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Caso Neymar: violência e pobreza da experiência na era da virtualização.

I. Controle Narrativo

Desde o início da acusação de estupro de Neymar por parte da modelo Najila Trindade o público foi constantemente submetido a uma hiper exposição de informações. Conversas, vídeos, mensagens, áudios… E nada, absolutamente nada disso serviu para comprovar coisa alguma em relação ao crime, servindo antes para alimentar o imaginário e a fantasia. Sobretudo manipular o imaginário e a fantasia é determinante em termos de seus efeitos reais, e basicamente somos incapazes de sair dessa esfera. É a lógica do nosso tempo: quanto mais o mundo se enche de informação, menos confiável se torna. Mamadeira de piroca fellings. Sorry babies, mas o marxista cultural Walter Benjamin acertou mais uma: a proliferação da informação é a morte da experiência. As definições de “realidade” foram definitivamente atualizadas.

Mesmo com o risco de ser julgado por cometer um crime, Neymar opta deliberadamente por, antes mesmo do escândalo estourar, divulgar suas conversas privadas e fazer delas um espetáculo para as redes sociais. O cálculo é simples: a acusação real pesa menos que a condenação do tribunal virtual, infinitamente mais danosa para o jogador\artista em todos os aspectos – inclusive financeiros (alguns efeitos já estão sendo sentidos, com ameaça de suspensão de contratos). Essa hiper exposição adulterada do âmbito privado afeta diretamente o resultado do julgamento real, que depende menos da “verdade dos fatos em si”, do que da construção de uma personagem. Afinal, Neymar é um menino de origem humilde, frágil e franzino, com muita responsabilidade sob os ombros e cercado de pessoas que o querem explorar (ferrenhamente protegido pelo pai, o pai excessivo, contraponto aos pais ausentes do imaginário nacional), ou o manipulador cai cai arrogante, que se acha o dono do mundo sem se importar com nada além de suas próprias vontades de menino mimado que enriqueceu cedo – em suma, um moleque, playboy otário?

Expor a conversa reforça a primeira versão e mostra um Neymar “gente como a gente”, frágil, carente, inábil com o flerte (indiferença completa interpretada como inabilidade) e ao mesmo tempo “sugere” uma mulher “manipuladora” e “interesseira”, que tem por objetivo se aproveitar de um menino rico. As conversas privadas, vídeos, mensagens e áudios vazados nada provam, mas manipulam desejos, preconceitos, vontades. Geram afetos. Independente da culpa ou inocência das partes, são óbvias as estratégias de manipulação empregadas, onde o que menos interessa é a verdade dos fatos. Os efeitos reais são diretamente determinados por todo esse entorno fake, ou virtual. O verdadeiro julgamento, que determina os resultados futuros, acontece muito antes do conhecimento dos fatos.

Neymar, obviamente, fez ainda outro cálculo. A exposição pública da vontade da modelo de transar com ele imediatamente a colocaria como culpada frente a opinião pública de homens e mulheres, independentemente dos acontecimentos reais. Cálculo antigo, infalível (o mesmo usado por Bento Santiago): o desejo feminino lido na chave da manipulação. É só acompanhar a caixa de comentários das notícias para verificar o sucesso da operação.

E como o Brasil não é para principiantes, e os desdobramentos da novela estão longe de acabar, Neymar e sua trupe milionária ousaram um novo lance, contratando uma advogada reconhecidamente feminista, muitíssimo bem paga, para o defender (com direito a declaração em redes sociais), cercando-se, enfim, de todos os lados possíveis e imagináveis. Controle narrativo total. Xeque mate com todo o aparato legal e midiático, conservador e progressista, que o dinheiro pode comprar.

II. A sedução como contrato

Oi fake.

Uma das coisas que me chamaram muita atenção nas mensagens trocadas entre Neymar e Najila Trindade é a pobreza da experiência que ali se revela. A relação já era um fracasso muito antes de se concretizar no (não) encontro violento. Acredito, inclusive, que as frases viralizaram antes mesmo da acusação de estupro por aquilo que conseguem captar da fragilidade das relações contemporâneas, que atinge a todos, ainda que viralizem muito mais com as celebridades. O diálogo é todo muito deprimente porque capta o mecanismo exato que revela a hiper exposição contemporânea enquanto falta e carência. É claro que a sedução é desde sempre performance e manipulação do imaginário, mas é esse precisamente o ponto: o que vemos na conversa não pode ser descrito adequadamente enquanto diálogo, realizando-se mais como dois monólogos superpostos, codificados, compostos por mensagens decalcadas de outros contextos absolutamente desconexos. Não há sedução propriamente dita, ao menos não em sentido clássico, mas uma negociação pobre e preguiçosa para definir as melhores condições de consolidação do serviço oferecido. A sedução enquanto jogo, que a princípio parecia se opor a modelos de relações mais rígidas e codificadas como, por exemplo, o ritual do casamento, se revelam elas próprias contratuais. Em suma, o que impressiona não é a “ousadia” da conversa e das atitudes, que poderia “ofender” a família brasileira, mas o quanto esta soa burocratizada e sem sentido.

Desse modo, é bastante sintomático que o enunciado inicial da conversa seja “oi fake”: afinal, é exatamente disso que se trata. Esse é o tema e a forma de toda “conversa”, pautada pela artificialidade e pelo vazio. Inclusive, a troca desabusada de nudes oculta muito em sua aparente clarividência. O excesso de corpo, de “liberdade” remete ao paradoxo da “paixão pelo Real” que se realiza em seu oposto. Zizek gosta de citar o exemplo dos vídeos pornôs ultrarrealistas com câmeras intravaginais e intra penianos que captam o movimento real dos corpos, tão “reais” que chegam ao vazio da carne no açougue – o corpo deserotizado como resultado da hiper-sexualização. A proliferação de nudes não significa necessariamente uma sexualidade mais livre e relações mais as claras. Toda essa liberdade no trato só toma forma porque não existe ali relação alguma.

