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Insubmissas estéticas negras

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Os enunciados de Machado de Assis, Pelé e MC Carol contra o caráter duplo do racismo brasileiro.

Excesso de violência, insuficiência de simbolização

Tomando emprestada a reflexão de Vladimir Safatle a respeito da Ditadura Militar, o  racismo brasileiro pode ser caracterizado como um complexo sistema de “crimes sem memória”: padrão característico de regimes totalitários cujo objetivo é eliminar não apenas os sujeitos-alvos, mas a própria memória dos acontecimentos, interditando inclusive a própria possibilidade de se nomear os crimes enquanto tal. No entanto, a depender da perspectiva, e sem prejuízo da verdade, ele pode ser também caracterizado de forma exatamente oposta: um sistema organizado para nos lembrar o tempo todo de sua existência incontornável.

Corpos negros abarrotando programas policiais. Ruidosos e perversos mecanismos de silenciamento histórico e cultural. Índices alarmantes e crescentes de violência racial. Tudo organizado de modo a recordar continuamente quais são os corpos indesejáveis, alimentando a perseguição contra a comunidade negra de forma intensa e constante de modo a não permitir sequer os momentos de pausa necessários ao luto.

A um só tempo excessivo e velado, o racismo brasileiro se organiza por meio de um tipo peculiar de contradição performativa a qual o significante mestiço, por sua vez, oculta e revela.

Por que excessivo? Para deixar muito claro para nossos brancos que eles serão protegidos e preservados a todo custo. Que eles não têm com o que se preocupar. Sua função é didática: afinal, racismo é aprendizado. Lugar de negro, lugar de branco, ensinados cotidianamente por meio do terror. Em contextos em que o senso comum afirma a impossibilidade de delimitar ao certo quem é preto ou branco, cabe a polícia assegurar a justa distribuição das identidades, interrompendo o fluxo mestiço e colocando ordem na casa. “Falha a fala, fala a bala”, como nos lembra Paulo Lins em Cidade de Deus.

E por que velado? Porque o padrão discursivo do racismo brasileiro é historicamente pautado por um rigoroso sistema de silenciamento e não nomeação, de matriz colonial. Por mais incrível que possa parecer, o discurso de que no Brasil não existe “preconceito de cor” data da época da escravidão. Nosso excelentíssimo Ministro da Justiça José de Alencar, escravocrata até a medula, no momento mesmo em que publicava um conjunto de cartas públicas direcionadas ao Imperador em defesa da escravidão, definia-se como um antiescravista convicto, a favor da abolição da escravidão, num exemplo patente de “ideias fora do lugar”:

“Um espírito de tolerância e generosidade, próprio do caráter brasileiro, desde muito que transforma sensivelmente a instituição. Pode-se afirmar que não temos já a verdadeira escravidão, porém um simples usufruto da liberdade, ou talvez uma locação de serviços contratados implicitamente entre o senhor e o Estado como tutor do incapaz.”

A escravidão é um mal, decerto, mas o espírito nacional é tão tolerante que, entre nós, escravos sequer se pareciam enquanto tais, fomentando por aqui um saborosíssimo regime de escravidão sem escravos. Não precisaríamos, portanto, instituir leis para acabar com o cruel regime: os costumes tratariam de reformar a sociedade de forma muito menos traumática. “Extinguir a escravatura, não na lei, mas nos costumes que são a medula da sociedade”. A continuidade da escravidão é defendida, decerto, porém não em benefício da classe proprietária, mas sim dos próprios negros, dotando os discursos escravocratas de inequívoca exemplaridade moral. Note-se o caráter cínico a estruturar o argumento de cima a baixo, repleto de ornamentos e malabarismos retóricos que terão longo alcance no país, sendo em grande medida incorporados pelo modelo clássico de racismo simpático ao negro sintetizado por Gilberto Freyre.

O paradigma racista nacional caracteriza-se enquanto um processo de ultra exposição da violência racial e sistemático apagamento das categorias raciais a partir das quais ele pode ser compreendido. Um racismo que não ousa dizer seu nome, ao mesmo tempo em que não abdica de perpetuar suas práticas. Ou melhor, um sistema que perpetua suas práticas por meio de estratégias de não nomeação. Um excesso de racismo aliado a uma insuficiência de mecanismos de articulação simbólica de seus processos.O que cria a impressão de um racismo velado, envergonhado ou, nos termos de Florestan Fernandes, um tipo singular de subjetividade média pautada pelo “preconceito de ter preconceito”, menos posicionamento moral (não nos enganemos: o racista brasileiro sente um baita orgulho de sua própria superioridade) do que estratégia de racialização. O racismo pode ser cotidianamente praticado, sem prejuízos de nenhuma espécie para o racista, desde que este jamais se assuma enquanto tal. Afinal, desde a perspectiva brasileira média, a violência direcionada contra negros não atende pelo nome de racismo, mas sim normalidade democrática – reatualização do escravismo enquanto forma social, como nos lembra Muniz Sodré em O Fascismo da Cor.

