Problema I: a teoria do medalhão
É sabido que a crítica musical brasileira está longe de ter a mesma consistência de outras áreas estéticas, como a literatura e as artes plásticas, aproximando-se daquelas áreas que mantem certa “aura” amadorística, como o futebol. É muito escassa (e recente) a reflexão estética por parte dos artistas, e a academia segue colocando os estudos sobre a canção popular em segundo (ou terceiro) plano. As razões são de diversas ordens (podemos citar, a princípio, a função da crítica nacional como mecanismo de distinção, que define seus objetos mais por prestígio que por interesse intelectual – teoria do medalhão; a “inutilidade” de crítica especializada em áreas extremamente populares como o futebol e a canção, em termos de compreensão de seus mecanismos estruturais; a dificuldade de definir um método de análise de um objeto tão heterogêneo quanto a canção; etc) mas, em todo caso, o resultado é uma patente pobreza no debate intelectual sobre a canção, com pouquíssima consistência conceitual e padrão mais jornalístico\informativo (que remete ora a trajetória do artista ou banda, ora ao conjunto de artistas participantes, ou a uma descrição impressionista das faixas) e estilístico (que remete aos gêneros presentes nessa o naquela canção). Frequentemente, a dimensão propriamente analítica\crítica é substituída por um conjunto de adjetivações vazias, que circulam o objeto e o fantasiam sem o descrever ou analisar. Para tomar um exemplo qualquer, mas bastante representativo da média, vejamos essa resenha feita sobre a obra de uma artista contemporânea:
“o disco passa por diferentes caminhos, mantendo uma atmosfera própria, espacial e atemporal […] A cantora e compositora une o brio de sua musicalidade às suas letras, fruto de percepções da vida, sejam elas cotidianas ou dentro de seu caráter metafísico”.
O sentido de expressões como “atmosfera espacial e atemporal” e “caráter metafísico” permanecem absolutamente obscuros em sua ausência de rigor, que em nada contribuem para a compreensão crítica de seu objeto, funcionando antes como um exercício estilístico, de longa tradição retórica no Brasil. Mas não seria correto afirmar que essa crítica é totalmente vazia: ela é vazia em relação a seu propósito de compreensão do objeto, mas cumpre uma função ideológica bastante específica de girar ao redor de si mesma, fazendo brilhar a luz do crítico. Vejamos outro exemplo, tirado do mesmo texto: “o Brasil produz a melhor música do mundo, mas ouve a pior”. Trata-se de uma frase de efeito que nada explica em termos conceituais, mas causa impacto por conta de sua adjetivação hiperbólica (melhor\pior), e de quebra coloca o crítico como aquele com condições de saber qual é a boa música brasileira, ao contrário de todo Brasil, que ouve outra coisa.
Um dos efeitos perversos dessa baixa de pensamento crítico sobre a canção é que a pauta da discussão é dada em termos de divisão mercadológica, dependente da prateleira em que cada artista é inserido. Se o artista faz parte da prateleira “música de massa”, como cantores de axé e compositores de “brega”, as críticas exaltam (ou criticam) a capacidade das canções de atingir o “coração do público”, em oposição a música feita para poucos entendidos. Por outro lado, se o artista está na prateleira dos “cults”, como o círculo MPB, a crítica destaca os artistas e gêneros por onde ele passeia, sempre exaltando seu trabalho autoral em oposição a padronização mercadológica. No caso de artistas de gênero tradicionais, como o samba e o forró, é essencial que se exalte a relação do artista com o melhor da tradição, em oposição aos estilos sem vínculos sólidos com nossa raiz.
