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Qual a diferença entre o Léo Lins e uma diarreia?

  1. Primeiro movimento: posicionar-se. Fábio Porchat está errado. A interdição das piadas de Léo Lins não é um caso de ataque a uma “liberdade de expressão” genérica e sem fundamento, e sim parte de um processo mais amplo e necessário de interdição do discurso fascista brasileiro, do qual o padrão de bullying expresso pelo humor de Léo Lins e companhia (Danilo Getilli, Jovem Pan, MBL e afins) é componente fundamental. Não é a proibição, e sim o próprio discurso fascista que interdita outros modos de existência e que, por isso, é incapaz de existir em sociedade. Se nós de fato queremos uma sociedade livre de fascista, nós teremos, sim, que perseguí-los, encurrará-los, tornar indigna sua existência. Nesse sentido, eu quero é mais que o tal de Léo Lins se lasque todo. Porque ou nós estamos falando sério em acabar com o fascismo por aqui, ou aceitamos a bobageira de que é preciso dar tempo ao tempo e esperar a sociedade evoluir.
  2. Segundo movimento: problematizar. A começar pelo modelo narrativo adotado. Ajudaria bastante se contássemos a história direito: “Tu viu que tem um galego do olho claro que vive fazendo bullying com uma galera bem f*dida? Ele só pega os que estão bem na merda pra bater, covardão. Outro dia ele fez piada com a mãe de uma moça que está com câncer! E um bando de otário aplaudindo. E tu viu que ele foi tirar um maluco e tomou um tapa na cara? Pois é, também acho que apanhou foi pouco”. Desse jeito, os pingos nos ís.
  3. Mais eis que opta-se por uma estratégia bem mais complexa, ainda que em aparência mais simples: o debate estético. Quais conteúdos são válidos em relação humor? O que pode ser objeto de riso ou escárnio? Qual o limite ético? Um debate estético e, sobretudo, moral, cujas origens provavelmente datam dos primeiros exemplares do gênero. O próprio Aristóteles já se via as voltas com essa questão e, desde lá, nunca se deixou de falar sobre isso.
  4. O “problema” do humor, desde uma perspectiva moral, é justamente o fato de que não existem conteúdos que não lhe possam ser atribuídos. Nenhuma lista de proibições e limites resiste à sua força corrosiva. O humor, para o bem ou para o mal, não pode ser domesticado, não importa o quão bem intencionado se esteja. Ele é torpe, perverso, sujo e vil. Ou o humor é podre como a vida, ou é piada de toc toc e Ursinhos Carinhosos.
  5. Cito um episódio verídico que, por razões óbvias, não entrou na edição final do Pentateuco. Conta-se que imediatamente após a leitura dos dez mandamentos por Moisés, um engraçadinho peidou. Geral riu – inclusive o próprio Moisés, na baixa. Mesmo que o episódio tenha sido sabiamente excluído da versão bíblica oficial, por séculos os católicos ficariam intrigados com os engraçadinhos. Não é pra menos: por muito pouco a palavra de Deus não foi vencida pela mais antiga arma química produzida pelo homem. Eis o poder pustulento de uma piada bem aplicada.
  6. Retire a perversidade do humor e mate o melhor humor brasileiro. Elimine piada com pobres e retire a mais importante fonte da cultura popular. Elimine piada com negros e acabe com a melhor tradição negra de humor. Sem perversidade contra os de baixo, não existiriam Chaves, Chaplin, Quixote. Apenas literatura de corte.
  7. Em A Igreja do Diabo, Machado de Assis nos conta que ele, o capiroto em pessoa, percebendo que os cristãos gostavam mesmo era de pecar, decide fundar uma igreja em que tudo era permitido, exceto as virtudes cristãs. Sucesso rápido e imediato, como se pode imaginar. Com o tempo, no entanto, o diabo começou a perceber que muitos dos seus fiéis estavam praticando virtudes cristãs às escondidas. Respeitando pai e mãe, castidade, humildade, etc. Conclusão: o povo gosta mesmo é de pecar, independente dos conteúdos particulares dos vícios. O humor é parente do pecado ,e tão logo concluída a listagem com os temas que não podem ser objetos de piada, veremos crescer exponencialmente o número de pecadores. Tampouco o humor possui ética: é uma arma química que se entrega a quem pode pagar mais.