O crime e o apagamento não só de seus rastros, mas da própria compreensão do ato enquanto criminoso. Uma impossibilidade enunciativa organizada em duas frentes. Por um lado, extermínio e encarcerando de corpos negros (mortos não falam). Por outro, interdição de mecanismos simbólicos de representação. Um duplo processo de hiperracialização do corpo negro – cuja função é torná-lo descartável – e desracialização simbólica – que recusa a enunciação dessa corporeidade enquanto negra.

Dispositivos de racialidade e o excedente negro

De um lado: a normalização da violência branca como mecanismo regulador das relações raciais; as promessas de modernização como armadilha para os mais pobres; os dispositivos de apagamento da agência negra; o arbítrio das relações de poder; o gozo com a subserviência do socialmente marginalizado; o prazer sádico em promover a dor; a produção objetiva e contínua do corpo negro como matéria descartável.

Na acepção de Sueli Carneiro, a branquitude enquanto dispositivo de racialidade: o poder de definir seu Outro (não-branco) por meio do poder de matar. A capacidade de estabelecer a identidade não-branca a partir da violência. Ou, como diz Fanon, o poder de atribuir identidade aos outros sem assumir uma identidade que lhe seja própria.

O negro, por sua vez, é a pura exterioridade jamais coincidente consigo mesmo. Puro excesso ou pura falta. Mbembe nos lembra que o negro é o que vemos quando nada se vê, quando nada compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Machado de Assis ora escreve mal por ser mulato (negro-excesso), ora se envergonha de sua condição racial (negro-falta). A escrita de Carolina de Jesus é negra e pobre demais para ser vista como literatura (negro-excesso), mas desinteressante aos olhos de seus leitores quando se afasta da miséria absoluta rumo à Casa de Alvenaria (negro-falta). Pelé é acusado sistematicamente de branquear-se (negro-falta), mas sua condição racial jamais deixa de ser vista como uma chaga a lhe macular a coroa (negro-excesso). A identidade do negro sob o paradigma da branquitude jamais lhe pertence de todo.

De outro lado: a insubmissão da experiência negra; a potência emancipatória advinda de sua capacidade de seguir na adversidade; o levante de formas epistêmicas alternativas; a consciência mais aguçada das classes subalternas, capaz de captar o real sentido dos acontecimentos em contraposição aos processos de manipulação ideológica por parte da elite intelectual branca.

Em sua dimensão de confronto e insubmissão, a negritude é o aprendizado de uma voz que se organiza a partir da fissura, do silêncio, do instável, do monstruoso vazio. “O lixo que vai falar numa boa”, diria Lélia Gonzalez. Fazer do não pertencimento lugar e morada. O que não se deixa capturar. O grito da primeira negra escravizada ressoa no sax de Coltrane, nos agudos de James Brown, na potência de Elza Soares, nos cabelos e olhos de Bob Marley, no corpo de MC Carol.

“O diabo na rua, no meio do redemunho”. Posturado e calmo. Impávido.

Insubmissas estéticas negras

Nota-se que a branquitude – compreendida enquanto dispositivo de racialização marcado pela hiperracialização do corpo negro e por sua desracialização simbólica – produz um tipo particular de cegueira ontológica, caracterizada por uma incapacidade crônica de enxergar o mundo para além de seu próprio reflexo, de modo a distorcer ou fazer desparecer qualquer ideia mais radical de alteridade. Uma espécie de incapacidade crônica de ver e dizer o negro que produz uma série de desvios e limites interpretativos, os quais afetam diretamente o horizonte epistemológico geral.  

