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O plágio do Parangolé ou, a dimensão gospel do consumo contemporâneo

Em meados de 2011 o grupo Angra – banda brazuca de power metal progressivo (sic) – processou a banda Parangolé – grupo de pagode baiano, o mais popular (povão) dos gêneros do axé – por ter plagiado um riff de uma de suas músicas. Os pagodeiros concordaram – o guitarrista estaria estudando no estúdio o trecho que viu na internet, e o produtor gostou – e a coisa meio que ficou por isso mesmo.

Primeiro, um juízo de gosto: considero os dois grupos esteticamente bem fracos, ainda que competentes naquilo que se propõem – o virtuosismo brega dos metaleiros e a capacidade do Parangolé de agitar a galera. Pessoalmente acho o Parangolé até mais interessante (não bom) por razões que não vem ao caso.

O que me interessa aqui é a relação com o plágio – origem da confusão – que leva a um interessante impasse. Os grupos dos gêneros massivos atuais (forró, sertanejo, axé, tecnobrega) no limite não operam com a possibilidade do plágio, pois a própria noção de “autoria” é problematizada de saída. Seu princípio é o mesmo do compartilhamento virtual, fazer circular infinitamente as mesmas informações em uma cadeia produtiva com diferentes estilos. Aqui você pode conferir uma LISTA com dezenas de canções de sucesso internacional que ganharam versões forró. A mesma informação musical de sucesso é apropriada com nova roupagem, e o gozo se encontra precisamente aí, no conforto de um mundo redundante.

Por sua vez, o metal tem verdadeiro horror ao plágio. Uma simples coincidência de acordes, uma linha melódica similar, a citação de um riff já é suficiente para os fãs sentirem-se enganados, partindo para o ataque ou defesa da banda em questão – até as citações paródicas de um grupo como o Mamonas Assassinas são ouvidas com desconfiança por fãs de metal mais exaltados. ESSE VÍDEO dividido em três partes, que lista dezenas de “coincidências” no campo do pop\rock, é um ótimo exemplo. É óbvio que tal preciosismo se concentra mais na esfera do consumo que da produção, sendo o metal também marcado pela grande variedade de sentidos, materiais, e trânsitos não protecionistas (ainda que tal vigilância não seja desprovida de consequências no campo produtivo, levando certos grupos de metal a se tornarem caricaturas de si mesmo). Em todo caso, a relação da banda com a recepção é sempre um processo em construção, e não são todas que cedem a pressão ingrata dos fãs. Mas é precisamente a esfera do consumo que nos interessa aqui. Porque o metal tem aversão ao plágio, sentindo como ameaça uma simples referência, ao passo que a recepção do axé ou do forró não apenas aceita, como até mesmo exige que seu artista\banda participe ddo círculo infernal de citações? É claro que uma interpretação simplista, do tipo que coloca o consumo do axé como alienado, e o outro como crítico, não nos interessa em nada.

Sendo assim podemos nos arriscar a dizer que o consumo do metal é em grande medida baseado no culto da personalidade (o caso extremo é o punk, onde até a ideia de qualidade musical se subordina a atitude). O Deus-metal. Baseia-se na ideia de pureza, de preservação da verdade – mais do que boas os más, as bandas são julgadas em termos de Verdade. Um tipo de recepção que procura preservar a “castidade” do gênero, e que nesse ponto se aproxima de um padrão gospel de consumo, em que só são bons e aceitáveis os valores da própria seita, sendo todo resto pecado – faz sentido pensar por aí a relação do metal com vertentes do satanismo, que não deixa de ser um modo de incorporação da ética religiosa.

Por sua vez a recepção de gêneros massivos contemporâneos parece fazer a exigência contrária, porém tão rigorosa quanto, ou até mais. Os grupos de forró atuais são praticamente obrigados a criar versões locais dos mais recentes hits. E caso a versão emplaque por aqui, vai obrigatoriamente receber uma releitura sertaneja, pop, pagodeira ou tecnobrega. A integridade buscada não é a da personalidade, como no caso do metal, mas do próprio consumo, como quem exige que o mais recente iphone já venha atualizado e cheio de aplicativos “nacionais”, como o facebook. Numa espécie de distopia pós-tropicalista, esses gêneros não se caracterizam tanto por especificidades estéticas, e sim por definições de esferas de consumo – essa versão para tal lugar, aquela para outro. No limite, tais grupos funcionam como bandas de baile que vivem de reproduzir novos e velhos sucessos, próprios ou de outros, pouco importa.

Contudo, é necessário observar o movimento em conjunto, pois é precisamente nesse ponto em que os estilos parecem irreconciliáveis que podemos vislumbrar uma mesma lógica subjacente. Para compreendê-la, devemos inserir um novo elemento na equação, pois acredito que uma boa maneira de “compreender” como ambos os modelos de recepção (culto à personalidade x culto ao próprio consumo) participam de uma mesma cadeia de produção de sentido é observando o mercado de música gospel, que une explicitamente as duas dinâmicas. O padrão gospel não faz a menor diferenciação entre gêneros: a rigor, pode-se consumir qualquer estilo (funk gospel, metal cristão, axé gospel). Entretanto, esse reino da absoluta liberdade de consumo tem uma restrição radical que obriga ao consumidor escutar apenas as versões gospel dos estilos profanos, pois consumir o original do “mundo” é afastar-se de Deus. A música gospel brasileira sustenta-se nesse lugar paradoxal em que não se cria nada próprio, mas tudo o que não seja próprio é pecaminoso. Por um efeito de sentido perspicaz, a própria cópia é dotada de certa “aura” de originalidade, adorada enquanto tal, tanto mais fervorosamente quanto mais precisa das criações mundanas para sustentar seu próprio mercado. A pura inveja se transveste de consagração devota. No limite, o que faz de determinada música algo “sagrado” não são seus próprios atributos intrínsecos (pressuposto ideológico do metal), mas as definições apropriadas pela esfera do consumo. Por outro lado, essa recepção nunca será verdadeiramente “livre” (pressuposto ideológico do axé), uma vez que é ideológicamente gerenciada por um conjunto radical de valores.

No limite, o bom e velho território adorniano da regressão da audição – o simpático diagnóstico de que o ser humano no capitalismo desaprende a ouvir (ainda que a famigerada “escuta atenta” seja um pressuposto muito mais eurocêntrico do que o bom velhinho gostaria de admitir, e menos hegemônico do que supunha) – pois aqui não importa tanto a qualidade estética, a matéria musical propriamente dita, e sim o sistema ideológico que o (re)significa, do qual a sonoridade faz parte, mas não necessariamente enquanto elemento principal. Nesse sentido é que tanto a preservação da virgindade musical (metal) quanto a putaria generalizada (axé) participam de um mesmo sistema de regulação que faz perder a matéria musical. Podemos no máximo escolher qual reality show assitir: com o simpático vovô Ozzy ou com o projeto de diva Claudia Leitte. Em outras palavras, podemos ser os felizes consumidores de uma coca cola original geladíssima, ou celebrar a pluralidade multicultural das variantes genéricas com gosto de remédio – Dolly Cola, Crush Cola, Convenção Cola. Ou ainda adotar o brilhantismo da fórmula cristã, que manda ver sem dó no engodo genérico plenamente consciente de que é uma porcaria, mas com a certeza de que a compensação simbólica não tem comparação.

Beber Dolly e arrotar coca cola, sabendo que ela é o cão – não é das piores metáforas sobre o mercado gospel escritas por aí.

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