  8. Mas existem conteúdos de fato intoleráveis, certo? Pois é essa precisamente a bronca: para o humor, não – eis a fonte do seu poder, que serve a todos os espectros. Lembremos da placa na entrada de Auschwitz, que trazia a inscrição “o trabalho liberta”, a mais perversa das piadas que se poderia fazer em um campo de concentração. A propósito, esse é o território do humor de Léo Lins, que participa da mesma ordem de violência – humilhação de sujeitos fragilizados até o limite da destruição subjetiva (quanto pior o humilhado se sentir, mais sucesso terá tido o humorista). Um humor cujo teor de perversão é tão grande que adere ao próprio projeto de desumanização nazista, como seu mais perfeito complemento simbólico. Entretanto, eis o ponto: não existe como impedir o humor de aderir a horrores como esse, porque é próprio do humor a subversão de quaisquer modelos éticos. O humor é uma ferramenta e, como tal, pode funcionar nas mãos de quaisquer sujeitos, inclusive nazistas. Podemos gastar toda nossa saliva explicando porque fazer piada com a escravidão é errado. No final da explicação, alguém irá peidar. Da perspectiva do humor, o errado seria não fazer a piada. Ele vive para desestabilizar discursos, quaisquer que sejam – essa é a razão de ser de sua forma.
  9. Frequentemente alguém cita como exemplo de “humor do bem” o seriado Chaves, como exemplo de humor que agrada toda família, livre de palavrões e, portanto, perversidade. Mas será mesmo um bom exemplo? A base do humor do programa é o ciclo de violência e humilhação distribuídos entre os mais pobres. Todo mundo é ferrado no programa , inclusive o capitalista proprietário (Seu Barriga), que é dono de um cortiço caindo aos pedaços e é tão liso que tem que ir pessoalmente cobrar o aluguel, além de ter um filho que estuda no mesmo colégio dos pobres. Entretanto, sendo todo mundo f*dido, os micropoderes se tornam ainda mais relevantes: o polo com maior capital econômico (Dona Florinda e Quico que tem herança) e cultural (Girafales) humilha concreta e simbolicamente o polo com menos capital (Seu Madruga, Chiquinha e Chaves). Esses, por sua vez, alternam entre humilhar quem é ainda mais fraco (Seu Madruga batendo nas crianças), ou revidar com malandragem (Chaves batendo no Seu Barriga). Existe muita perversidade em Chaves, e parte de sua força deriva de fazer humor com condições de degradação própria do contexto periférico latino americano, em que não se ausenta uma visão aguda de luta de classes.
  10. Então não podemos fazer nada em relação a barbárie travestida de piada? Sim, podemos, mas observando com cuidado o que deve ser atacado. Não é possível livrarmos o humor de sua ligação orgânica com a perversão. E mais, não é desejável que se faça isso. Precisamos que o humor seja estruturalmente próximo da violência para que ele possa continuar perigoso. Essa violência pode assumir funções bastante positivas no trato com as dores do mundo. Não por acaso o humor interno de comunidades marginalizadas é frequentemente ultra agressivo, deixando sujeitos como Leo Lins no chinelo. Quer encontrar as piadas mais pesadas contra judeus? Siga comediantes judeus. O mesmo vale para negros, pessoas com deficiência, etc. Saindo do campo mais óbvio e fácil do lugar de fala (quem pode ou não o que) é óbvio que o humor nesses casos é o instrumento que permite lidar com uma dor que seria muito mais insuportável caso não se transformasse em objeto de riso. Em alguns casos, quanto pior, melhor, como se o sujeito tivesse finalmente poder sobre aquilo que o corrói. Matar a acidez do humor seria uma grande perversidade para com esses sujeitos. O humor é o purgatório que permite transitar do inferno ao paraíso.