Ao mesmo tempo, será em conflito com tais regimes de invisibilidade e silenciamento que a alteridade negra irá afirmar novas possibilidades de existência, a partir da não coincidência entre o que o sujeito negro é e aquilo que o racismo faz dele. Na radicalidade de sua insubmissão, o delírio da raça é recusado em nome da afirmação de novos quilombos a partir de si. “Um fora-de-lugar instituinte do qual o não-ser pode efetivar um ser universalmente concreto e suprimir as desigualdades artificialmente geradas pela diferença e o torpe reconhecimento”, argumenta Douglas Barros, no seu Lugar de Negro, Lugar de Branco (2020, p. 114).

Passemos a algumas dessas fissuras inscritas nos campos da arte e da cultura, espaço por excelência de tais lugares fora das ideias (José Miguel Wisnik).

ENUNCIADO I: Machado de Assis tinha a negritude como sua maior vergonha.

Um exemplo particularmente interessante nesse sentido é o caso de Machado de Assis, simplesmente o maior de nossos teóricos da branquitude, como argumenta Marcos Queiroz. Particularmente eu gostaria de atentar para certa incapacidade crônica da crítica literária e dos próprios escritores de lidar com a negritude machadiana, com efeitos interpretativos e sociais nada desprezíveis.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que, em Machado de Assis, a negritude vai para além do dado meramente circunstancial. Cada vez mais é preciso afirmar que Machado é, não apenas biograficamente, mas também literariamente negro. O que significa dizer que em Machado a negritude é um ponto de partida epistêmico, que organiza sua visão de mundo. É como um homem negro que Machado vai instaurar o pessimismo no coração do país. É como um homem negro que ele vai desconfiar profundamente das promessas do mundo moderno.

Muito já se disse sobre a relação entre o pessimismo machadiano e a perspectiva filosófica dos moralistas franceses do século XVIII, por exemplo, ou sobre a influência de Schopenhauer em sua obra. E nada disso está errado, obviamente. Mas tende-se a ignorar, por outro lado, uma dimensão a meu ver muito mais elementar, posto que saída da experiência concreta e não dos livros: Machado observa o processo de modernização da sociedade brasileira da perspectiva de um homem negro que estava, portanto, em condições de perceber melhor do que qualquer um dos seus pares brancos, tudo o que havia de perverso e indecente nos processos de emancipação que conduziriam à Proclamação da República e ao fim da escravidão.

O pessimismo machadiano é feito da mesma matéria que o pessimismo dos negros outrora escravizados que viam na Abolição, vendida pelos brancos como uma grande promessa civilizatória, uma forma de repor mecanismos de exclusão social que fariam com que o negro permanecesse na base da pirâmide. Assim como seu humour, que pode até ter forma inglesa, mas cujo ponto de vista ético é forjado a partir da posição de um representante da senzala infiltrado na Casa Grande, recuperando a longa tradição negra de zombar da cultura branca (como se observa em tantas de nossas festas populares, repletas de paródias transgressoras de tradições europeias), ali mesmo onde muitos tendem a reconhecer apenas formas de assimilação mestiça.

Essa negritude machadiana elementar, no entanto, é sistematicamente negada e recusada por uma elite intelectual incapaz de enxergar a negritude do escritor, uma vez que a branquitude é caracterizada precisamente por esse tipo particular de cegueira ontológica. Seja tornando-se branco aos olhos de seus pares, seja pelas recorrentes acusações de branqueamento, o fato é que Machado raramente será visto como portador de sua negritude.

O escritor, inclusive, joga constantemente com essa incapacidade estrutural do branco de ver o negro, para fazer uma crítica demolidora da mediocridade intelectual da elite letrada do país. Driblando sua incapacidade crônica de enxergar para além do próprio umbigo, e contando com ela, Machado promove uma paródia demolidora do próprio projeto de literatura nacional e do próprio projeto de formação que com ela se confunde, como um típico negão a tirar onda da Casa Grande, enquanto finge lhe tecer os maiores elogios.

Alguns sequer se dão conta da engenhosidade do ardil: para esses, é como se Machado fosse apenas mais um dentre seus pares. Joaquim Nabuco, por exemplo, caiu direitinho, e só enxergava no autor um protótipo de grego clássico. “O Machado para mim era um branco e creio que por tal se tornava; quando houvesse sangue estranho isso nada alterava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só via nele o grego”. Mas não foi só Nabuco que caiu nessa: durante muitos anos acreditou-se que o escritor era, de fato, branco. Mesmo se tratando de alguém que subverte por completo a lógica narrativa convencional, tirando onda de todos os valores da classe intelectual como só quem veio de baixo seria capaz de fazer.