Ocupada em sustentar esses binarismos (o que se ouve e o que se produz, tradição e modernidade, cult e brega), a crítica em geral se exime de fazer análise, que é justamente o ponto em que essas dicotomias são dialeticamente relacionadas de modo a fazer avançar o conhecimento. São deixadas de lado (salvo exceções louváveis) questões básicas (o que é o samba, e porque o pagode paulista e a Bossa Nova não podem ser considerados enquanto tal? Ou podem? Quais os critérios de definição da MPB?), que partem justamente da percepção do ponto de união a partir de onde se constituem as diferenças. A primeira coisa que a crítica literária faz, por exemplo, em relação a história da literatura hegemônica difundida nas escolas, é romper com sua linearidade de gêneros – importa muito mais a reflexão sobre a linguagem de Guimarães Rosa, ou a dimensão histórica-metafísica de Machado de Assis, do que o pertencimento destes ao Realismo ou a terceira geração modernista. No caso da crítica cancional, ao contrário, a classificação, a delimitação e o engessamento tendem a ser o foco, pois permite à crítica eximir-se de uma reflexão mais séria sobre seu objeto – afinal, quem se importa com uma análise estética do disco de Ivete Sangalo, ou quem admite que Mc Da Leste tem canções que ajudam na compreensão crítica do cenário político atual? – ao mesmo tempo que consolida as divisões de mercado, cumprindo sua função de auxiliar na classificação mercadológica (determinados objetos só podem gerar determinadas questões que pertencem a campos mercadológicos distintos).
Problema II: você não vale nada, mas eu gosto de você
Um fenômeno recente da crítica musical, a ser celebrado, é sua reorganização via internet, em espaços como blogs e sites. Com o fim da era das grandes gravadoras, o principal problema para os artistas passa a ser não mais a produção – que pode ser realizada individualmente no seu próprio quarto – mas a distribuição de seu trabalho, e a divulgação e viabilização de seus shows e apresentações. Como fazer as pessoas conhecerem seu trabalho para além dos padrões impostos pela mídia tradicional, fechadíssima? Um dos resultados dessa necessidade de rearticulação do campo artístico é o crescimento de diversas formas de relacionamento e organização em rede dos artistas e grupos – incluindo os casos mais polêmicos, como o Fora do Eixo – que gravam uns com os outros, organizam shows em conjunto, promovendo-se mutuamente.
O efeito positivo mais imediato dessa articulação em “turmas” é a possibilidade de desenvolvimento de uma linguagem própria por eixo de interesses e trocas, cada vez mais consistente, e que já gera frutos interessantes, como a cena musical “alternativa” de São Paulo (os diversos projetos intercalados de Rômulo Fróes, Juçara Marçal, Kiko Dinucci, Thiago França, Curumim, Rodrigo Campos). Não raro esses artistas, agora plenamente envolvidos em todos os ramos da produção musical, tem um olhar crítico muito consciente sobre sua produção e a de seus parceiros, assim como para o seu lugar na história da canção brasileira e mundial – cujo acesso hoje é muito maior do que para as gerações anteriores. Por outro lado, essa rede de solidariedade gera um efeito perverso que é nosso velho conhecido, fruto das relações de favor e compadrio que estruturam as relações sociais no país, e cujos efeitos não param de se fazer sentir. Digamos que essa nova geração de músicos, e seus críticos é uma das mais bem preparadas em termos de conhecimento profundo de seu objeto, em diversos níveis (produção, mercado, distribuição, histórico); seu preparo e participação é tão intenso que o crítico, que é também um músico que sabe das correrias e dificuldades de se estabelecer em um circuito rarefeito, sabe que o mais importante no momento é fortalecer esse circuito, e por isso evita ao máximo prejudicar seu parceiro. A perversidade aqui é que o grupo mais preparado para dar conta do fenômeno musical contemporâneo (e é impressionante a erudição de Rômulo Fróes, por exemplo, e a visão de totalidade – que falta a crítica de mercado – de um Nuno Ramos, ou Francisco Bosco) para analisar o cenário contemporâneo em que estão inseridos é o que tem mais interesses de ordem pessoal a defender, cujo resultado em termos de conhecimento crítico é um excessivo abrandamento das arestas e diferenças. A impressão que temos é que todas as obras vinculadas a Nova MPB são de grande qualidade, funcionando a própria sigla como um atestado de qualidade.