Voltando para a troca de mensagens, é como se diante da certeza de que o sexo iria acontecer – a relação plenamente consensual, novo mito inatingível da era digital – todo o resto se tornasse desnecessário e protocolar. E não no sentido poético clássico, de que diante do encontro real dos corpos toda retórica deve silenciar, pois as palavras não dão conta do sublime inscrito no ato sexual: com a morte da linguagem, falece também o próprio ato sexual em si. Retirar as preliminares para “ir direto ao ponto” sempre foi uma maneira do homem transformar o ato sexual em um equivalente masturbatório tosco. A linguagem faz parte dessas preliminares. Nesse sentido, os nudes que proliferam nas mensagens de WhatsApp, nos feeds, nas timelines, nos Stories, não funcionam como estratégias de sedução para atiçar a imaginação do interlocutor. Sua função equivale mais a das figurinhas de WhatsApp e dos emojis, que servem como instrumentos de desambiguação, deixando os sentidos mais claros e diretos. Os nudes confirmam que o contrato estabelecido será cumprido de forma satisfatória. Garantias contratuais. Daí as mensagens soarem tão antiestéticas como, aliás, é o padrão das redes: a arte é também uma estratégia de sedução dos sentidos, o oposto da linguagem contratual burocratizada. Não digo isso em chave moralista, saudoso dos jogos de sedução inexistente e pobres da minha época, como se a ausência de liberdade do passado devesse ser lida em chave positiva. Meu ponto é o engodo que se vende como liberdade no presente. Tentem recuperar o conteúdo da mensagem sem os nudes e sem as frases feitas de grupo de pagode e os conteúdos motivacionais genéricos. Não sobra nada. E não é por acaso que essa carência da linguagem dotada de literalidade se converte em violência quando o encontro “real” acontece. Esse é, aliás, o paradoxo da consensualidade e da transparência enquanto garantia da horizontalidade das relações: quanto mais as relações se cercam de clareza, objetividade, exposição dos corpos e dos desejos, até o rebaixamento à forma contratual, mais essa transparência absoluta se revela enquanto simulacro desmaterializado, forma de negar que “não existe relação sexual”. A transparência como ideal das relações (a exigência progressista de relações as claras) e a literalidade da linguagem são o esteio ideológicos de uma realidade cada vez mais mediada pelo narcisismo das redes. Afinal, faz tempo que Freud mostrou que não existe nada mais obscuro do que os caminhos tortuosos que levam a sentença “quero trepar contigo”.

Muitas pessoas zombaram da conversa, da aparente falta de tato de Neymar e da moça, mas o fato é que essa relação tosca pautada pela indiferença de base é a regra dos relacionamentos em geral, feitos de frases feitas baratas, imagens desconexas, trechos de pagode e… hinos de louvor (?!?). De fato, não foi essa a mistura que decidiu os rumos das eleições e que é a base de atuação do nosso amado presidento, um misto de xixi e coco com glória a Deus? Esse vazio é a tônica dos relacionamentos contemporâneos em geral, e não somente os afetivos, onde estamos todos atuando por entre imagens desgastadas que não nos pertencem. A “liberdade” e imediatez presentes na expressão dos desejos e na consciência dos fins (sexo) é a expressão invertida dessa ausência de sentido, como se nada houvesse para além das imagens fakes dos perfis de Tinder. Quando só os corpos existem, são os corpos mesmo, compostos por partículas de imaginário, que deixam de existir, restando a relação entre sujeitos como pura violência. O funk expressa essa condição melhor do que ninguém: afinal, o gênero que mais livremente trata de sexo é o que mais violentamente codifica essas relações. O sexo no funk tem a “naturalidade” de uma aula de aeróbica, e se transposto sem mediações diretamente para a cama conduz ao desespero e vazios cada vez maiores. Além de brochadas, obviamente.

Aliás, o exemplo do funk deveria ser o suficiente para identificar os limites da lógica da codificação como caminho de transparência nas relações (tipificar todos os movimentos de modo a deixar claro para as partes o que pode e o que não). Como sempre, em relação as leis, o que interessa é quem manda, e a codificação é ainda outra das mutações da violência, pois sempre haverá um excesso obsceno que é condição de possibilidade da realização contratual.

A aparente liberdade da ultra exposição dos desejos é já a antecipação de uma frustração de base, concretizada no encontro: não porque a pessoa real não é a mesma que aparece em suas fotos de perfil mas, ao contrário, por corresponder exatamente aquela imagem. Espécie de Inteligência Artificial Orgânica (algo que o filme Her capta muito bem, a companhia perfeita, projeção narcísica sob medida, um grande nada). Muito antes do encontro e suas implicações violentas, o (não) encontro já se revelava nas mensagens. Em casos extremos, como o de Neymar, não parece haver mais nada a se oferecer para além daquele conjunto de imagens. Ele é aquilo mesmo, inteiro, aquela imagem degastada, aquela casca. Mas seria ilusório acreditar que se trata só de Neymar ou estrelas midiáticas vazias. Na era das redes sociais, todos são astros e coachs de si próprios. A postura da moça nas conversas é também, antes de mais nada, de manipulação da própria imagem para (não) se relacionar com uma outra. A ultra-exposição é uma outra forma de não existir, deixar a imagem ocupar o lugar daquilo que poderia ser.

Os corpos se entendem, mas as almas não, dizia um Bandeira amante do viver: a virtualização da realidade transforma os corpos em algoritmos, restando a contemplação de um vazio convertido em violência.

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