A elite letrada, que só reconhece no negro aquilo que nele coincide com suas próprias projeções, olha para Machado como para um enigma: um escritor rigorosamente branco, ainda que este não coincida com nenhum dos códigos mais convencionais de representação da literatura brasileira até então. Existe algo nele que sempre escapa aos esforços interpretativos mais amplos. Esse algo, a meu ver, é justamente a condição negra de ser, que se torna em Machado um dado epistêmico fundamental.  Sua negritude aparece na maneira como ele faz do branco objeto de investigação, subvertendo na base o princípio elementar de constituição da branquitude, que é sua capacidade de fazer do Outro um objeto para si. E aparece também em sua negatividade radical, própria de quem enxerga a verdade por trás dos supostos valores emancipatórios dos senhores, ou seja, como alguém que se localiza por detrás da Casa Grande.

Machado de Assis, sob o signo de Exu, faz da branquitude seu cavalo, inscrevendo o devir negro corrosivo na fina flor da elite letrada de sua época. O que equivale a dizer que Machado de Assis só foi o gênio que foi por ser um homem negro. Um negro que, ardilosamente, se torna o maior mestre de um sistema literário branco, criado em grande medida para excluir seu próprio povo.

Machado de Assis: a literatura enquanto espaço virtualizado de terrorismo negro.

ENUNCIADO II: Pelé era um preto de alma branca.

Pelé, o maior atleta do século XX, foi o símbolo de tudo o que o Brasil sonhou um dia realizar, a concretização de sua potência enquanto nação e a suprema demonstração da força da cultura popular em projetar para o mundo uma sociedade social e racialmente mais justa, capaz de sublimar seus conflitos sociais em potência criativa e virtude humana. Pelé foi a encarnação em campo de um país mais decente, a partir do corpo negro afro reluzente. Entretanto, assim como nossas demais realezas, sua coroa foi colocada em xeque em diversas ocasiões. Não tanto por questionarem o fato dele ter sido o maior, mas pela crença de que mesmo isso é, em alguma medida, insuficiente para um homem negro.

Pelé foi frequentemente acusado de embranquecer-se, de omitir-se politicamente e fazer pouco por seu povo. Reatualiza-se nele a mesma percepção da negritude enquanto falta, como se no futebol fosse possível chegar ao topo sem jogar o jogo. Entretanto, reduzir a dimensão política inscrita nos gestos de Pelé a mera falta é um claro reducionismo que, no limite, busca responsabilizar Edson Arantes do Nascimento por ter se aproveitado de uma das poucas formas de driblar o racismo no Brasil e criar, pela simples excelência de sua arte, a possibilidade de que outros negros também o fizessem. O mundo seria objetivamente pior para os negros sem Pelé, pois ele deu corpo a um campo novo de possibilidades de ser, um modelo de inscrição dos marginalizados no mundo, pelo seu próprio meio de atuação específica, ainda que sem posicionar-se politicamente de forma frequente contra o racismo.

Pelé, ao evitar tratar diretamente de questões raciais (norma branca que garantiu sua coroa), investiu em sua imagem enquanto Universal, buscando ser reconhecido por aquilo que é enquanto mestre maior em campo. Mas o universal é o branco, a disciplina, a tática, a razão. E Pelé é o preto, o gingado, a malandragem, o corpo. Sabendo disso, cindiu sua pessoa em duas: mágico em campo, “negro respeitável” fora dele. Não é por acaso que Edson Arantes do Nascimento costumava tratar de Pelé em terceira pessoa, como um outro de si mesmo, de modo a melhor gerenciar o mito. O melhor do mundo em campo, sujeito neutro fora dele. Edson confortava a branquitude ao confinar a magia de Pelé aos limites estritos do gramado. Caso contrário, teríamos nada menos do que a consolidação de uma verdadeira revolução preta no país. Pelé chegou no topo, mas jamais tornou-se integralmente senhor de sua própria identidade – Edson e Pelé estavam condenados a não se conciliarem, expondo a falta um do outro.

Pele já sofreu (muito) racismo, já silenciou sobre o racismo, já incorporou o racismo em seus gestos e em sua identidade. Foi identificado como a prova maior de que no Brasil não existe racismo. Como prova de que o negro no Brasil nunca acerta, mesmo quando ele por si só é dos maiores acertos que o planeta já produziu. As contradições de Pelé são as nossas enquanto sociedade – daí o merecimento de sua coroa. Afinal, o soberano não é aquele que resolve as contradições de seu povo, mas aquele que instaura a contradição performativa que dá origem aquilo que somos. E Pelé é a materialização de um outro modelo de vivência para o homem negro no interior de uma sociedade racista que se reconfigura a partir de sua existência, sem que se resolvam suas contradições: afinal, todo menino negro que já sonhou em ser Pelé algum dia também já se sentiu rebaixado por ser apelidado de Pelé, mesmo sem se interessar nem um pouco por futebol.

