DOSSIÊ 2023 POR SEUS DISCOS
A cena inicial de “Sexo, Poder e Arte”, o videoclipe lançado por Manu Gavassi em dezembro deste ano, apresenta a imagem de uma intelectual negra concedendo uma entrevista em um programa de auditório para divulgar seu livro mais recente, intitulado “Empoderamento e a Cilada do Entretenimento”. A personagem se esforça, sem sucesso, para alertar o público sobre os perigos do esvaziamento da agenda do empoderamento feminino quando submetida às dinâmicas do puro entretenimento. A apresentadora, uma figura branca caricata controlada por um homem no ponto eletrônico, discorda explicitamente, afirmando que o empoderamento consiste no direito da mulher fazer o que quiser, inclusive utilizar a marca de batom vermelho que, a propósito, patrocina o programa. Ao final, o público se alinha ao lado da apresentadora, enquanto a intelectual negra sente que fracassou mais uma vez, pois seu posicionamento crítico também transformou-se em mercadoria.
Aliás, é sintomático que o ponto de vista de Gavassi no clipe seja apresentado não por ela, mas pela figura de uma intelectual negra (cujo nome, não por acaso, é Lélia) em oposição ao da apresentadora branca representante do feminismo liberal mais tacanho. Para que usar esse artifício? Não poderia a própria Manu defender suas ideias, uma vez que ela é personagem do clipe? A resposta, é óbvio, passa pela legitimidade que essa voz confere ao clipe: o feminismo negro dota de maior valor moral a perspectiva de Gavassi (ela própria frequentemente reduzida ao nível da caricatura) que, a despeito de suas intensões, ainda é essencialmente feminismo liberal dotado de inequívocas marcas de classe.
O que nos conduz a um curioso paradoxo: ao mesmo tempo que o clipe reconhece que as mulheres negras são menos ouvidas do que as brancas, ele também pressupõe que a perspectiva da mulher negra tem maior probabilidade de ser levada a sério e, consequentemente, ouvida. O corpo negro como fantasia branca, entre impotência e salvação.
O feminismo branco liberal é, nessa fantasia, duplamente redimido: salvando as mulheres negras ao lhes conceder voz, e sendo salvo por elas que, agradecidas, dotam sua causa de maior legitimidade.
Gavassi se utiliza do corpo negro para legitimar sua perspectiva frente ao campo progressista mais alternativo. A mulher negra, subalternizada, ocupa uma espécie de “lugar de fala sem voz”, espécie de dublê do feminismo branco de Gavassi. Já vimos esse filme antes, sob a direção de Jordan Peele. Ou naqueles constrangedores comerciais de fim de ano que funcionários mal remunerados são obrigados a gravar, sob o risco de demissão.
Digamos que seja esse o limite do ideal liberal de representatividade: as mesmas ideias colonialistas da branquitude sendo expressas não pelo colonizador, mas pelos corpos daqueles poucos negros aceitos – à força – no clube.
Note-se que a crítica expressa pelo clipe não está necessariamente equivocada no que se refere a seu conteúdo. De fato, a associação entre progressismo e Capital por ele denunciado é o grande limite da imaginação política de esquerda, ao menos desde a queda da União Soviética. O problema, no caso, é a hipótese que o orienta de ponta a ponta: a de que o progressismo mais intelectualizado e crítico não participa do mesmo jogo que sua contraparte mais comercial. Aqui não podemos abrir espaço para ilusões: se Beyoncé vende Adidas, Djamila vende Prada, e ambas sob a justificativa moral de que mulheres negras agora estão no topo. Resta saber: sobre as cabeças de quem? Em suma, o clipe recai na mesma armadilha que pretende combater: ao fazer do centro do debate as críticas à mercantilização das pautas de esquerda, mal consegue ocultar o desejo de se tornar, ele próprio, mercadoria.
Nesse sentido, talvez seja mais interessante outro clipe recente da artista, “Pronta pra desagradar”. Aqui Gavassi também se coloca na posição – falsa – de vítima do sistema: a artista pop com “conteúdo”, cuja voz é suprimida por perturbar o esquema milionário da indústria do entretenimento (“Não compareço a essa festa, esse circo midiático/ Não uso empoderamento pra vender batom”). Uma imagem que, evidentemente, não se sustenta, tendo em vista que a artista vem sendo beneficiada por esse sistema desde o início da carreira. Ainda assim, o clipe, mais do que a letra, torna-se interessante a despeito de seu lugar de fala, ao adotar certo distanciamento irônico diante das dificuldades da personagem (a própria Manu) em performar esse lugar de outsider. “Como ser forasteira sendo tão padrão?”: uma pergunta bastante honesta e que garante bom rendimento artístico.
