (ou das mulheres, das bichas), e que também estão ali, loucos pra lacrar, da mesma forma que os movimentos identitários. Sobretudo aquele tipo de sujeito que não reconhece o papel fundamental do movimento negro nos atos pela liberdade de Rafael Braga, ou em relação ao caso da Mariele Franco, por exemplo, mas que se apressa em generalizar todo movimento a partir desses deslizes, como se todos os esforços (acertos e tropeços inclusos) se resumissem a eles. Ou seja, deram uma puta mancada com Fabiana Cozza e com a Dona Ivone, logo, colorismo e negritude são bullshit e esse debate não nos diz respeito, sendo coisa importada da gringa (coisa que marxismo, liberalismo e pós qualquer coisa evidentemente não são). O máximo que podemos fazer nesse caso é voltar para o ponto de partida que, se não ajuda aos negros em nada, ao menos é um lugar já conhecido e reconfortante.

Não é por acaso que essas matérias onde o “movimento negro” aparece como um punhado de gente raivosa, exagerada, e “sem ter o que fazer”, viralizam tão rapidamente. Como disse o mano Brown enquanto moscava no Instagram, “a oposição está sempre de sentinela, só esperando”. Se é certo que esse movimento reducionista contribui para enfraquecer o movimento, não adianta também fingir que o tesão com que essas notícias são compartilhadas deve-se exclusivamente ao fato de que as pessoas estão – ó meu Deus – preocupadíssimas com a injustiça cometida contra uma mulher negra. Está é todo mundo querendo lacrar e lascar. Só que uns se ferram muito mais do que outros nesse movimento. Os de sempre, aliás. E é só por isso que eu acho que nós, negros, temos que sair dessa, e não por qualquer humanismo branco, mais fake que nota de três reais, que se alega por aí.

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