Pelé como desejo e castração: o dilema do negro brasileiro segue sendo o de criar uma sociedade em que seja possível conciliar a magia de Pelé com a humanidade de Edson, adequando-se a sua própria identidade.

Pelé: o futebol enquanto invenção material do corpo negro insubmisso.

ENUNCIADO III: O que a MC Carol faz nem pode ser chamado de música.

O funk é hoje um dos gêneros mais esteticamente potentes do país e um dos nossos mais sofisticados modelos de criação artística, ainda que (ou por isso mesmo) o campo da crítica musical hegemônica não pareça disposto a captar a radicalidade do que acontece nesse modelo subversivo de música eletrônica periférica. E uma das mais extraordinárias vozes artísticas no interior do gênero é a carioca MC Carol.

Tudo em sua estética tende ao insubmisso. Seu corpo, que exala modelos contra-hegemônicos; suas letras com potencial para desagradar a todos os campos e espectros (raciais, políticos, de gênero, etc.); a postura que não quer educar ou formar alianças, como no rap, mas confrontar a todos; seu canto/flow que não se deixa capturar pela ideia de “belo canto”; seus beats mais primários; sua sexualidade, não somente livre, mas afrontosa.

O universo de MC Carol não busca por redenção: nele, homens e mulheres são tratados como concorrência a se eliminar. E que vença o melhor. Machos são feitos de otário com frequência (“Meu namorado é mó otário, ele lava minha calcinha”), mas sobra muita munição também para as mulheres em canções que passam longe dos apelos progressistas por sororidade: “tu é chifruda, tu é uma corna, aprende uma coisa, peixe morre pela boca”.

Nessa estética insubmissa se articulam temporalidades diversas. Carol é a cantora do mundo presente em desagregação, sem lugar para todos, onde os supostamente alocados são matéria descartável, e os empregados são desempregados funcionais. O mundo da concorrência irrestrita e do neoliberalismo como modo de ser, marcado pela ausência de horizonte futuro e pelo salve-se quem puder geral, tendo em vista que os riscos do mercado agora são distribuídos não mais entre as empresas, mas entre os trabalhadores. No universo funkeiro de Carol, os homens estão em débito permanente com suas performances frágeis, e a sororidade feminina até existe (100% feminista), mas perde frequentemente quando se trata de disputa direta. “Sua mulher é osso, tá me olhando de rabo de olho, já botou a mão, tá me amostrando o 38”. Seu canto/grito é feito da mesma matéria desse pesadelo cotidiano, incorporado sem vaselina. MC Carol incorpora a dimensão de violência da vida em sua performance e a expõe como quem se prepara para a guerra.

Ao mesmo tempo, essa insubmissão evoca uma longa tradição estética negra da insubordinação, da quebra, da ruptura, do que não se deixa capturar.  O grão da voz de Clementina; os agudos de James Brown; o corpo de Prince; a disruptura temporal de Monk. Ecos de Yansã e Obá: ancestralidade em ato.

O estado de guerra permanente do corpo negro é materializado em sua performance, para além de qualquer fórmula conciliadora ou padrões mais codificados de música “engajada”. Mais do que “representar” as mulheres negras, MC Carol expõe aquilo que nessas vivências não se deixa representar: daí que ela não possa se tornar símbolo de resistência, pois o que nela resiste, resiste inclusive a própria noção codificada de “resistência”. Carol é a própria radicalidade estética em movimento: daí a dificuldade de se forjar categorias explicativas para sua performance. Ela muda o jogo, mas os discursos contemporâneos não lhe adivinham o sistema, sendo, pois, impotentes face a radicalidade de sua proposta.

MC Carol: o funk enquanto tecnologia feminina de insubordinação negra

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Machado de Assis, Pelé e MC Carol. Três exemplos de como, a cada tentativa do racismo em nos reduzir à condição de pura exterioridade – a redução do ser ao corpo (loucura codificada) –, surge a irrupção inesperada de um excedente que inventa o negro como condição necessária da verdadeira liberdade por vir.

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Acauam

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