Publicado originalmente na Revista Pessoa (Portugal), em setembro de 2021.
Em linhas gerais, a noção de lugar de fala tende a me causar certo incômodo. Provavelmente porque carrego comigo um corpo negro já cansado, teimoso, curtido em debates ao redor do materialismo histórico dialético, território denso repleto de alemães e ingleses. Por essa razão, já escrevi diversos textos apontando eventuais fragilidades e limitações do conceito. Recentemente, entretanto, tenho procurado matizar tais críticas, a medida em que as reações de certo identitarismo branco vão se tornando muito mais violentas e perigosas do que meros limites conceituais. Tenho por isso me atentado para aqueles momentos em que a noção de lugar de fala ultrapassa seus mecanismos mais frágeis de interdição, pautada por uma lógica de concorrência francamente neoliberal, para captar os momentos em que ele funciona como um interessante mecanismo de tensionamento discursivo capaz de produzir pequenos curtos-circuitos ideológicos. E um desses momentos particularmente interessantes sem dúvidas diz respeito ao debate em torno do lugar de fala branco do escritor brasileiro.
Uma questão que volta e meia comparece ao debate literário brasileiro diz respeito a algo que podemos caracterizar como certo ‘sentimento de aporia’ que parte dos escritores – em particular homens, brancos e heterossexuais – vivenciam ao se deparar com determinados questionamentos provenientes de setores comprometidos com pautas ligadas ao tema da representatividade. Resumidamente, o problema pode ser enunciado da seguinte forma: de um lado, tem sido cada vez maior a cobrança por uma maior presença das chamadas minorias no interior do mercado editorial hegemônico, haja vista sua vergonhosa sub-representação. Existe uma demanda para que as editoras incorporem em seu catálogo autores e autoras advindas de setores historicamente silenciados (negros, mulheres, indígenas, comunidade LGBTQIA+, etc.) de modo que as experiências desses sujeitos subalternos sejam trazidas à tona a partir de seus próprios termos. Ao invés da lógica mais tradicional da representação, em que o escritor de classe média cria mediações ficcionais que tomam a forma de personagens subalternizados, exige-se agora que o autor se fixe em sua própria experiência, de modo que mulheres, negros e povos indígenas possam ‘falar’ a partir de sua própria condição existencial. Por outro lado, e aí a aporia, esses mesmos grupos questionam, por assim dizer, o resultado de sua própria demanda, pois sendo a literatura limitada a determinados lugares, o resultado lógico é uma maioria absoluta de personagens masculinas, brancas e heterossexuais de classe média.
Ao escritor brasileiro contemporâneo de classe média, caberia contemplar, impotente, um beco sem saída: se por um lado, não pode falar exclusivamente de si, pois assim estaria reforçando o caráter excludente da forma literária, por outro lado estaria sendo interditado em suas possibilidades de tratar da voz de um outro, pela demanda de especificidade própria ao conceito de lugar de fala. Diante dessa demanda impossível, a única possibilidade que restaria a esse sujeito seria o silêncio, o que lhe soa particularmente autoritário. Essa conclusão algo apocalíptica – a condenação do homem branco ao silêncio no campo intelectual -, não deixa de soar, entretanto, como excessivamente caricata e bem pouco convincente, a despeito da concatenação aparentemente lógica das ideias. A não ser, é claro, para quem já concorda de saída com o espantalho da ditadura do politicamente correto ou com sua variação mais recente, a cultura do cancelamento.
Segundo pesquisas realizadas pela professora Regina Dalcastagnè, da UNB1, o campo literário brasileiro hegemônico é formado quase que integralmente (94% até 2004) por escritores brancos do sexo masculino. Isso indica não apenas que os critérios de valoração estética obedecem a aspectos de classe e raça, e sim algo muito mais grave e elementar: a condição mesma para ser considerado escritor no país é ser branco, inclusive quando não se é (basta ver o caso emblemático de Machado de Assis). Nesse sentido, pode-se afirmar sem exageros que o racismo é a condição de existência do campo literário enquanto tal.