Estaríamos diante de mais um caso de “white people problem”? Decerto que sim, e descaradíssimo, por sinal. O tom de denúncia das condições de opressão da indústria do entretenimento, que de fato existem, fragiliza-se pela própria posição de classe da artista dentro dela, como se estivesse simplesmente adotando uma nova roupagem, mas descolada e alternativa, porém tão fake quanto as que ela denuncia. Versos como “Sotaque paulistano não se monetiza” soam como puro suco de mimimi burguês ressentido quando enunciado por sujeitos que se monetizaram precisamente a partir da condição de sudestino de classe média parente de alguém (não por acaso Tim Bernardes está no vídeo). Mas se o clipe anterior buscava ocultar essa contradição ao contratar uma artista negra para “legitimar” sua perspectiva, fingindo não existir problema algum (a típica solução liberal de incluir minorias em propagandas de bancos como forma de enfretamento do racismo), aqui o discurso assume todas as suas contradições em tom irônico, com resultados bem mais interessantes.
O resultado é uma curiosa inversão, que nos convida a ponderar sobre as inúmeras distinções entre arte e política, à maneira de Rancière: o ponto de vista do clipe anterior, politicamente mais coeso (com boas críticas ao progressismo cooptado pelo mercado), apresenta um resultado estético notavelmente mais frágil do que este, cujo ponto de partida politicamente mais frágil (o “silenciamento” da classe média branca) culmina em resultados estéticos e políticos mais sólidos. É por isso que estar do “lado certo da história” não assegura grandes resultados quando falamos em arte. Uma boa notícia para aqueles que têm, entre seus artistas favoritos, sujeitos moralmente abjetos – e que ninguém se atreva a mexer com meu amado Nelson Rodrigues.
Em determinada cena, um jovem twitteiro faz um post maldoso ironizando o trabalho de Gavassi sem, contudo, receber nenhuma curtida. Flopado e cabisbaixo, o rapaz lamenta, desolado, até que o universo decide ofertar-lhe uma oportunidade única: a própria Gavassi, caminhando apressada pelas ruas de São Paulo. Rapidamente ele a aborda, implorando para tirar uma selfie, no que ela, simpática, atende. Na sequência, o rapaz (que, a propósito, é gay) posta a foto no Twitter com a legenda “Encontrei a flopada! Tirei foto por dó… kkkk”. Sucesso imediato, com centenas de curtidas. O vídeo atinge aqui um ponto certeiro: até que ponto as críticas ao lugar de fala de Gavassi, como “só mais branca privilegiada”, não fazem parte do mesmo esquema construído pelo padrão algorítmico? A crítica, nesse caso, não implica uma adesão anterior, de cunho conservador, que converte qualquer posicionamento em performance monetizada, dispensando inclusive argumentações críticas mais consequentes?
A denúncia dos privilégios também tem por função gerar engajamento, convertendo-se em mero clichê monetizado. No limite, pouco importa se um enunciado é verdadeiro ou falso, pois ambos estão a serviço dos mesmos Deuses, de modo que a distinção entre um e outro desaparece. Ou seja, não é apenas o lugar de fala da artista branca de classe média que perde força crítica ao partilhar dos mesmos pressupostos do sistema. Também as críticas mais justas, advindas de lugares a princípio mais legítimos, são capturadas pela roda-viva algorítmica. Daí que, a despeito da falsidade de seu ponto de partida (espécie de fanfic ressentida em que mulheres brancas privilegiadas não tem lugar de fala), o problema apresentado pelo clipe seja, de fato, relevante. Ao voltar-se contra si mediante o uso da ironia, ele acaba revelando algo verdadeiro, a despeito de si mesmo: a denúncia dos privilégios da classe média branca é, ela própria, capturada por um sistema que, entre outras coisas, funciona para manter intactos os privilégios dessa mesma classe média branca.
Note-se que a questão de fundo é machadiana. O que seria a Verdade em um reino onde tudo é estritamente e tão somente aquilo que parece ser? Existe alma para além do avatar, verdadeira farda de alferes contemporânea? Em um universo em que o sujeito é reduzido a seu lugar de fala, i.e., à pura exterioridade, não existe alma interior. Você não é nada para além da farda que você usa, mesmo que aquilo que você diga seja, a princípio, verdadeiro. O caráter fake do ponto de vista expresso pelo clipe, ao ser generalizado pela forma irônica com que olha para si, permite capturar (ou intuir) o que existe de falso em todos os demais pontos de vista, incluindo os que assumem uma posição mais legítima. Afinal, na era da pós-verdade é a própria distinção entre lugares verdadeiros e falsos que é interditada, tornando praticamente impossível a ideia de se estar “do lado certo da história”, posto que é a própria possibilidade de estabelecer certezas que cai por terra.