  11. Entretanto, por mais que nos esforcemos, é simplesmente impossível fazer com que tal perversidade do humor só funcione em sua dimensão positiva. Justamente porque é de perversidade que se trata, e mesmo perversão do bem é bem pervertida. Daí os grupos que se esforçam por disciplinar o humor – à esquerda ou à direita – soarem sempre caretas e conservadores, como bedéis da moral e dos bons costumes. É próprio da perversão não dar a mínima para coisas que tanto apreciamos (ou fingimos apreciar) como “o lado certo da história”. A perversão quer estar do lado certo do chicote.
  12. Na real, só existe um jeito de controlar os usos do humor: assumindo o papel de polícia e impondo seu próprio conjunto de regras na base da porrada. Foi assim que historicamente o negro se tornou objeto de escárnio e o branco não. O poder colonial impôs, a força, o padrão de escárnio. Daí o sucesso que essa postura policialesca faz entre as minarias nas redes sociais, espaço em que podemos performar uma força que não necessariamente existe. O problema é que o santo é de barro, e não importa o quão assustadoramente bem lhe caia o uniforme, pois sempre irá lhe faltar o principal: poder.
  13. Como disse o parceiro Renan Oliveira na troca de ideia que gerou esse texto, o grande desafio da esquerda hoje é forjar um modelo antifascista de perversão, ao invés de fantasiar sua própria utopia como um campo livre de todo mal, fingindo-se de anjo barroco.
  14. Todos precisamos dessa capacidade do humor de chafurdar na escrotidão humana. Por mais progressistas que sejam nossos princípios. “Soca fofo”, por exemplo, é uma piada tão boa porque instaura uma tensão perversa: ao mesmo tempo que atua diretamente sobre a fantasia de virilidade masculina para desmontá-la, afirma indiretamente a positividade da macheza viril que a princípio se pretendeu atacar. É nessa tensão irresolvível e pouco preocupada com a ética (pois existe algo maior em jogo) que está a sua força. O humor realiza o trabalho sujo que precisa ser feito por alguém.
  15. Dito isso, eu não acho que Léo Lins não teve o que mereceu, ou que suas violências devam ser ignoradas sob o verniz tipicamente fascista do “é só uma piada”. Dizer que todo humor é perverso não significa que todas as suas perversidades sejam justificáveis. Nesse caso, a criminalização dos vídeos violentos de Léo Lins fazem parte de um contexto mais amplo de criminalização do fascismo – portanto, não fazem sentido os temores liberais de que esse processo irá se estender a todo tipo de humor. O que se está atacando é o padrão fascista de existência, que pressupõe a morte do Outro. Mas, quando aceitamos a articulação do humor ao mal como um dado positivo – ou seja, quando adotamos um ponto de vista menos cristão e mais próximo da dialética de Exu – o modo de organizar a luta e seus meios mudam completamente.
  16. Como foi que aquela piada no letreiro de Auschwitz foi interditada como imoral e banida de circulação por um bom tempo? Ao que parece foi o nazismo, e não a piada que se tornou indecente e imoral. Essa é o único caminho. Substituir a piada por placas mais realistas ou piedosas não resolveria o problema dos judeus. Tornar o nazismo imoral sim. É o Léo Lins e o seu modelo de bullying fascistinha que deve ser tornado imoral, indecente, indigno de existir. Um movimento que exige uma ressignificação profunda do nosso tecido social. E não, não se resolve com a utopia liberal de uma educação de primeiro mundo – o que vem acontecendo na Europa é a prova de que o que resolve racismo é acabar com os racistas, e não educá-los.

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3 comments

  1. Nesse dia 21 de maio, dia do profissional de Letras, nada melhor do que ler um texto seu, Acauam! Sua escrita, como sempre, é provocativa e envolvente. A reflexão que você traz sobre o poder corrosivo do humor e sua inevitável falta de controle é verdadeiramente instigante, levando-nos a repensar nossos próprios conceitos de ética e moral. É crucial reconhecermos que o humor pode ser subversivo e desestabilizador, desafiando discursos estabelecidos, e devemos exercer cautela ao delinear limites e proibições. No entanto, vale destacar que nem todas as formas de perversidade no humor são justificáveis, e sua crítica ao padrão fascista de existência é pertinente. Parabéns pela profundidade e significado que seu texto proporciona!

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