Isso não é algo difícil de se perceber, para quem está disposto a abrir um pouco os olhos. Entretanto, gosto de repetir um exemplo, pelo caráter particularmente didático de sua canalhice. Até meados dos anos 1920, o escritor Monteiro Lobato vivia nos EUA, com o sonho de publicar por lá seu primeiro e único romance, O Presidente Negro, um panfleto ideológico eugenista fantasiado de ficção cientifica ao estilo de H. G. Wells, cujo enredo sugere a esterilização da comunidade negra como forma de acabar com os conflitos raciais, dentre outros absurdos. Ao que tudo indica, diversas editoras recusaram a obra, sob a alegação de se tratar de um tema muito sensível. Cabe reforçar esse ponto, para que nada nos escape: os EUA dos anos 1920 consideraram o livro racista demais para ser publicado. Seria mais ou menos como se Lobato houvesse enviado um romance para Hitler e esse o devolvesse, horrorizado, considerando-o antissemita demais… Não é preciso dizer, mas aqui o faremos para efeitos de exposição, que o panfleto foi publicado tranquilamente no Brasil, em 1926. Nenhum editor considerou o racismo declarado ‘um tema muito sensível’. Afinal, adesão à barbárie é o sobrenome inscrito em nosso DNA.
Não deixa de ser curiosa a sensação de silenciamento dos escritores brasileiros e demais profissionais da palavra diante das demandas ‘autoritárias’ das minorias. Pois se existe um campo onde o homem branco peca não pela falta, mas pelo excesso de voz – um fala insistente, contínua, excessiva, ruidosa e, frequentemente, surda – é o campo mais hegemônico do universo letrado. Daí o forte caráter de engodo transmitido pelo mito do silenciamento do homem branco, não por acaso adorado por negacionistas de extrema direita, por ser efetivamente formado do mesmo barro de onde emergem cloroquinas e terraplanistas.
Deve-se, pois, reconhecer o acerto lógico da cobrança pelo lugar de fala nesse caso, por aquilo que se revela do cerne silencioso de funcionamento do mercado da ‘alta cultura’ no país. Ao se voltar para o universo literário, e a despeito de todos os seus riscos, sua lógica acerta o alvo, colocando os escritores diante de uma contradição insuperável. Pois a cobrança feita ao escritor branco hegemônico, ao assumir a forma de uma demanda impossível – ‘só posso ser escritor ao deixar de ser escritor’ – revela precisamente qual caminho deve ser assumido enquanto projeto de comprometimento radical com a luta antirracista. De fato, ninguém disse que seria um movimento fácil, envolvendo hashtags e temas literários, posto que exige um comprometimento existencial profundo.
‘Quais são as garantias de que a negação do meu lugar de escritor assumirá contornos emancipatórios?’ Ora, as mesmas garantias que eu, sendo negro, tenho de que chegarei vivo ao fim do dia. Ou seja, o campo da mais absoluta e precária incerteza. De todo modo, é certo que, se pensado individualmente, esse caminho certamente resultará em quase nada. Isso porque tal contradição não pode ser resolvida no interior dos termos de constituição de seu próprio campo. Daí a força de enunciação dessa demanda contraditória: ela exige a transformação radical das próprias condições de enunciação. Pois o que torna a demanda paradoxal é seu circuito atual de organização, que pode ser desfeito.
Eventuais alternativas pensadas a partir desse circuito só podem emergir de forma reativa, enquanto retorno ao modelo de representação que se deseja confrontar – o que, no fundo, é o desejo secreto que move boa parte dos escritores, principalmente os ‘antirracistas’. Retornar às condições que tornaram possível o aparecimento de obras-primas da elite letrada a partir da representação das classes populares. Evoé Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Jorge Amado, José Lins do Rego e Mário de Andrade! Nenhum deles seria possível caso fossem ‘impedidos’ de tratar de seu outro de raça e classe. Mas seria esse o segredo inaudito dessa demanda impossível, o desejo de impedir o surgimento de novas figuras dessa categoria, movido por ressentimento? O rebaixamento deliberado das possibilidades da ‘alta literatura’ por mero revanchismo? Acredito que, em seu horizonte mais potente, a ideia seja precisamente a oposta: permitir o surgimento de um novo Guimarães Rosa e um novo Drummond, agora reconhecidamente negros, para completar o quadro junto com Machado de Assis. Algo que só será possível com a alteração completa das condições de enunciação, o que por sua vez demanda movimentos de ordem social.