(Para dar um exemplo claro da diferença de nível entre os dois modelos de crítica, podemos comparar essa análise de “Um labirinto em cada pé”, de Francisco Bosco, (CLIQUE AQUI), com um texto clássico de ressentimento crítico contra a nova geração, que não se baseia em nenhum tipo de análise, apenas em impressões, do jornalista André Forastieri, (CLIQUE AQUI). Até naquilo em que confirma as projeções do jornalista, sobre a impopularidade da nova MPB, a análise de Bosco avança um passo, ao mostrar como que a intraduzibilidade está refletida esteticamente na obra de Fróes, tornando matéria estética as questões históricas de sua geração, o que já seria suficiente para classifica-la como uma obra para além dos padrões de mesmice, e não uma obra simplesmente conformada com seu insucesso, nos termos do jornalista. Ao contrário, Fróes faz dessa incomunicabilidade matéria de reflexão, talvez o caminho mais honesto para quem procura por alternativas).
Aqui, o problema crítico é de outra ordem – o que não deixa de ser um avanço, uma vez que, nesse caso, pelo menos a crítica existe: o modelo da crítica de prateleira é pautada por um profundo desconhecimento de seu objeto, pois sua função não é refletir criticamente sobre ele, mas definir para qual prateleira ele vai. As questões expostas já estão, assim, previamente definidas, sem a necessidade de se olhar para o objeto. Se for um disco de axé, vou enfatizar a adesão do público, que dançou e está comprando. Se for um disco cult, vou enfatizar a dificuldade de adesão do público (menos os entendidos), que não dançou, mas deveria comprar\baixar\ir no show. Já esse novo modelo crítico possuiu um conhecimento grande sobre a cena atual, suas dificuldades e questões, e os artistas são compreendidos para além das classificações comerciais. Entretanto, ela muitas vezes peca em termos de avaliação e julgamento, como se o crítico recuasse no momento de tirar maiores consequências de suas percepções. Pois, no limite, trata-se de uma questão de sobrevivência, afinal, a indústria fonográfica pode ter sofrido um grande baque, mas o fim do mundo continua mais palpável que o fim do mercado, e cada um precisa defender o seu.
Desse modo, aquela que é uma das maiores bandas de rock nacional dos últimos tempos, o Cidadão Instigado, aparece diluída em meio a outros nomes que não chegam nem perto da sua radicalidade inovadora. De certa forma, omite-se que Karina Buhr é mais limitada que Juçara Marçal, ou que Siba é um cancionista muito mais consistente que Marcelo Jeneci, ou ainda que Rômulo Fróes e Rodrigo Campos distinguem-se da maioria de seus pares. Em nome da valorização e compreensão da cena em que se inserem, o olhar de dentro deixa de captar tais diferenças, separando criticamente a partir de uma compreensão interna. As análises são precisas, mas a interpretação final é conscientemente rebaixada porque, afinal de contas, está todo mundo sofrendo pra manter o leite das crianças, e o crítico sabe – quando não participa – da correria da galera, e não quer empatar a de ninguém. A minúcia e o rigor das análises perdem sua força pela timidez das interpretações, que exime-se de extrair maiores consequências. Ali mesmo onde houve um ganho considerável em termos de compreensão e respostas sobre o que é, afinal, a música popular brasileira, é que parece ter se perdido o fôlego na capacidade de se pensar a diferença entre uma arte que favorece a reflexão (e não custa lembrar que um funk ou um brega podem ser mais produtivos em termos de conhecimento que uma obra “vanguardista”) e outra que legitima a barbárie (e não custa lembrar que a crítica radical pode cumprir essa função maravilhosamente bem).
A crítica de prateleira não permite conhecer os objetos, reproduzindo os padrões já definidos pelo mercado, e fazendo um exercício retórico vazio, que serve para admirarmos os dotes estilísticos do autor. A nova geração Y, por outro lado, demonstra um conhecimento profundo sobre seu objeto, de grande interesse crítico, mas ao fim torna todos os produtos equivalentes, recaindo no território da indiferença ao qual lutou para se desvencilhar. Seu ponto de partida é enriquecedor (“não existe obra ruim à priori”), pois permite avançar a reflexão para além de lugares previamente determinados, mas seu ponto de chegada (“não existe obra ruim”) empobrece seus resultados, pois acaba por limitar a tomada de posicionamento crítico diante do mundo, que é, no fim das contas, uma das coisas mais legais que a arte permite que a gente faça com ela.