Em termos políticos, um dos argumentos a que se pode recorrer diz respeito às possibilidades de construção de canais de articulação reais a partir do reconhecimento dessa limitação estrutural. Como construir as pontes necessárias para fazer alavancar a luta coletiva a partir do reconhecimento dessa aporia? Afinal, ao responder a essa demanda individualmente, os escritores brancos não podem fazer nada a não ser perder-se de si. A meu ver, uma das vantagens de se colocar as coisas nesses termos é a inversão do ônus. A aporia é um dado real, e o seu reconhecimento é cada vez mais difundido. Mas, até que ponto a classe dos escritores, frequentemente acomodada, a despeito do teor crítico de seus textos, está efetivamente se movimentando para alterar o estado de coisas que tornou sua própria existência possível, pra início de conversa? Até que ponto avança seu engajamento? Afinal, um antirracismo puramente abstrato é tão confortável quanto alegar-se contrário à corrupção, e permite eleger Lula, Dória ou mesmo Bolsonaro, a depender da ocasião. Mas daí a movimentar-se politicamente em direção a esse comprometimento é uma história muito diferente.
O interessante aqui são menos as possibilidades emancipatórias advindas desse reconhecimento – que de fato estão muito além das possibilidades individuais – do que a inversão do ônus: ou seja, o problema não está na enunciação de uma demanda contraditória e, a rigor, impossível de se desatar dentro de seus próprios termos, mas na revelação de que esse lugar tornado incômodo é precisamente a zona confortável que fundamenta o privilégio (frágil) do ser escritor no Brasil, estruturalmente comprometido com uma posição conservadora mesmo quando a considera moralmente abjeta. Afinal, a tudo é possível adaptar-se, e mesmo a obra literária de um escritor antirracista pode servir a um só tempo como denúncia crítica de privilégios e reprodução de mecanismos de exclusão.
Em suma, diante da percepção de que ser branco é um critério de publicação decisivo no mercado editorial hegemônico – algo que deveria ser encarado como um demérito para qualquer escritor sério que gostaria de ser apreciado por seu talento, e não por um favor de seus pares – cabe a seguinte pergunta: E se a posição efetivamente radical que os escritores brancos brasileiros devessem assumir fosse, precisamente, a negação de sua condição de escritor? Não qualquer negação, claro, mas uma negação determinada, visando o escritor por vir. Uma negação que não deve ser eterna, nem tampouco individual. Digamos que todos os escritores brancos do país (nos utilizemos dessa tautologia) decidam não mais publicar suas obras até que os escritores negros ocupem não menos que 50% do mercado editorial. E que essa decisão fosse sustentada ao longo de 10, 15 anos, até que o jogo objetivamente houvesse virado. Diga-se de passagem, nas universidades brasileiras a estratégia funcionou muito bem, e as principais e mais importantes mudanças epistemológicas do nosso tempo advém da radicalidade dessa guinada. Por isso acredito que as chances de ocorrer algo similar com o campo literário são bastante elevadas.
(‘Mas isso não implicaria em perda de qualidade artística’? Certamente não. Vá por mim, incauto leitor: a maioria dos livros publicados, inclusive por uma questão lógica, fica naquela faixa entre o médio sofrível e o terrivelmente ruim. A diferença é que me parece muito mais justo e literariamente saudável vermos publicadas uma maioria de obras medianas em um contexto real de representatividade do que seguir com um sistema literário mediano organizado a partir de mecanismos de segregação racial).
Para isso, entretanto os escritores deveriam contar com uma série de características que, infelizmente, lhes são bastante raras: uma articulação política não conformista; um senso das injustiças a lhe corroer efetivamente a pele; uma capacidade crítica que não sirva de alimento para narcisismos de ocasião; além de um bocado de coragem e eventuais perdas de capital, mais simbólico que econômico, dado a precariedade das condições culturais no país e a quase impossibilidade de se viver de arte no Brasil. Privados, contudo, dessas qualidades, a cobrança por aquilo que seria o mais fundamental – que o racismo não organize nosso sistema literário – tende a aparecer como a negação mesma da possibilidade de existência da literatura enquanto tal